segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Humildade

As lágrimas de São Pedro (detalhe) - El Greco


Por Luiz Felipe Pondé
Da Ilustrada

A humildade é uma das virtudes mais difíceis na vida. Principalmente porque está fora de moda, confundida com baixa autoestima. Somos ensinados a buscar o orgulho como autoafirmação. Nada mais distante de uma personalidade razoavelmente madura do que o orgulho.

A humildade é uma das virtudes bíblicas. O filósofo judeu Martin Buber, quando elenca em seu maravilhoso  (Prometheus Books), de 1988, as quatro principais virtudes do místico hassídico, coloca a humildade como a máxima entre elas.

O hassidismo é uma escola judaica típica do leste europeu dos séculos 18 e 19, e o termo vem da palavra hebraica hesed, que pode ser traduzida por piedade.

As quatro virtudes são: êxtase na contemplação , trabalho , a intenção reta do coração  e a humildade . Segundo ele, alguém que tem intimidade com D'us (no judaísmo, não se escreve o nome de Deus completo) tem gosto pelo trabalho, seja ele qual for, porque sente que ser parte do mundo é colaborar com ele.

O êxtase é o que acontece com quem vê D'us e sua piedade com frequência. O ato de contemplar D'us -a palavra , em hebraico, remete ao fogo- incendeia a alma. A intimidade com Deus leva o místico a não conseguir mentir aquilo que sente e pensa, ele diz. Daí a ideia de um coração reto.

Por fim, a humildade. As três anteriores convergem para o que Buber se refere como a consciência de que D'us carrega o mundo na palma da Sua mão, imagem comum na Bíblia hebraica (o Velho Testamento dos cristãos).

É comum personagens como Davi e Abraão usarem essa imagem ou similares para descrever a relação entre D'us e o mundo. A humildade é marca suprema da alma que se conhece sem mentir para si mesma.

A humildade também pode ser vista como grande virtude e desafio para pessoas distantes de qualquer sensibilidade religiosa, mas que têm grande sucesso na vida.

Se você é alguém que não teve sucesso na vida, dizer que é humilde é mais falta de opção do que qualquer virtude de fato. Por isso, a humildade sempre foi cobrada de grandes guerreiros e mulheres lindas.

O sucesso, seja ele físico, financeiro, intelectual ou imaterial, sempre foi um desafio: o risco do sucesso é deformar a alma. Sobre isso, basta ver o horror que é o mundo intelectual e seu profundo desprezo (ao contrário do que querem transparecer) pelo povo.

A chamada segurança de si vai melhor com a humildade do que com o self-marketing. Qualquer pessoa sabe que não se pode falar das próprias virtudes, porque o autoelogio é signo de desespero.

A humildade é o manto com o qual a alma virtuosa se cobre e esconde sua face. E isso nada tem a ver com tristeza ou falta de percepção do sucesso. A felicidade, quando verdadeira, é sempre uma forma de generosidade.

Assim como D'us esconde a sua face, segundo o hassidismo, para nos proteger de sua grandeza, o virtuoso esconde seu rosto em chamas, seja ele incendiado por D'us, seja pelo sucesso, para que não saibam que ele está acima do homem comum.

Não é outro o sentido de se dizer, no cristianismo, que Jesus era um humilde. Qualquer homem comum que fosse alçado a condição de D'us seria um miserável orgulhoso.

Porém, existe um outro tipo de humildade, de que não se costuma falar muito, mas que considero tão essencial quanto o que é mais falado no mundo da filosofia moral. Trata-se da humildade da qual fala Freud. Estranho? Nem tanto. Na psicanálise, a humildade é também essencial.

O sábio de Viena dizia que se ele conseguisse levar seu paciente a trabalhar e a amar razoavelmente, estaria satisfeito como psicanalista.

Além do fato de que grande parte dos psicanalistas é tão horrorosamente orgulhosa quanto minha tribo de filósofos e afins (em alguns casos, o orgulho de alguns beira o grotesco), acho que essa fala de Freud não serve apenas para esses profissionais, mas também para os pacientes.

Muitas vezes, se concentrar em conseguir levantar de manhã e trabalhar, conseguir olhar para as pessoas à sua volta e ser generoso, pode ser o maior dos milagres na Terra.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

As leis nas peças de William Shakespeare


Por Nelson de Sá
Da Ilustrada

Livro de professor americano analisa peças do autor inglês (1564-1616) centradas no mundo jurídico para mostrar, por meio dessas questões, que a obra do bardo continua atual. Personalidades do direito e do teatro comentam no texto as relações entre literatura -não só a de Shakespeare- e a realidade contemporânea.

*

A primeira coisa a fazer: matar todos os advogados. O verso dito por Dick the Butcher em Henrique 6º, Parte 2 é apenas uma entre dezenas de referências ao direito nas peças de William Shakespeare. Na trama, é uma sugestão feita ao líder rebelde Jack Cade, convocando a destruir a ordem.

São tantas referências que Mil Vezes Mais Justo - O Que as Peças de Shakespeare nos Ensinam sobre a Justiça [trad. Fernando Santos, WMF Martins Fontes, R$ 39,90, 320 págs.] deixa de lado Henrique 6º e outros textos do dramaturgo iniciante.

O livro de Kenji Yoshino concentra-se naqueles escritos do auge do autor, como as grandes tragédias (Hamlet, Otelo) e, sobretudo, as peças que retratariam as figuras do advogado (O Mercador de Veneza) e do juiz (Medida por Medida).

A ideia é defender a noção de que Shakespeare continua, nas palavras de Jan Kott, nosso contemporâneo, explica, por e-mail, o autor, que é professor de direito constitucional da Universidade de Nova York -em Shakespeare, Nosso Contemporâneo, de 1961, o teórico polonês identifica o dramaturgo com as ideias e o teatro de meados do século 20.

Yoshino, que também dá aula de direito e literatura na NYU, reproduz o procedimento de Kott e relaciona, por exemplo, os volteios de raciocínio de Pórcia, a advogada do Mercador, com o que fez o então presidente Bill Clinton, também advogado, para se defender da acusação de perjúrio no caso Monica Lewinsky.

De um lado, Pórcia diz que seu cliente não pode entregar uma libra da própria carne, como prometido em caso de não pagar uma dívida, porque verteria sangue -o que não está no contrato.

De outro, Clinton, questionado sobre a declaração de não ter feito sexo com Lewinsky, diz que sexo oral passivo não é relação sexual, só ativo.

Noutro capítulo, sobre Otelo, faz uma ponte entre o assassinato de Desdêmona por Otelo, com a prova questionável de um lenço, e o assassinato de Nicole Brown por O.J. Simpson, absolvido pela prova também questionável de uma luva, num julgamento controverso em 1994/95, nos EUA.

O personagem de Otelo se deixa enganar quanto a um lenço de Desdêmona, que teria sido encontrado com o suposto amante dela, o que detona as ações que o levam a matá-la. No caso real, uma luva apresentada pela acusação como sendo de Simpson é testada por ele no julgamento -após ter encolhido, embebida em sangue- e não lhe serve, o que se torna o mote da defesa para sua liberação.

Festejado por acadêmicos shakespearianos como Stephen Greenblatt, da Universidade Harvard, pela intensidade com que enfrenta a obra do dramaturgo, Yoshino é questionado por outros como Garry Wills, da Northwestern, para quem o estratagema usado permite aulas divertidas, mas não aprofunda o conhecimento das obras.

Aos críticos, Yoshino responde que continua à vontade com os paralelos que traça no livro -e que eles deveriam evitar o risco de se perderem nos detalhes, não vendo a floresta por causa das árvores, num provérbio inglês do tempo de Shakespeare. A floresta, sua tese, como descreve, é a contemporaneidade do dramaturgo.

Questionado sobre eventuais paralelos também no Brasil, ele evita aventurar-se, dizendo conhecer pouco o panorama jurídico do país. Instado pela Folha, o advogado Pierpaolo Bottini, professor de direito penal da Faculdade de Direito da USP, arrisca um cotejo com Mercador, não necessariamente de Pórcia, mas do oponente dela, o judeu Shylock, personagem que defende a sua própria humanidade na peça: Um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afetos, paixões?, diz o personagem.

No campo criminal, talvez o caso mais relevante de apelo a analogias de linguagem seja a defesa de Harry Berger por Sobral Pinto, que usou a lei de maus tratos aos animais para atacar o tratamento desumano que seu cliente sofria nos porões da ditadura do Estado Novo, diz. Apontou que a proteção aos animais se estendia, por óbvio, a humanos, fazendo dessa extensão do sentido literal da lei um argumento até hoje lembrado e repetido nos tribunais.

Sobre Otelo, Bottini, que foi secretário da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, lembra que o personagem Iago nutre ódio por Otelo porque este promoveu Cássio, e não a ele, desrespeitando de certa forma o critério de antiguidade. E esse é um dilema que até hoje assola nossos tribunais, por exemplo, onde são muito comuns as acusações de promoção por amizade.

O advogado brasileiro anota que, de modo geral, não só as peças de Shakespeare que tratam da questão jurídica mas todas as que tratam das relações de poder acabam repercutindo no direito.

OLHO POR OLHO

Um ano antes de Yoshino, o advogado José Roberto de Castro Neves, professor de direito civil da PUC-Rio e da Uerj, lançou Medida por Medida - O Direito em Shakespeare [GZ Editora, R$ 95, 473 págs.], já em sua terceira edição. Ele não busca pontes dos casos shakespearianos com episódios contemporâneos, mas é mais extensivo, analisando 27 peças, inclusive Henrique 6º.

Por exemplo, sobre Medida por Medida, que dá nome a seu livro e é uma referência direta à Justiça, Castro Neves escreve que a peça mostra como o exercício do poder é fonte de abusos, se os valores da sociedade e as leis são esquecidos.

O título da peça é tirado por Shakespeare do Sermão da Montanha: Não julgueis, e não sereis julgados. Porque do mesmo modo que julgardes sereis também vós julgados e, com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos. Na trama, o duque de Viena, reconhecendo ser um juiz frouxo, deixa o poder com Ângelo, um puritano que, cruel e hipócrita, primeiro impõe as leis depois abusa delas.

Para Yoshino, a peça contrapõe três concepções da Justiça: a do Novo Testamento, mais frouxa, representada pelo duque e baseada no sermão (não julgueis, e não sereis julgados); a do Velho Testamento, representada por Ângelo e baseada no Êxodo (vida por vida, olho por olho, dente por dente); e o sentido pagão, representado por um personagem menor, Escalo, que tomaria por base Aristóteles (temperança) e Arquimedes (meio-termo).

O diretor brasileiro Ron Daniels, que trabalhou por 22 anos na Royal Shakespeare Company e se prepara no momento para encenar Medida por Medida no Brasil, diz considerar essas ideias todas sobre Shakespeare e o direito muito interessantes. O que me interessa, porém, mais do que um debate sobre a Justiça, é a jornada de cada um dos personagens em cena, como cada um se transforma no percorrer da peça, diz.

Acrescenta não ser uma atitude anti-intelectual, mas de quem acredita que o importante, em Medida por Medida, não é a análise da Justiça em abstrato, a não ser, talvez, no que se refere a um posicionamento impossivelmente radical perante a vida.

Quanto ao propósito declarado de Yoshino, de reforçar a noção de que as peças seguem tendo valor no mundo de hoje, pergunta, com ironia: Mas essa noção precisa mesmo de reforço?


INIQUIDADES

Questionado, José Roberto de Castro Neves arrisca uma ponte entre Shakespeare e o direito no Brasil hoje. Lembra que uma das questões jurídicas renitentes na obra é como agir diante de iniquidades. Bolingbroke, o futuro Henrique 4º, toma o poder em 'Ricardo 2º' exatamente porque vê seu direito ameaçado. A perda da ordem é o gatilho da tragédia, assim como o desrespeito à ordem jurídica cria o ilícito.

Prossegue ele: No Brasil de hoje, essa ordem se perdeu. A falta de ordem gera o caos, como ocorre em 'Henrique 6º', quando os nobres brigam pelo poder, deixando espaço livre para a balbúrdia. É então, em meio à balbúrdia, que Dick the Butcher defende matar todos os advogados. Claro, para que a revolução funcione, deve-se matar aquele que representa a proteção da lei, diz Castro Neves.

Cristiano Paixão, professor de direito constitucional da UnB e autor de estudo sobre O Mercador de Veneza, diz que é sempre difícil traçar esse tipo de paralelo, de Shakespeare com a atualidade.

Ele, porém, anota que Pórcia reflete o antissemitismo, questão bastante delicada em Shakespeare, e que a questão dos 'negros criminosos' aparece não só em Otelo, mas no sanguinário Aarão, de 'Titus Andronicus'. Antissemitismo e racismo que persistem, no Brasil e no resto do mundo.

Se não Shakespeare, algum autor brasileiro pode ajudar a iluminar a Justiça por aqui?

É difícil, mais uma vez, ligar a literatura ao crime para compreender o contemporâneo, responde Paixão. Mas eu teria uma sugestão: lendo as 'Memórias Póstumas de Brás Cubas', de Machado de Assis, encontra-se um excelente panorama da forma ambígua e complexa com que o Brasil lida com seu passado escravagista.

Pierpaolo Bottini também deixa uma proposta: Sempre que falamos em crimes e tormentos na literatura brasileira, o que me vem à cabeça é 'Angústia', de Graciliano Ramos, uma espécie de 'Crime e Castigo' tropical, que merece ser lido por todo aquele que se interessa pela matéria. Os conflitos psicológicos, a agonia mental, a decisão pelo crime são expostos de forma surpreendente.


NELSON DE SÁ, 54, é repórter especial da Folha. Assina o blog Cacilda com a fotógrafa Lenise Pinheiro no site do jornal.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Sobre a prepotência


Por Marcia Tiburi
Da Revista Cult

É bastante conhecida a passagem da Odisseia de Homero em que Ulisses encontra as sereias e, desejando ouvi-las sem enlouquecer, faz-se amarrar ao mastro do navio em que viaja, não sem antes alertar seus remadores para que tapem os ouvidos com cera e possam, deste modo, continuar a travessia normalmente. Esta história encanta muita gente há muito tempo, mas foi apenas Kafka quem percebeu a ingenuidade de Ulisses, a de acreditar que o poder do canto das sereias poderia ser contido por cera e cordas.

Ao perceber isso, Kafka diz que há algo mais terrível do que o canto das sereias. Segundo ele, se alguém pudesse escapar ao canto das divindades telúricas, todavia não poderia escapar ao seu silêncio…

No conto de Kafka, Ulisses acreditou que as escutava. Mas as sereias não cantaram. E não cantaram porque Ulisses lhes pareceu um sujeito meio bobo com toda aquela parafernalha usada para proteger-se do seu canto.

Para entender Kafka, poderíamos nos perguntar mais ou menos assim: como pode alguém que vai ver e ouvir as sereias – justamente as SEREIAS – estar preocupado com outra coisa que não a experiência da coisa enquanto tal, uma coisa absurda como ouvir SEREIAS? Não se trata de música que se ouve no rádio, nem de nada que se possa baixar na internet pra ouvir com fones. Trata-se, afinal, do mítico canto das sereias. Convenhamos que não é pouca coisa, pensemos como Kafka. A verdadeira experiência de arrebatamento com a qual um ser humano sonha e da qual está impedido por limitações humanas, ali, finalmente realizável. E Ulisses? Ora, Ulisses quase chegou lá, mas preferiu menos, não porque quisesse permanecer humano (afinal, esse problema não era o seu), mas porque já estava com a consciência instrumentalizada.

Apesar da ingenuidade de Ulisses, as sereias gostariam de tê-lo capturado. Se não os ouvidos, pelo menos os olhos do herói astucioso. Mas os olhos de Ulisses não se dirigiam a elas. Não se dirigiam às forças temíveis da natureza que desejariam justamente aniquilar olhos em geral. Os olhos de quem se dispusesse a vê-las. Os olhos da cultura, digamos assim. Ora, o poder dos seres míticos seria o de subjugar os seres racionais, o poder dos seres divinos deveria suplantar o poder humano. Seria lógico que Ulisses se submetesse a elas. Mas os olhos de Ulisses eram olhos distraídos, estavam atentos demais às estratégias para vencer as sereias e, mesmo assim, eram olhos (e ouvidos, não esqueçamos) que queriam “curtir”. Aqueles olhos e aqueles ouvidos precisavam ser capturados pelo canto e pela imagem das sereias, do contrário seria o fim das sereias. Mas Ulisses não podia dar o braço a torcer e dizer que encontrou com o seu silêncio.

Por sorte, tudo acabou bem. Ulisses fingiu que ouvia e foi embora. E alguma coisa ele viu. As bocas perplexas. As sereias, sem entender como era possível que alguém não se desse conta do que acontecia naquele momento, continuaram existindo apesar de Ulisses quase as ter destruído com sua boçalidade.

Kafka termina o conto sem dar uma de Ulisses, ou seja, combatendo a tentação de prepotência que caracteriza o protagonista homérico, afirmando que talvez Ulisses tenha percebido tudo isso e tenha escapado das sereias, do seu poder terrível e destrutivo, o poder da sedução (mas não só, o poder do misterioso que é viver), justamente controlando esse jogo de aparências, fingindo que tinha entendido tudo. Ulisses era um espertinho, as sereias sabiam que não, mas Kafka, que era um homem decente, apenas nos põe a desconfiar e deixa tudo no tom do “quem vai saber?”.

Há um momento do texto em que se pode reconhecer o poder da prepotência de Ulisses que quase destruiu as sereias: “Contra o sentimento de tê-las vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante – que tudo arrasta consigo – não há na terra o que resista.”

Essa força, a da crença de que se venceu as sereias, não tem comparação. Ela destrói tudo. Mas que poder de destruição é esse que seria capaz de eliminar logo as  sereias se elas estivesses desprotegidas? Lembremos que as sereias estavam protegidas por serem inconscientes e permanecerem na eternidade, apenas que ficaram meio perplexas com o jogo humano…

A condição humana sob o signo do capitalismo tecnológico nos tornou cada vez mais parecidos com Ulisses, o boçal. Ulisses que Adorno e Horkheimer chamaram de “protótipo do indivíduo burguês” não é mais do que o turista que usa câmera de fotografar e filmar quando teria a chance de entregar-se à viagem; é o pai que filma o parto enquanto a criança se ocupa em nascer e a mãe torna-se um objeto decorativo no filme bizarro; é, por fim, o dono do celular último-tipo que deixa de conversar com os filhos, o amigo, a mulher, porque há coisa muito mais interessante para ver no mundo virtual além da mesa do restaurante…

Lembro que dizíamos: aponta-se a estrela e ele olha para o dedo…

Eis Ulisses, olhando para o dedo com o qual tecla o celular enquanto as sereias resolvem dormir…

O conto de Kafka nos aponta para a prepotência da inteligência de Ulisses que, na época só tinha em mãos, corda e cera. Hoje, na era tecnológica, com os aparelhos impressionantes que temos, somos todos Ulisses em estado avançado de putrefação espiritual. Perdemos de ouvir o canto das sereias porque nossos olhos distraídos são de vidro, plasma, LCD, LED, ou outro material que empolga os tontos no contexto da ideologia da alta resolução. Evolução direta da cera e da cordinha que amarrava Ulisses ao mastro fazendo ele se sentir inteligente.

Viver, mais uma vez, deve ser algo parecido com “resistir” a essas bugigangas. Resistir certamente nos fará ouvir o silêncio das sereias.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Trinta e quantos?

Van Gogh - Cabeça de um homem (possivelmente Theo Van Gogh)


Por Antonio Prata
Da Ilustrada


Outro dia, numa mesa de bar, hesitante e assustado, me dei conta de que eu não sabia a minha idade. Trinta e seis parecia pouco, 38 parecia muito e 37, sei lá por que, me soava meio estranho. Que era alguma coisa por aí, eu tinha certeza. Trinta e cinco eu tive já faz muito, muito tempo, mas não tanto, tanto tempo para que eu já pudesse estar com 40; não, se eu fizesse 40, eu iria perceber, ou, no mínimo, iria ouvir algum comentário dos mais próximos. Céus, como pode, a esta altura do campeonato -qual altura, exatamente?- a pessoa ignorar quantos anos tem?

Quando você é criança, a idade é um negócio fundamental. É o dado mais importante depois do seu nome. Você aprende a mostrar nos dedos e passa uma década dizendo quatro, vou fazer cinco, cinco, vou fazer seis, seis, vou fazer sete e assim por diante. Lembro que, na época, eu achava de uma obviedade tacanha esse vou fazer, mas hoje entendo: o desejo de crescer é uma parte fundamental do software com o qual viemos ao mundo. Seis, vou fazer sete é menos uma constatação óbvia do que uma saudável aspiração.

Na adolescência, a idade continua sendo importante. Afinal, a diferença entre 14 e 16 é, geralmente, a diferença entre Mario Bros e o sexo. Pense no Mario Bros, pense no sexo, e fica evidente que há certas coisas que só dois aniversários fazem por você.


Dos 20 aos 30, avança-se lentamente, com sentimentos contraditórios. A escola foi há séculos, mas ser adulto ainda é estranho. Pelo menos, adulto como aqueles anciãos de 30 que usam gírias de pai, dançam de um jeito engraçado e parecem ter aprendido a se vestir em algum sitcom da Warner. A resposta sincera a quantos anos você tem, nessa fase, seria: 26, queria fazer 25, 25, queria fazer 24, até chegar a 20 -acho que ninguém, a não ser dopado por doses cavalares de nostalgia e amnésia, gostaria de ir além, ou melhor, aquém, e voltar à adolescência.



Trinta anos é uma idade marcante. Agora é inegável que você ficou adulto, e se o seu quarto ainda guarda algum vestígio da escola (uma coleção de latinhas? Um cone de trânsito? Uma bandeira da Jamaica?) é o caso de refletir seriamente sobre a sua autoimagem. Trinta e um, 32, você vai anotando, sem perder a conta. Mas aí você faz 35 e entra numa zona cinzenta (ou grisalha?) em que idade não significa mais muita coisa. A impressão que eu tenho, a esta altura do campeonato -qual altura, exatamente?-, é que todo mundo tem a minha idade. Meus amigos de 60 e poucos, meus amigos de 20 e muitos. Trinta e dois? Quarenta e oito? Não sendo púbere nem gagá, tão todos no mesmo barco, uns com mais dor nas costas, outros com os dentes mais brancos, mas no mesmo barco, trabalhando, casando, separando e resmungando no Facebook. Deve ser por isso que, sem perceber, parei de contar.



Trinta e sete, Antonio! Você tem 37!, interveio minha mulher, lá no bar, meio brava com o meu lapso. Ainda fiz as contas no celular, pra ter certeza. Era isso mesmo. Trinta e sete, vou fazer 38, se Deus quiser e não morrermos todos sem água e sem luz até agosto de 2015.


(É em 2015 que a gente tá, né?)