quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

As leis nas peças de William Shakespeare


Por Nelson de Sá
Da Ilustrada

Livro de professor americano analisa peças do autor inglês (1564-1616) centradas no mundo jurídico para mostrar, por meio dessas questões, que a obra do bardo continua atual. Personalidades do direito e do teatro comentam no texto as relações entre literatura -não só a de Shakespeare- e a realidade contemporânea.

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A primeira coisa a fazer: matar todos os advogados. O verso dito por Dick the Butcher em Henrique 6º, Parte 2 é apenas uma entre dezenas de referências ao direito nas peças de William Shakespeare. Na trama, é uma sugestão feita ao líder rebelde Jack Cade, convocando a destruir a ordem.

São tantas referências que Mil Vezes Mais Justo - O Que as Peças de Shakespeare nos Ensinam sobre a Justiça [trad. Fernando Santos, WMF Martins Fontes, R$ 39,90, 320 págs.] deixa de lado Henrique 6º e outros textos do dramaturgo iniciante.

O livro de Kenji Yoshino concentra-se naqueles escritos do auge do autor, como as grandes tragédias (Hamlet, Otelo) e, sobretudo, as peças que retratariam as figuras do advogado (O Mercador de Veneza) e do juiz (Medida por Medida).

A ideia é defender a noção de que Shakespeare continua, nas palavras de Jan Kott, nosso contemporâneo, explica, por e-mail, o autor, que é professor de direito constitucional da Universidade de Nova York -em Shakespeare, Nosso Contemporâneo, de 1961, o teórico polonês identifica o dramaturgo com as ideias e o teatro de meados do século 20.

Yoshino, que também dá aula de direito e literatura na NYU, reproduz o procedimento de Kott e relaciona, por exemplo, os volteios de raciocínio de Pórcia, a advogada do Mercador, com o que fez o então presidente Bill Clinton, também advogado, para se defender da acusação de perjúrio no caso Monica Lewinsky.

De um lado, Pórcia diz que seu cliente não pode entregar uma libra da própria carne, como prometido em caso de não pagar uma dívida, porque verteria sangue -o que não está no contrato.

De outro, Clinton, questionado sobre a declaração de não ter feito sexo com Lewinsky, diz que sexo oral passivo não é relação sexual, só ativo.

Noutro capítulo, sobre Otelo, faz uma ponte entre o assassinato de Desdêmona por Otelo, com a prova questionável de um lenço, e o assassinato de Nicole Brown por O.J. Simpson, absolvido pela prova também questionável de uma luva, num julgamento controverso em 1994/95, nos EUA.

O personagem de Otelo se deixa enganar quanto a um lenço de Desdêmona, que teria sido encontrado com o suposto amante dela, o que detona as ações que o levam a matá-la. No caso real, uma luva apresentada pela acusação como sendo de Simpson é testada por ele no julgamento -após ter encolhido, embebida em sangue- e não lhe serve, o que se torna o mote da defesa para sua liberação.

Festejado por acadêmicos shakespearianos como Stephen Greenblatt, da Universidade Harvard, pela intensidade com que enfrenta a obra do dramaturgo, Yoshino é questionado por outros como Garry Wills, da Northwestern, para quem o estratagema usado permite aulas divertidas, mas não aprofunda o conhecimento das obras.

Aos críticos, Yoshino responde que continua à vontade com os paralelos que traça no livro -e que eles deveriam evitar o risco de se perderem nos detalhes, não vendo a floresta por causa das árvores, num provérbio inglês do tempo de Shakespeare. A floresta, sua tese, como descreve, é a contemporaneidade do dramaturgo.

Questionado sobre eventuais paralelos também no Brasil, ele evita aventurar-se, dizendo conhecer pouco o panorama jurídico do país. Instado pela Folha, o advogado Pierpaolo Bottini, professor de direito penal da Faculdade de Direito da USP, arrisca um cotejo com Mercador, não necessariamente de Pórcia, mas do oponente dela, o judeu Shylock, personagem que defende a sua própria humanidade na peça: Um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afetos, paixões?, diz o personagem.

No campo criminal, talvez o caso mais relevante de apelo a analogias de linguagem seja a defesa de Harry Berger por Sobral Pinto, que usou a lei de maus tratos aos animais para atacar o tratamento desumano que seu cliente sofria nos porões da ditadura do Estado Novo, diz. Apontou que a proteção aos animais se estendia, por óbvio, a humanos, fazendo dessa extensão do sentido literal da lei um argumento até hoje lembrado e repetido nos tribunais.

Sobre Otelo, Bottini, que foi secretário da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, lembra que o personagem Iago nutre ódio por Otelo porque este promoveu Cássio, e não a ele, desrespeitando de certa forma o critério de antiguidade. E esse é um dilema que até hoje assola nossos tribunais, por exemplo, onde são muito comuns as acusações de promoção por amizade.

O advogado brasileiro anota que, de modo geral, não só as peças de Shakespeare que tratam da questão jurídica mas todas as que tratam das relações de poder acabam repercutindo no direito.

OLHO POR OLHO

Um ano antes de Yoshino, o advogado José Roberto de Castro Neves, professor de direito civil da PUC-Rio e da Uerj, lançou Medida por Medida - O Direito em Shakespeare [GZ Editora, R$ 95, 473 págs.], já em sua terceira edição. Ele não busca pontes dos casos shakespearianos com episódios contemporâneos, mas é mais extensivo, analisando 27 peças, inclusive Henrique 6º.

Por exemplo, sobre Medida por Medida, que dá nome a seu livro e é uma referência direta à Justiça, Castro Neves escreve que a peça mostra como o exercício do poder é fonte de abusos, se os valores da sociedade e as leis são esquecidos.

O título da peça é tirado por Shakespeare do Sermão da Montanha: Não julgueis, e não sereis julgados. Porque do mesmo modo que julgardes sereis também vós julgados e, com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos. Na trama, o duque de Viena, reconhecendo ser um juiz frouxo, deixa o poder com Ângelo, um puritano que, cruel e hipócrita, primeiro impõe as leis depois abusa delas.

Para Yoshino, a peça contrapõe três concepções da Justiça: a do Novo Testamento, mais frouxa, representada pelo duque e baseada no sermão (não julgueis, e não sereis julgados); a do Velho Testamento, representada por Ângelo e baseada no Êxodo (vida por vida, olho por olho, dente por dente); e o sentido pagão, representado por um personagem menor, Escalo, que tomaria por base Aristóteles (temperança) e Arquimedes (meio-termo).

O diretor brasileiro Ron Daniels, que trabalhou por 22 anos na Royal Shakespeare Company e se prepara no momento para encenar Medida por Medida no Brasil, diz considerar essas ideias todas sobre Shakespeare e o direito muito interessantes. O que me interessa, porém, mais do que um debate sobre a Justiça, é a jornada de cada um dos personagens em cena, como cada um se transforma no percorrer da peça, diz.

Acrescenta não ser uma atitude anti-intelectual, mas de quem acredita que o importante, em Medida por Medida, não é a análise da Justiça em abstrato, a não ser, talvez, no que se refere a um posicionamento impossivelmente radical perante a vida.

Quanto ao propósito declarado de Yoshino, de reforçar a noção de que as peças seguem tendo valor no mundo de hoje, pergunta, com ironia: Mas essa noção precisa mesmo de reforço?


INIQUIDADES

Questionado, José Roberto de Castro Neves arrisca uma ponte entre Shakespeare e o direito no Brasil hoje. Lembra que uma das questões jurídicas renitentes na obra é como agir diante de iniquidades. Bolingbroke, o futuro Henrique 4º, toma o poder em 'Ricardo 2º' exatamente porque vê seu direito ameaçado. A perda da ordem é o gatilho da tragédia, assim como o desrespeito à ordem jurídica cria o ilícito.

Prossegue ele: No Brasil de hoje, essa ordem se perdeu. A falta de ordem gera o caos, como ocorre em 'Henrique 6º', quando os nobres brigam pelo poder, deixando espaço livre para a balbúrdia. É então, em meio à balbúrdia, que Dick the Butcher defende matar todos os advogados. Claro, para que a revolução funcione, deve-se matar aquele que representa a proteção da lei, diz Castro Neves.

Cristiano Paixão, professor de direito constitucional da UnB e autor de estudo sobre O Mercador de Veneza, diz que é sempre difícil traçar esse tipo de paralelo, de Shakespeare com a atualidade.

Ele, porém, anota que Pórcia reflete o antissemitismo, questão bastante delicada em Shakespeare, e que a questão dos 'negros criminosos' aparece não só em Otelo, mas no sanguinário Aarão, de 'Titus Andronicus'. Antissemitismo e racismo que persistem, no Brasil e no resto do mundo.

Se não Shakespeare, algum autor brasileiro pode ajudar a iluminar a Justiça por aqui?

É difícil, mais uma vez, ligar a literatura ao crime para compreender o contemporâneo, responde Paixão. Mas eu teria uma sugestão: lendo as 'Memórias Póstumas de Brás Cubas', de Machado de Assis, encontra-se um excelente panorama da forma ambígua e complexa com que o Brasil lida com seu passado escravagista.

Pierpaolo Bottini também deixa uma proposta: Sempre que falamos em crimes e tormentos na literatura brasileira, o que me vem à cabeça é 'Angústia', de Graciliano Ramos, uma espécie de 'Crime e Castigo' tropical, que merece ser lido por todo aquele que se interessa pela matéria. Os conflitos psicológicos, a agonia mental, a decisão pelo crime são expostos de forma surpreendente.


NELSON DE SÁ, 54, é repórter especial da Folha. Assina o blog Cacilda com a fotógrafa Lenise Pinheiro no site do jornal.

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