quinta-feira, 6 de agosto de 2015

A filosofia tem algum problema com as mulheres?

A filósofa, teóloga e poeta Marguerite Porete



Por Julian Baggini e Mary Warnock

Tradução de Clara Allain
Do Guardian


Mary Warnock, filósofa e escritora

A pergunta é debatida por mulheres e homens do campo da filosofia há anos e na semana passada foi o tema de capa do Times Literary Supplement. De todos os departamentos de ciências humanas de universidades britânicas, apenas os departamentos de filosofia não têm mais de 25% de seus membros que sejam mulheres. Qual é a razão disso? Como esse desequilíbrio pode ser corrigido? De maneira geral, sou muito contrária a qualquer intervenção, por cotas ou outra, para aumentar as chances de mulheres serem empregadas em qualquer campo que seja, e não há nada de intrinsecamente negativo nesse desequilíbrio. Não acredito de maneira alguma que ele revele um viés consciente contra as mulheres. Tampouco pode ser explicado pela suposição de que, pelo fato de a filosofia dizer respeito principalmente a argumentos, as mulheres sejam naturalmente menos hábeis nesse campo.

Pode haver algumas mulheres que pensam mais emocional que racionalmente, mas, como bem sabemos, há alguns homens que também o fazem. Tampouco penso que as mulheres rejeitem a ideia da filosofia por seu estilo supostamente adversativo, sua orientação em torno da discussão, em vez de buscar a verdade ou o consenso. Pois não acredito que esse estilo, quando adotado em disputas acadêmicas, seja próprio apenas da filosofia. Não -penso que a filosofia acadêmica tornou-se uma disciplina extraordinariamente voltada para seu próprio umbigo, que se dedica não a expor e examinar as implicações de como pensamos o mundo, mas, em vez disso, a expor deficiências nos argumentos de outros filósofos. Em qualquer periódico profissional hoje lemos pouco que não sejam respostas que se dedicam a procurar defeitos pequenos nos argumentos de outros filósofos. As mulheres tendem a entediar-se com isso mais facilmente que os homens. A filosofia parece deixar de ser interessante justamente quando ela se profissionaliza.

Julian Baggini, filósofo e escritor

Concordo que há pouca ou nenhuma discriminação consciente contra as mulheres na filosofia. Mas isso não quer dizer que não exista um grande viés inconsciente. O que não sabemos é por que esse viés seria mais forte na filosofia que em outras disciplinas. Penso que a resposta possa ser encontrada na autoimagem da filosofia. Os filósofos tendem a ter uma visão inflada de sua capacidade de seguir a discussão para onde quer que ela os leve, como diz a velha máxima de Platão. O que importa é a discussão, não aquele que discute, o que significa que não há necessidade de sequer pensar em gênero ou etnia. Assim, os filósofos sempre se sentiram imunes aos efeitos deturpadores do viés de gênero. A lógica é indiferente ao gênero, a filosofia é lógica; logo, a filosofia é indiferente ao gênero. Desconfio que isso tenha levado à complacência, ao desconhecimento de todas as maneiras pelas quais o viés de gênero realmente penetra. É uma constatação amplamente fundamentada da psicologia que considerar-se um juiz objetivo da realidade torna seus julgamentos menos objetivos, e tenho certeza que a filosofia sofre disso. Reconheço que esta explicação pelo menos parcial do fato de as mulheres serem sub-representadas na filosofia é um tanto especulativa, mas estou interessado em saber o que você pensa dela.

MW - Não aceito que todo nosso pensamento seja permeado pela questão do gênero e que, por isso, deixamos de ter consciência de nosso viés. Penso que um dos grandes méritos da filosofia acadêmica é que seus tópicos centrais são tão indiferentes ao gênero quanto os da física, matemática ou linguística. Mas concordo que as mulheres podem ter esperanças diferentes quanto aos resultados do estudo desses tópicos e que, de modo geral, elas tendem menos que os homens a seguir a discussão onde quer que ela as leve, mas que mudam a direção se ela conduz ao absurdo ou ao paradoxo. Essa é outra maneira de dizer que as mulheres são mais constritas que os homens pelos ditames do bom senso. E isso condiz com, ou faz parte de, o desejo de que a filosofia seja inteligível pelos não filósofos, se eles se dispõem a pensar sobre ela. É claro que este desejo não é exclusivo das mulheres (como mostram seus próprios escritos). A aversão a abrir mão do bom senso pode parecer uma super simplificação, embora possa ser mais bem descrita como aversão à escolástica. Em entrevistas para empregos, isso pode levar as mulheres a parecer mais pragmáticas que brilhantes, o que pode prejudicar suas chances de êxito.

JB - É possível que as mulheres tendam a ter prioridades intelectuais diferentes das dos homens. Mas, como não sabemos até que ponto estas são culturais ou biológicas, não devemos presumir que quaisquer diferenças desse tipo sejam fixas. O que é mais importante é que isso seria razão ainda maior para tentarmos levar mais mulheres a cargos seniores na filosofia, já que não existe razão para supor que as prioridades tradicionais sejam superiores. É importante distinguir a ideia de que todas as ideias filosóficas são permeadas pelo gênero, que ambos rejeitamos, da ideia de que os vieses de gênero afetam os modos de pensar e agir de todos os filósofos. Por exemplo, Rae Langton e Jennifer Hornsby argumentaram persuasivamente que normas e estereótipos culturais podem afetar adversamente a capacidade das mulheres de serem ouvidas e levadas a sério. Creio que isto prejudica as mulheres na filosofia tanto quanto as prejudica em praticamente qualquer outra área. Você é contra as cotas e outras formas de intervenção. Isso quer dizer que você pensa que nada pode ou deve ser feito?

MW - Concordo com algo que você disse antes, que os homens são complacentes ao acreditar que suas prioridades intelectuais são melhores. E isso torna mais difícil para as mulheres se fazerem ouvir. Mas sou contra a intervenção positiva, mesmo assim, porque ela sempre implica o risco de que uma mulher indicada graças a um sistema de cotas, por exemplo, seja vista como não sendo necessariamente a melhor candidata e, por essa razão, seja ainda mais contestada e enfraquecida. Penso, em vez disso, que as coisas estão mudando gradualmente na filosofia, mesmo que isso não esteja ocorrendo em outras disciplinas. Graças em parte ao trabalho de algumas mulheres, como Onora O'Neill, e alguns homens, como você, a aplicação de métodos filosóficos a outras disciplinas vem ganhando reconhecimento maior. Por exemplo, a ligação entre filosofia moral e medicina hoje é amplamente reconhecida, e, o que talvez seja ainda mais importante, a interface entre filosofia e psiquiatria vem sendo explorada mais e mais. Essa ampliação do escopo da filosofia vai inevitavelmente atrair mais mulheres para a disciplina, mesmo que isso se dê apenas gradualmente.

JB - As cotas são problemáticas de fato, mas existem outras intervenções de ação afirmativa possíveis, como exigir que departamentos, conferências e periódicos monitorem de perto o número de mulheres que se candidatam ou oferecem artigos para publicação, comparando-o ao número das que são aceitas. O simples fato de se obrigar as pessoas a prestar atenção a disparidades possíveis já é uma maneira poderosa de aumentar a conscientização.

Outra prioridade é levar os filósofos a um entendimento melhor dos efeitos psicológicos que interferem no seu pensamento supostamente claro e racional. Todos os filósofos devem ter conhecimento, por exemplo, do trabalho de Sally Haslanger e Jennifer Saul sobre como fenômenos psicológicos como um viés implícito e a ameaça de estereótipos podem atuar em sua disciplina. Mas a mudança mais importante e eficaz é que os filósofos simplesmente encarem a profundidade do problema em seu campo. Muitos filósofos se limitam a supor, com complacência, que qualquer sexismo na filosofia hoje seja residual e de pouca monta. Sete anos atrás Haslanger escreveu: Em minha experiência, é muito difícil encontrar um lugar na filosofia que não seja ativamente hostil às mulheres e minorias ou que, no mínimo, não presuma que um filósofo bem sucedido deve ter a aparência de um homem (tradicional e branco) e agir como tal. Haslanger perseverou, mas, se outras mulheres de talento estão abandonando o esforço ou sendo passadas por cima, quem perde com isso é tanto a própria filosofia quanto as mulheres.

Nenhum comentário:

Postar um comentário