quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Sedutores em série: Beauvoir, Sartre e Camus



Por Christiano Galvão
Do Blog Miméticos

Não será novidade para muita gente que Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, dois dos nomes mais notáveis da filosofia do século XX, compuseram um modelo alternativo de vida conjugal, tido como moderno, que se distinguia pela renúncia do casamento formal em favor de uma devoção erótica recíproca, porém aberta, que não lhes tolhia a liberdade de manter relacionamentos paralelos. Para eles, mais do que um pacto de amor, isso seria uma tentativa de derrubar a hipocrisia do velho modelo de matrimônio que, por tanto tempo, havia padronizado e sufocado a maioria dos relacionamentos afetivos.

Porém, o cotejo de duas recentes biografias de Sartre parece evidenciar que esse pacto de amor, provavelmente, foi uma moderníssima mentira romântica, que ocultava uma insidiosa dinâmica mimética. A primeira dessas biografias, intitulada “Uma Relação Perigosa”, de Carole Seymour-Jones (Record, 2014), apresenta esta dupla, presumidamente desprendida, ora como sedutores em série empenhados na mútua gratificação, ora como um casal que se valia da crítica filosófica para justificar a necessidade de múltiplos amantes — cuja maioria eram adolescentes que saíam arrasados dessas experiências. Guardadas as devidas proporções, eles estariam vivenciando o mesmo concurso de sedução mimética do Visconde de Valmont e da Marquesa de Merteuil, os famigerados anti-heróis de Choderlos de Laclos.

Se, em seus romances, ensaios e pronunciamentos, Simone de Beauvoir pregava o ideal de emancipação feminista, rechaçando conceitos “burgueses” como casamento e família, sua correspondência íntima revela uma mulher amarga, infeliz e obsessivamente enciumada pelas inúmeras conquistas do quase cônjuge. Sua retórica inovadora é incapaz de ocultar o sentimento de revanche, e por vezes de frustração, com que ela entrava e saía desses casos — e cuja expectativa ansiosa era provocar o retorno imediato de Sartre. A dupla mediação dos desejos que vigorava entre ambos fica manifesta no acordo tácito pelo qual Simone só encaminhava para Sartre as jovens amantes com as quais ela própria já tinha se deitado e “aprovado”.

A biografia, contudo, demonstra que quase sempre Sartre estava um passo à frente dela — muito embora no princípio não tivesse sido assim. E é a partir desse princípio que a pesquisa de Seymour-Jones nos permite vislumbrar as raízes da rivalidade mimética que simultaneamente os atraía e afastava. O duplo vínculo teria surgido em 1929 quando os dois prestaram exames na Sorbonne. Sartre, que até então era só um burguesinho provinciano, atarracado e estrábico, transformou-se num ímã de mulheres após os resultados brilhantes que lhe valeram o primeiro lugar. E Simone, que ficou com o segundo lugar, notabilizou-se como uma das primeiras mulheres a ingressar naquela universidade. Consta que, quando eles foram apresentados, Sartre teria feito questão de ressaltar que ela era mais inteligente do que qualquer homem; e logo em seguida teria lhe proposto casamento. Simone declinou, não por razões filosóficas, mas porque já estava tendo um caso com um dos melhores amigos dele. Era o dia 1 de outubro de 1929. Foi então que Sartre lhe propôs o pacto: eles viveriam um “amor em essência”, mantendo um relacionamento não exclusivo, mas inclusivo, no qual teriam a liberdade de buscar e ocasionalmente até de partilhar romances. Havia, porém, uma condição: eles deveriam manter tudo às claras; aliás, deveriam descrever um para o outro, nos detalhes mais íntimos, cada uma dessas experiências.

Era o início do casamento aberto e da correspondência que testemunharia sua realidade. Durante os primeiros anos, Sartre entrou no jogo com entusiasmo, até porque gostava de iniciar virgens. Todavia, rápida e inesperadamente ele perdeu o interesse, deixando a fogosa Simone, que já dispunha de um gineceu de alunas, profundamente decepcionada. Algumas cartas desse período escancaram o quanto o interesse dele condicionava os desejos dela e, sobretudo, como ambos rapidamente encontraram neste “pacto de amor” as mesmas amarguras e frustrações do casamento convencional.

Não obstante, mesmo durante a ocupação nazista que os afastou temporária e geograficamente (ou talvez em função disso), a emulação sexual deu continuidade ao pacto. Simone continuou a seduzir rapazes e, sobretudo, moças, escrevendo relatos de suas atividades (tão excitantes quanto insensivelmente cínicos), que eram remetidos para Sartre, atrás da linha de Maginot. Ela conta das muitas alunas-amantes que disputavam sua atenção de forma doentia, chegando a citar uma que se automutilava e outra que cometeu suicídio. As outras são pateticamente descritas como meninas dependentes de uma professora sem filhas, e que ela, talvez com ligeira perversidade, mimava como filhinhas. Contudo, seria uma destas filhinhas que haveria de abalar profundamente aquele pacto de amor, fazendo com que sua recorrente estrutura triangular se convertesse num polígono.

Tudo aconteceu quando Sartre sofreu um pequeno colapso por causa do uso de alucinógenos, e Simone pediu a uma de suas mais novas alunas-amante que lhe servisse de enfermeira. Mal sabia ela que esta moça seria pivô de outro concurso de sedução que envolveria sua irmã e o romancista Albert Camus, e deixaria Simone num de estado de ciúme incapacitante. Este caso é mais bem esclarecido pela segunda biografia, intitulada The Boxer and the Goalkeeper: Sartre vs Camus, de Andy Martin (Simon & Schuter, 2013), ainda sem tradução em português. Lê-se nela como Sartre tentou resgatar seu apetite de mulherengo desenfreado por meio da amizade com o escritor do momento — o moreno, alto, bonito e sensual argelino Albert Camus, que logo aderiu aos jogos sexuais do casal filosófico. Camus foi para cama com muitas das meninas enviadas por Simone, exceto com a própria Simone, a quem ele desdenhava como “uma tagarela, pedante e insuportável!…”. Simone obviamente detestava Camus, e não escondeu a apreensão de que fatalmente ele pudesse acabar com a brincadeira, tornando-se um rival perigoso não somente para si, mas para o próprio Sartre.

E assim sucedeu. Em termos quase girardianos, a pesquisa biográfica de Andy Martin sugere que Sartre só veio a sentir atração pela enfermeira enviada por Simone porque Camus sentiu isso antes. O nome dela era Wanda Kosakiewicz. Durante anos, Sartre tinha sido obcecado pela irmã mais velha de Wanda, a atriz Olga Kosakiewicz, uma das poucas amantes de Simone que o desdenhara. Nem mesmo dando-lhe papéis em suas peças Sartre conseguiu levar Olga para a cama. Ela era o objeto inatingível de seus desejos, o “significante transcendental”, como seu amigo Jacques Lacan, teria dito. O caso com a irmã Wanda tampouco foi bem-sucedido, porém por razões inversas. Ele desprezava a menina e chegou a dizer-lhe que ela tinha “as faculdades mentais de uma libélula”. Modesta, Wanda acatou o insulto como uma crítica; disse que não pretendia ser uma filósofa como Simone, mas sim uma atriz como sua irmã Olga, e admitiu que talvez não tivesse nenhuma aptidão para o sexo.

Sartre se ofereceu para educá-la!… Mas só depois de dois anos, num hotel em Aigues-Mortes, sul da França, ele conseguiu a “desvirginação” — expressão que consta na carta que foi enviada para “cher Beaver” (Beauvoir), e na qual ele diz o quanto lhe foi odiosa aquela experiência. Mas no mesmo tom de divertimento cínico de sua quase cônjuge, ele diz também como ludibriou a menina confessando-se perdidamente apaixonado e dando-lhe papéis em suas peças.

Essa situação iria mudar drasticamente quando, em 1943, Sartre convidou Camus para assistir o ensaio da peça ainda inédita Huis Clos (Entre Quatro Paredes), que aconteceria no apartamento de Simone. Foi lá que Camus conheceu Wanda, foi lá que se interessou por ela, e foi então que sobreveio a mudança na conduta de Sartre. Numa carta datada do final daquele ano, Sartre escreve para “cher Beaver” dizendo: “O que Wanda acha que está fazendo, correndo atrás de Camus? O que ela quer dele? Eu não sou muito melhor? E tão mais gentil para com ela. Ela deve tomar cuidado.” Mas Camus talvez já tivesse captado a complexidade daquela circunstância, visto que, posteriormente, ele escreveria, em La mort heureuse: “É por isso que, apesar de tudo, é bom ter tido um grande amor, uma paixão infeliz na vida. Isso constitui pelo menos um álibi para o desespero sem razão que, invariavelmente, se apodera de nós…”. O biógrafo Andy Martin diz que a disputa foi tão intensa quanto tempestuosa. E, inopinadamente, Wanda conseguiu emular Simone obtendo seu próprio mégane-à-trois com dois filósofos célebres. O casal existencialista jamais perdoaria Camus por tamanha desfeita.

Com efeito, a ruptura da amizade, que já havia azedado, deu-se definitivamente com a publicação em 1951 da obra-prima filosófica de Camus, L’Homme revolté, (O Homem Revoltado), e a crítica devastadora que Sartre dedicou-lhe no ano seguinte. Martin deduz dos argumentos deste romance um reflexo quase fidedigno da rivalidade latente entre os dois homens, e então abafada nos debates públicos. A interpretação de Martin se baseia no fato de que, dentre todos os pensadores referidos por Camus neste livro, Sartre figura como o ilustre ausente. É como se ele tivesse se tornado naquele que não podia ser nominado. Forte indício de um ressentimento recíproco.

Esse ressentimento se fez muito óbvio quando ambos ganharam o prêmio Nobel. Sartre quase surtou, em 1957, com a notícia de que Camus havia recebido este prêmio, consagrando-se como o contemplado mais jovem da história do Nobel. Anos mais tarde, em 1964, quando foi a vez de Sartre ser contemplado, ele prontamente recusou a homenagem alegando que isto faria dele uma figura do establishment e imporia limites à sua mente inquiridora!… Esta discutível declaração, tanto quanto a recusa, talvez, tenha sido a melhor vingança pelo ultraje de haverem premiado Camus antes dele.

Cumpria-se assim a previsão de Simone de Beauvoir, que nesse meio tempo, atordoada por não encontrar espaço nas disputas entre os dois, havia se autoexilado nos Estados Unidos, onde foi viver com Nelson Algren, um amante americano. Ela tinha 39 anos, há meses que não saía com ninguém, e agora, pela primeira vez em sua vida, conseguia ter orgasmos completos. Antes de deixar a América, Nelson Algren lhe comprou um anel de prata barato que Simone iria usar pelo resto de sua vida. A relação entre os dois não durou porque Algren não estava disposto a entrar no jogo da filósofa e ter de partilhá-la com Sartre, ou com quem quer que fosse. E mesmo dizendo em algumas cartas que desejava Algren apaixonadamente, ela não conseguia ficar longe do comparte Jean-Paul Sartre, cuja presença, mas do que qualquer orgasmo, dava sentido e plenitude à sua existência. Com efeito, na carta de despedida para Nelson Algren ela escreveu: “Eu sou muito gananciosa. Eu quero tudo da vida, eu quero ser uma mulher e ser um homem”. E voltou à França.

Reunido, o casal buscou novos amantes e novas frentes de militância política. No entanto, a relação jamais lhe traria qualquer satisfação, visto que entre eles havia se instalado um tédio horrível. Por muitos anos Sartre susteve-se à custa de anfetaminas, café preto e cigarros, seguidos de soníferos e vinho tinto. Depressa ele se tornou incontinente, reumático e cego. Na iminência de sua morte em 1980, Sartre começou a flertar com o judaísmo, deixando Simone estarrecida – pois Deus seria um rival ainda mais perturbador do que Albert Camus.

Sartre, porém, morreu antes disso. As biografias relatam como Simone foi deixada sozinha com o corpo dele no hospital, e como se esgueirou sob o lençol para passar uma última noite ao seu lado. Parecia que, findas as possibilidades de emulação, ela o tinha definitivamente onde o queria. E foi assim que ela escreveu para ambos um epitáfio irônico, niilista, mas com certo tom de queixume: “Sua morte nos separou, e a minha morte não nos reunirá”. Hoje eles dividem a mesma sepultura.

Dizem que Simone de Beauvoir conseguiu encontrar seu próprio caminho. Mas em seu íntimo ela sabia que isso só foi possível porque tinha conseguido sobreviver à emulação com Sartre, com Camus e todos demais. Como ela mesma diria num dos seus últimos textos: “O tempo é irrealizável. Provisoriamente o tempo parou para mim. Provisoriamente. Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra. Como não ignoro que é o meu passado que define minha abertura para o futuro. O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar. Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa para minha liberdade hoje? Não sou mais escrava dele… Não desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.”

Simone de Beauvoir morreu de pneumonia em 1986. Talvez houvesse nessas palavras o prenúncio daquilo que René Girard definiu como uma conversão romanesca.


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