segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O espírito de Natal em um conto inédito de China Miéville


China Miéville 
Tradução: Fábio Fernandes 
Ilustração: Odyr
Da Ilustríssima

SOBRE O TEXTO Num futuro indeterminado, tudo o que diz respeito ao Natal foi transformado em marcas registradas: os festejos só podem ocorrer sob licença. Neste texto, o escritor britânico China Miéville visita um tópico dos contos dedicados a essa temporada -o roubo do espírito natalino- e o relê em chave política.

*

Podem me chamar de infantiloide, mas eu adoro toda essa bobajada -a neve, as árvores, os enfeites, o peru. Adoro presentes. Adoro canções natalinas e músicas bregas. Eu simplesmente adoro o Natal.

Foi por isso que fiquei tão empolgado. E não só por mim mas por Annie. Aylsa, sua mãe, disse que não entendia para que tanto reboliço e por que eu era sentimental, mas eu sabia que Annie mal podia esperar. Ela podia ter 14 anos, mas, em se tratando disso, eu tinha certeza de que ela ainda era uma garotinha, sonhando com meias na chaminé. Sempre que é a minha vez de ficar com Annie -eu e Aylsa temos alternado desde o divórcio- dou o melhor de mim no dia 25.

Confesso que Aylsa fez com que eu me sentisse mal. Fiquei com muito medo de Annie se decepcionar. Então nem dá pra dizer como fiquei maravilhado ao descobrir que pela primeira vez na vida eu ia conseguir fazer uma comemoração adequada.

Não me entendam mal. Eu não tenho ações da NatividadeCo, e nem condições de pagar uma licença de usuário para um dia, então não poderia fazer uma festa legalizada. Por algum tempo pensei em comprar de um dos concorrentes mais baratos tipo a XmasTym, ou um derivado de uma não especialista, como a Coca-Crissmas, mas a ideia de fazer um Natal de pobre era deprimente demais. Eu não poderia usar muitas das coisas tradicionais e, se você não pode ter tudo, qual é o sentido? (A XmasTym tinha os direitos de Egg Nog. Mas Egg Nog é nojento.) Aquelas outras firmas vivem tentando criar alternativas próprias para clássicos privatizados, como renas e bonecos de neve, mas nunca decolam. Jamais esquecerei o fracasso que foi a reação do público à Lagartixa Natalina da JingleMas.

Não: assim como a maioria das pessoas, eu ia ter um pequeno Evento Invernal, só Annie e eu. Desde que eu tenha o cuidado de ficar longe de produtos licenciados, tudo vai dar certo.

Com as decorações feitas de hera você ainda pode se safar; visgo é proibido, mas eu tinha guardado um monte de tomates-cereja, que estava planejando espetar em cactos. Não ia arriscar guirlandas, mas eu tinha uns dois cintos coloridos que ia pendurar na minha aspidistra. Você sabe como é esse tipo de coisa. Os inspetores não são tão maus: às vezes eles fazem vista grossa para um badulaque ou outro (o que é muito bom, porque as multas para comemorações de Natal sem licença são astronômicas).

Eu estava me preparando assim, mas aí aconteceu a coisa mais extraordinária. Ganhei na loteria!

Quer dizer, não ganhei-ganhei. Mas fiquei entre os primeiros, e foi um premiozinho bacana. Um convite para uma festa especial, licenciada, de Natal, no centro de Londres, organizada pela própria NatividadeCo.

Quando li a carta, tremi dos pés à cabeça. Era a NatividadeCo, então a coisa seria pra valer. Ia ter Papai Noel, Rodolfo, Visgo, Bolos, e uma Árvore de Natal com presentes embaixo.

Esse último item era algo com que eu não me conformava. Era uma coisa tão triste colocar meus presentes embrulhados em papel-jornal ao lado da aspidistra, mas desde que a NatividadeCo comprou os direitos do papel colorido e da colocação de presentes embaixo de árvores, os inspetores haviam caído com todo o rigor em quem cometesse Presenteamento Subarbóreo Grave. Eu não parava de pensar que Annie ia poder estender a mão e apanhar seu presente sob galhos de pinheiro.

Talvez eu não devesse ter contado pra Annie, apenas feito a surpresa a ela no dia, mas eu estava empolgado demais. E, pra ser honesto, em parte eu contei a ela porque eu queria deixar Aylsa com inveja. Ela era muito metida a besta, sempre dizendo que não sentia saudade do Natal e coisa e tal.

- Pense só -eu disse- vamos poder cantar canções de Natal legalmente! Ah, desculpe, você odeia canções de Natal, não é?- Eu fui muito escroto.

Annie ficou quase doente de empolgação. Ela mudou seu nick on-line pra ehchegadaaestacao, e até onde eu pude acompanhar ela passava o tempo todo se gabando para seus pobres amigos, mortos de inveja. Dei uma espiadinha na tela quando fui levar chá pra ela: as janelas de chat estavam cheias de nomes como tinkerbell12 e punhadodeflores, e tudo o que eu podia ver eram exclamações como naaaaummm??!!nataaaalll??!! taaauuum legaaall!!!!! antes que ela bloqueasse a tela exigindo privacidade.

- Tenha piedade -eu disse a ela.- Não esfregue isso na cara das suas amigas -mas ela simplesmente riu e me disse que estavam combinando de se encontrar no dia de qualquer maneira, e que eu não sabia do que estava falando.

Quando Annie acordou no dia 25, havia uma meia esperando por ela na ponta da sua cama, pela primeira vez em sua vida, e ela veio tomar café carregando a meia e sorrindo de orelha a orelha. Eu tive um prazer enorme em sacudir meu passe da NatividadeCo e dizer, perfeitamente dentro da lei, Feliz Natal, meu amor. Fiquei feliz porque o ® era mudo.

Eu havia mandado o presente dela para a NatividadeCo, conforme as instruções. Ele estaria esperando sob a árvore. Era o modelo mais avançado de console. Mais do que eu podia pagar, mas sabia que ela ia adorar. Ela é ótima em videogames.

Saímos cedo. Havia um número razoável de pessoas nas ruas, todas fazendo aquilo que fazemos no dia 25, quando, sem dizer nada ilegal, você ergue as sobrancelhas e sorri um cumprimento natalino.
Tecnicamente era um dia de semana regular para os horários dos ônibus, mas, naturalmente, metade dos motoristas estava de licença por motivo de doença.

- Não vamos ficar esperando -disse Annie.- Temos um montão de tempo. Por que é que a gente não anda?

- O que você comprou pra mim? -eu não parava de perguntar pra ela. -Qual é o meu presente? -eu fazia de conta que ia espiar dentro da bolsa dela, mas ela balançava o dedinho.

- Você vai ver. Estou muito satisfeita com meu presente, pai. Acho que é algo que vai significar muito pra você.

Não era para termos demorado tanto, mas, por algum motivo, fomos devagar, indo no nosso tempo, conversando, e de repente percebi que íamos chegar atrasados. Isso foi um choque. Comecei a correr, mas Annie ficou mal-humorada e reclamou. Me segurei para não dizer de quem tinha sido a ideia de ir a pé até lá. Corremos um bocado até o centro de Londres.

- Vamos -Annie não parava de falar. - Estamos chegando?

Havia um número surpreendente de pessoas em Oxford Street. Uma multidão e tanto, todos com aquela expressão secreta de felicidade. Eu também não podia evitar sorrir. Subitamente Annie já tinha disparado lá pra frente, voltando depois pra me puxar. Agora ela queria acelerar. E eu tinha que pedir desculpas a cada vez que esbarrava nas pessoas.

A maioria era uma garotada de uns vinte anos, casais e grupinhos. Eles abriram caminho, indulgentes, enquanto Annie me arrastava, corria na frente, voltava a me arrastar.

Era realmente um número impressionante de pessoas.

Mais adiante se ouvia música e alguns gritos. Fiquei tenso, mas não pareciam gritos zangados.

-Annie! -gritei mesmo assim.- Venha cá, meu amor! -eu a vi pulando por entre a massa.

E era realmente uma massa. Aquele som era de um apito? De onde tinha vindo todo mundo? Eu estava sendo empurrado, puxado como se toda aquela gente fosse uma maré. Vislumbrei um garotão e, com um susto, percebi alarmado que ele estava usando um macacão grande com uma rena de nariz vermelho. Só de olhar saquei que ele não tinha licença.

-Annie, venha cá -eu a chamava, mas o som da minha voz foi sufocado. Uma moça perto de mim elevou a voz, cantando uma nota, muito alta.

- Baaaaa...

O rapaz com quem ela estava começou também, e depois o amigo dele, e depois um bando de gente ao lado deles, e em poucos segundos estava todo mundo fazendo a mesma coisa, uma mistura de vozes bonitas e horrorosas, se combinando naquele gritinho alto insuportável.

- Baaaaa... -e aí, com um timing impecável, todas as centenas de pessoas meio que olharam umas nos olhos das outras, e a canção continuou.

- ....te o sino pequenino, sino de Belém...

- Vocês estão loucos? -eu gritei, mas ninguém me ouvia por sobre aquela maldita canção ilegal. Ah, meu Deus. Eu sabia o que estava acontecendo.

Estávamos cercados por natalinos radicais.

Eu zanzava de um lado para o outro, gritando por Annie, correndo atrás dela, procurando a polícia. Não havia como as câmeras de rua não captarem aquilo. Eles mandariam o Esquadrão Natividade.

Vi Annie no meio da multidão -diabos, tinha mais gente chegando!- e corri em sua direção. Ela me chamava, olhava ansiosa ao redor, e eu batia nas pessoas para que saíssem da frente, mas, quando me aproximei, vi que ela estava olhando para alguém ao lado dela.

- Pai! -ela gritou. Vi os olhos dela se arregalarem ao me reconhecer, e então -será que eu tinha visto uma mão agarrá-la e puxá-la para fora dali?

- Annie! -eu gritei quando cheguei aonde ela havia estado. Mas ela não estava mais lá.

Eu estava entrando em pânico: ela é uma garota inteligente e estávamos em plena luz do dia, mas de quem era aquela mão, diabos? Liguei para o telefone dela.

- Pai -ela respondeu. O sinal estava horrível naquela multidão. Eu gritava, perguntando onde ela estava. Ela soava tensa, mas não assustada. -... OK... eu vou estar... ver... um amigo... na festa.

- O quê? -eu estava gritando. - O quê?

- Na festa -ela disse, e eu perdi o sinal.

Certo. A festa. Era para lá que ela estava indo. Eu me controlei. Abri caminho empurrando a multidão.

A coisa estava ficando mais bolchevique. Estava virando uma baderna natalina.

Oxford Street estava congestionada, eu estava no meio do que, de repente, havia se tornado milhares de manifestantes. Foram séculos abrindo caminho, ansioso, através da manifestação. O que havia parecido uma multidão anônima subitamente floresceu em variedade e cor. Todo mundo estava marchando. Eu passava por diferentes contingentes de manifestantes.

De onde diabos haviam saído todas aquelas bandeiras? Slogans flutuavam sobre a minha cabeça como destroços de um navio. PELA PAZ, SOCIALISMO E NATAL; TIREM AS MÃOS DA NOSSA TEMPORADA DE FESTAS; PRIVATIZEM ISTO. Um mesmo cartaz estava em toda parte. Era muito simples e clean: a letra R em um círculo vermelho, atravessada por uma linha diagonal.

Ela vai ficar OK, pensei, angustiado. Ela disse isso. Eu olhava ao meu redor enquanto avançava na direção da festa, distante apenas umas poucas ruas agora. Eu podia ver a manifestação.

Aquele pessoal era louco! Não que eles não tivessem boa intenção, mas aquilo não era jeito de conseguir as coisas. Tudo o que eles iam conseguir era causar encrenca para todo mundo. A polícia ia chegar ali a qualquer momento.

Mesmo assim, havia que admitir que sua criatividade era admirável. Com todas as roupas e as cores, aquilo parecia incrível. Não faço ideia de como eles tinham conseguido contrabandear aquele negócio pelas ruas, de como haviam organizado aquilo. Deve ter sido on-line, o que teria implicado um uma encriptação bastante sofisticada pra tapear o copware. Cada trecho da marcha parecia cantar algo diferente, ou cantar canções que eu não ouvia havia anos. Eu atravessava um país das maravilhas invernal.

Passei por um contingente de cristãos, todos carregando cruzes, cantando hinos natalinos. Bem à frente deles havia um grupo de gente malvestida vendendo exemplares de um jornal de esquerda e carregando cartazes com uma foto de Marx. Eles haviam sobreposto um chapéu de Papai Noel ao retrato dele. Eu sonho com um Natal vermelho, eles cantavam, e mal.

Agora nós estávamos ao lado da Selfridges, e um nó de gente havia parado ao lado das vitrines abarrotadas com a mistura costumeira de perfumes e sapatos. Os manifestantes olhavam uns para os outros, e de novo para a vitrine. Numa rua lateral, alguns passantes observavam o extraordinário espetáculo.

Levei um susto ao ver compradores normais: para mim era inconcebível que houvesse alguém ali além dos manifestantes que marchavam nas ruas.

Eu sabia o que os observadores da Selfridges estavam pensando: eles se lembravam (ou lembravam de terem lhes falado -alguns deles pareciam jovens demais para lembrar da vida antes do Ato de Natal) de uma antiga tradição.

- Se não vão nos dar nossas vitrines de Natal -uma mulher rugiu- vamos ter que criá-las. -E, com isso, eles pegaram marretas. Meu Deus. Eles quebraram a vitrine.

- Não! -ouvi um homem vestindo um sofisticado paletó de lã gritar com eles. Um contingente dos manifestantes, que parecia horrorizado, abaixou as bandeiras, que diziam AMIGOS TRABALHISTAS DO NATAL. - Todos queremos a mesma coisa -gritou o homem- mas não podemos apoiar a violência!

Mas ninguém lhe dava a menor bola. Eu esperei que as pessoas começassem a roubar os artigos, mas elas simplesmente os empurraram para longe do caminho, junto com o vidro quebrado. Colocavam coisas nas vitrines. De sacolas e bolsos saíam pequenas manjedouras, Papais Noéis de papier mâché, Presentes lindamente embrulhados, Azevinho e Visgo, que os manifestantes espalhavam, compondo vitrines toscas.

Eu segui em frente. Um homem se postou no meu caminho. Ele fazia parte de um grupo de sujeitos bem-vestidos que estavam nas bordas da multidão. Com um risinho de deboche, ele me entregou um panfleto. INSTITUTO DE IDEIAS MARXISTAS VIVAS. Por Que Não Estamos Marchando.

Vemos com desdém as tentativas patéticas da velha Esquerda de reviver esta cerimônia Cristã. A ideia de que o governo 'roubou' 'nosso' Natal é tão somente um aspecto do domínio dessa Cultura do Medo que rejeitamos. Chegou a hora de uma reavaliação além da esquerda e da direita, e de forças dinâmicas revigorarem a sociedade. No mês passado, nós do IIMV organizamos uma conferência no ICA sobre por que greves são chatas e por que a caça à raposa é o novo pretinho básico...

O texto me pareceu totalmente sem pé nem cabeça. Joguei fora.

Foi quando se ouviu o trovejar de um helicóptero de combate. Fodeu, pensei. Eles chegaram.

- Atenção -disse a voz amplificada vinda do céu.- Vocês quebraram a seção 4 do Código de Natal. Dispersem imediatamente ou serão presos.

Para meu espanto a reação foi uma risada rouca. Um cântico começou. No começo não consegui entender as palavras, mas logo não havia mais como confundi-las.

- De quem é o Natal? É nosso! De quem é o Natal? É nosso!

Não pegou muito bem.

Passei por um grupo que reconheci do noticiário, natalinas feministas radicais vestidas todas de branco, usando cenouras no nariz: as sNOwMEN. Um sujeito baixinho passou correndo por mim, olhando ao redor e resmungando: Alto demais, alto demais. Começou a gritar: Qualquer um que meça até 1,55 m, venha participar do quebra-quebra com os Pequenos Ajudantes de Papai Noel!. Outro baixinho começou a discutir furiosamente com ele. Ouvi as palavras piada e condescendente.

As pessoas estavam comendo pudim de Natal, fatias de peru. Elas se obrigavam até mesmo a engolir couve-de-bruxelas, só por questão de princípio. Alguém me deu um pedaço de bolo. Bendito seja, gritou um pagão radical no meu ouvido, e me deu um panfleto exigindo que assim que tivéssemos recuperado de volta a estação nós a rebatizássemos de Solstividade. Foi expulso a pontapés por um grupo de bailarinos e bailarinas musculosos vestidos de fadas e quebra-nozes.

Eu estava me aproximando do lugar onde a festa deveria acontecer, mas agora havia ainda mais gente nas ruas. O lugar ia ser cercado. Como é que iríamos entrar?

Figuras se moviam na multidão. Que merda, pensei, a polícia. Mas não era. Era um bando agressivo, com pinta de zangado, quebrando para-brisas dos carros pelo caminho. Estavam todos vestidos de Papai Noel.

- Caralho -alguém resmungou. - São os Red & White blocs.

Era óbvio que os R&W estava ali pra criar baderna. Todo o restante da multidão tentou se afastar deles. Vão embora, porra! ouvi alguém gritar, mas não lhe deram atenção.

Agora dava para ver a polícia se aglomerando nas ruas laterais. Os Red & White blocs a atraíam para fora, sacudindo garrafas, gritando Podem vir! como fãs de Futebol® emputecidos.

Eu estava recuando. Me virei, e lá estava, o local da festa.

Hamleys, a loja de brinquedos. Os guardas armados que normalmente a protegiam deviam ter fugido muito antes, ao darem de cara com esse caos. Levantei a cabeça e vi rostos horrorizados nas janelas.
Eu devia estar lá em cima, pensei. Com vocês. Eles eram os convidados da festa. Crianças e seus pais, cercados pela manifestação, vendo a chegada da polícia.

E, ah, lá estava Annie, gritando para mim, parada sob a marquise da Hamleys. Soltei um grito de alívio e corri até ela.

- O que está acontecendo? -ela gritou. Parecia apavorada. O Esquadrão Natividade estava se aproximando dos provocadores dos Red & White blocs, batendo com seus cassetetes em escudos enfeitados com guirlandas.

- Puta merda -sussurrei. Envolvi Annie com meus braços para protegê-la. - Vai dar problema -eu falei. -Se prepare pra correr.

Mas nós ficamos ali, tensos e, de repente, uma coisa surpreendente aconteceu. Eu pisquei e, do nada, apareceu um rapaz vestindo um manto branco comprido. Antes que qualquer um pudesse detê-lo, ele se posicionou entre as fileiras dos Red & White blocs e a polícia.

- Ele é louco! -alguém gritou, mas todas as centenas e centenas de pessoas foram se calando.

O homem estava cantando.

A polícia caiu em cima dele, os R&W fizeram que iam empurrá-lo pra longe, mas sua voz se elevou, e ambos os lados hesitaram. Eu nunca tinha visto alguém tão lindo.

Ele cantou uma única nota, de uma pureza que não era deste mundo. Ele a fez durar, por longos segundos, e depois continuou:

Ai, vinde todos à porfia/ Cantar um hino de louvor.

Ele fez uma pausa, até que a tensão entre nós chegou ao limite.

Hino de paz e alegria/ Que os anjos cantam ao Senhor.

Os Red & White blocs estavam quietos. Todo mundo estava quieto.

Gló-ó-ó-ó-ó-ria in Excelsis Deo

Agora os policiais estava parando. Eles abaixaram seus cassetetes. Um a um, eles puseram seus escudos de lado.

Naquela noite venturosa/ Em que nasceu o Salvador...

Mais figuras de branco surgiam. Eles caminharam calmamente para se juntar ao seu amigo. Assustei-me ao notar que estava tapando meus próprios olhos. Havia uma autoridade implacável nessas figuras incríveis que haviam aparecido do nada, aqueles rapazes altos, belos, e tão jovens. Seus mantos eram de um branco inconcebível. Eu não conseguia respirar.

Agora todos eles cantavam. Gló-ó-ó-ó-ó-ó-ria in Excelsis Deo.

Um a um, os policiais tiraram seus capacetes e se puseram a ouvir. Eu podia escutar os gritos frenéticos de seus superiores saindo dos auriculares que eles removiam.

Naquela noite venturosa/ Em que nasceu o Salvador... Os cantores fizeram uma pausa, até eu ficar desesperado para que eles terminassem a melodia: Vozes de anjos harmoniosas/ Lançam ao céu este clamor.

O grupo de policiais sorria e chorava em meio a uma montanha de cassetetes e proteções corporais descartadas. O primeiro cantor levantou a mão. Ele olhou para todo o armamento jogado ali. Declamou para os Red & White blocs.

- Vocês não deveriam ter tentado lutar -ele disse, e eles pareceram envergonhados. Ele aguardou.

- Vocês teriam sido massacrados. Ao passo que agora -ele continuou- esses idiotas se desarmaram. Agora é a hora de lutar... -Ele se girou e, ao mesmo tempo, ele e seus colegas cantores se jogaram em cima da polícia, os mantos adejando.

Os policiais indefesos ficaram pasmos, deram meia volta e saíram correndo; a multidão rugiu e começou a segui-los.

- Nós somos o Partido Cantor Radical dos Homens Gays! -o cantor principal gritou em seu registro de tenor exótico. - Orgulhosos de lutar pelo Natal do Povo!

Ele e seus camaradas começaram a entoar: - Estamos aqui! Somos o coral! Viemos pra ficar!

- É um milagre de Natal! -disse Annie. Eu simplesmente a abracei até ela resmungar - Tá bom, papai, calma.

Atrás de mim a multidão gritava, tomando as ruas.

- Esse é o problema com os Red & White blocs -resmungou Annie. - Maldita estratégia de tensão do caralho. Bando de aventureiros anarquistas.

- É -disse um garoto do lado dela. - Seja como for, metade deles são agentes da polícia. É a regra número um, não é? Aquele que quer mais violência é o policial.

Eu estava boquiaberto, minha cabeça indo de um para o outro, como um imbecil assistindo a uma partida de tênis.

- O quê? -eu disse finalmente.

- Qual é, pai -disse Annie. Ela beijou meu rosto.- Você nunca teria me deixado vir de outra maneira. Eu tinha que fazer você andar até aqui ou a gente teria chegado cedo demais. E ficado preso igual a eles. - Ela apontou para os ganhadores do prêmio que ainda estava encarando nos andares superiores da Hamley.- Então eu tive que sair correndo ou você nunca teria me deixado entrar. Vem.- Ela me pegou pela mão. -Agora que a gente passou pelas linhas da polícia, podemos retomar a marcha passando pela Downing Street.

- Ora, então é a oportunidade perfeita para sairmos daqui...

- Pai -ela disse. Olhou para mim com dureza.- Eu não pude acreditar quando você ganhou o prêmio. Nunca pensei que teria uma chance de vir para cá hoje.

- Alguém te agarrou -falei.

- Foi Marwan -ela indicou o rapaz que havia falado.- Pai, este é Marwan. Marwan, este é meu pai.

Marwan sorriu e apertou minha mão educadamente, mudando o cartaz de mão. MUÇULMANOS PELO NATAL, dizia. Ele me viu lendo.

- Isso não representa grande coisa para mim -ele disse- mas todos nós nos lembramos de como esse pessoal veio em nossa ajuda quando a Umma plc tentou privatizar o Eid. Sabe, isso foi muito importante. De qualquer maneira... -ele desviou o olhar tímido.- Eu sei que é importante para Annie -ela olhou para ele de lado. - Ah-pensei.

- Marwan é punhadodeflores, pai -disse ela.- Na internet.

- Escuta, eu tenho que dizer que estou muito irritado com isso tudo -falei. Estávamos chegando perto de Downing Street. Marwan havia se despedido na Trafalgar Square, então estávamos sós de novo, só nós e mais 10 mil pessoas. -Eu te comprei... eu perdi um monte de... tem um presentão naquela festa...

- Sendo franca, pai, eu não preciso mesmo de um console novo.

- Como você sabia...? -perguntei, mas ela já continuava sua fala.

- O que eu tenho está muito bom. De qualquer maneira, eu uso mais mesmo pra jogos de estratégia, e eles não consomem tanta energia. Além disso, tenho todos os pinkopatches na minha máquina. Seria um saco transferi-los, e baixá-los de novo é arriscado demais.

- Que patches são esses?

- Coisas tipo o Red3.6. Ele converte uma pá de jogos. Transforma SimuCityState em RedOctober. Coisas desse tipo. Eu já cheguei no nível 4. O chefe do fim do nível é um czar. Assim que eu conseguir descobrir como passar por ele eu vou chegar ao Poder Duplo.

Desisti até de tentar entender.

Na entrada da residência do primeiro-ministro havia uma enorme Árvore de Natal® branca e prata. Todo mundo começou a vaiar quando nos aproximamos. O Exército estava protegendo o local, então as pessoas fizeram questão de garantir que as vaias eram bem-humoradas. Alguém jogou um pudim de Natal, mas o povo o tirou dali rapidinho.

- Isso aí não é o Natal! -nós todos gritamos ao passar. - Isto aqui é que é o Natal!

À medida que os céus iam escurecendo, a multidão foi começando a dispersar um pouco, antes que a polícia pudesse se reagrupar. Passamos por um contingente em que todos usavam bandanas vermelhas e nos somamos à cantoria deles:

Já faz tempo que eu pedi/ Mas o meu Papai Noel não vem/ Com certeza já morreu/ E a Internacional/ É tudo que a gente tem.

- Mesmo assim -eu disse- estou um pouco chateado por você não ter conseguido ver a festa.

- Pai -disse Annie, e me sacudiu.- Este foi o melhor Natal de todos. De todos. OK? E foi tão maravilhoso passar ele com você.

Ela me olhou de lado.

- Já adivinhou? -ela perguntou.- Qual é o seu presente?

Ela estava me encarando, bem séria, bem intensamente. Fiquei bastante emocionado.

Pensei em tudo o que havia acontecido naquele dia e nas minhas reações. Tudo pelo qual eu havia passado e visto e integrado. Percebi como eu me sentia diferente agora do que naquela manhã. Era uma revelação surpreendente.

- Sim... -hesitei.- Sim, acho que sim. Obrigado, meu amor.

- O quê? -ela disse. - Você adivinhou? Merda.

Ela segurava um pacotinho embrulhado. Era uma gravata.




CHINA MIÉVILLE, 42, escritor britânico, autor do romance A Cidade e a Cidade, que acaba de sair no Brasil pela Boitempo.

FÁBIO FERNANDES, 48, é tradutor, responsável por trazer ao português livros como Laranja Mecânica (Aleph).

ODYR, 47, quadrinista, ilustrou Guadalupe (Quadrinhos na Cia.), de Angélica Freitas.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O cineasta japonês Hayao Miyazaki é o grande mago do cinema moderno



Por Nigel Andrews
Do Financial Times
Tradução de Paulo Migliacci


"É o destino da vida moderna que repetidamente percamos o contato com a natureza, o meio ambiente, o planeta. Mas tentamos repetidamente retomá-lo. É como um círculo. Nos corações e almas das crianças, quando elas nascem, a natureza já existe, com raízes fundas. Por isso, o que desejo fazer em meu trabalho é encontrar um caminho para suas almas" - Hayao Miyazaki

Magia é uma palavra usada demais e uma mercadoria encontrada de menos. Como palavra, ela é repetida incansavelmente, quer como superlativo coloquial, quer como marca multitarefas de aprovação jornalística. Mas como mercadoria, ela é mais rara que dentes de dragão. Onde se pode encontrá-la, e em que forma? No trabalho de um prestidigitador? Talvez, mas verdadeira magia é mais que o simples truque de um ilusionista. Em um filme de fantasia e aventura de Hollywood? Nesse caso, ela muitas vezes terá algo de kitsch, artificial e exibicionista, por obra de mutações produzidas via computação gráfica.

Mas e quanto à magia relacionada à palavra mago vidente, visionário, encantador? E quanto à magia definida pelo dicionário Oxford como algo que influencia os acontecimentos cotidianos pelo uso de forças misteriosas ou sobrenaturais, ou que a Wikipedia, em um raro momento de exatidão na busca, define como tentativa de entender, experimentar e influenciar o mundo usando rituais, símbolos, ações, gestos e linguagem?

Se o grande mago do drama de ficção é Próspero, de Shakespeare, um mago que serve de agente a um artista mágico, o grande mago do cinema moderno é o japonês Hayao Miyazaki, com ou sem os personagens de animação que ele cria para executar seus encantos. Ele é o maior fantasista do reino do cinema porque seus filmes são mais que fantasias. Como A Tempestade, seus melhores filmes são fábulas que buscam sondar as profundezas da mortalidade e da moralidade. Ele remapeia, e até re-mitifica a experiência por meio do uso de rituais, símbolos, ações, gestos e linguagem para tomar de empréstimo a definição da Wikipedia.

Protegido contra intempéries, de alguma maneira, eu não havia assistido a nenhum dos filmes de Miyazaki antes de A Viagem de Chihiro, em 2001. Não demorei a perceber que aquele era o melhor filme de animação que já tinha visto. Continua sendo. É um conto de fadas que se passa entre deuses, monstros, jovens e tiranos ;em um parque de diversões aparentemente abandonado que se transforma em império de possibilidades oníricas, e trata de temas como a perda, o amor, o amadurecimento e a identidade.

O filme oferece algumas das maiores imagens já propiciadas pela narrativa de fantasia. Os pais que se transformam em porcos comilões o herói que toma a forma de dragão voador; o feroz monstro da lama; o trem que viaja na água. Continua a ser o único filme ao qual, usando a magia da matemática surreal só para aquela resenha, atribuí seis estrelas, em uma classificação cuja nota máxima era cinco.

Para Miyazaki, as mudanças propiciadas pela magia têm propósito moral e importância poética. Sua preocupação não é apenas com a mutabilidade das formas ou com os seres transfigurados, humanos ou animais, mas com vidas, aspirações, ideias e emoções que mudam de forma.

Todos, em seus filmes, podem ser outra pessoa, ou mesmo diversas outras pessoas, dentro de uma só história. Em O Castelo Animado (2004), Sophie, a heroína enfeitiçada, alterna entre a forma de jovem garota e de velha feiticeira. Howl, o bonito dono de castelo, também passa por rápidas metamorfoses, se tornando cachorro, espantalho e um avião de caça humano. Mesmo Calcifer, o fogo da lareira ;com seus olhos dançarinos e sua boca sarcástica; saltita, metaforicamente, para indexar mudanças de clima, emoção e anseios.

Quem um personagem é, a cada dado momento, depende de em que ponto da história, ou de sua evolução pessoal, o personagem se encontra. Na vida de um personagem ou história de Miyazaki, a catástrofe pode correr em companhia da esperança e da expectativa, o horror ao lado do humor, a realidade ao lado do sonho ou pesadelo.

E nem sempre é necessária uma transformação física. Miyazaki, como Hitchcock, tem o talento de encontrar o apocalíptico no cotidiano. E isso não pode ser demonstrado melhor do que pela sequência de abertura de A Viagem de Chihiro. Um carro que está percorrendo uma estradinha no campo se vê detido por uma grande muralha, como que um muro de arrimo ferroviário, e a única passagem é um túnel que conduz a lugar nenhum. É a singeleza surreal uma estrutura ordinária em um lugar extraordinário que parece fantasmagórica, até sinistra, nesse portal para um outro mundo. É a versão de Miyazaki para a toca do coelho de Alice no País das Maravilhas.

Essa conexão com o real é o que energiza o reino irreal de Miyazaki. O pai dele era operário em uma fábrica de componentes para aviões, e seu trabalho raramente permite que esqueçamos o fato. Máquinas voadoras realistas, fantásticas, belas, ferozes, grotescas fazem parte de quase todas as suas histórias, e isso atinge o clímax em seu filme de despedida, Vidas ao Vento, de 2013. O filme, uma biografia de um projetista japonês de aviões de caça, também é uma biografia do patrimônio de Miyazaki. Beleza e terror, bem e mal, vivem tanto no passado do cineasta quanto no passado do Japão.

Mas que grande artista criou arte que vá além de si mesmo? Se a arte não estiver conectada ainda que de modo distante à vida de seu criador, aos seus sonhos, desejos, amores e ódios, ela não tem fonte de energia. A grandeza de um artista está no escopo desse além. Os temas e percepções de Miyazaki são miraculosamente dispersos, mas também afixados como que por um cabo subterrâneo à psique do cineasta.

TRÊS OBSESSÕES

Ele é fanático quanto ao meio ambiente e à adulteração ou salvação de nosso planeta. Longe dos estúdios, um de seus passatempos é ajudar sua comunidade a remover detritos dos rios. Desse Miyazaki vem a magistral ameaça cômica do Monstro do Lodo (de A Viagem de Chihiro), a onipresença fantasmagórica dos Homens Bolha feitos de óleo e sempre mudando de forma (em O Castelo Animado) e o clímax de Princesa Mononoke, no qual maldição e redenção chegam de modo espetacular a uma paisagem maculada pelas satânicas engrenagens da indústria.

A guerra é uma segunda paixão ou antagonismo apaixonado. Nausicaa - A Princesa do Vale dos Ventos  (1984), uma mistura fantasiosa de ficção científica e folclore nascida dos mangás, e o primeiro grande sucesso internacional de Miyazaki, é um permanente armagedom. A guerra, também guerra aérea serve de ruído de fundo e de palheta pictórica de fundo a O Castelo Animado, como uma ferida no céu que não para de se reabrir dolorosamente. Em Vidas ao Vento, a guerra é um pacto faustiano que o Homem Inventor faz com o mal, e o preço que ele paga pela liberdade de sonhar.

A terceira obsessão: crianças e o processo de amadurecer. Se os jovens são a esperança do mundo, não podemos permitir que essa esperança dependa de inocência imaculada. As crianças nos filmes de Miyazaki são colocadas à prova, especialmente as meninas (e isso por um cineasta muitas vezes classificado como feminista).

O verão para as duas irmãs de Meu Amigo Totoro (1988), privadas da presença da mãe que está internada no hospital (como aconteceu com Miyazaki, cuja mãe passou muito tempo internada com tuberculose espinhal nos anos 50), se torna uma representação repleta de fantasia sobre nascer, a infância e a aquisição da sabedoria. Elas fazem amizade com um gigantesco e carinhoso animal da floresta, Totoro, que serve como uma espécie de mãe substituta. Totoro oferece sustento (em uma cena, faz uma árvore crescer por mágica) e iniciação para a vida (as leva a voar por sobre os campos em um pião aéreo).

E quando se trata da obrigação materna de permitir a troca do ventre do crescimento pelo espaço do crescimento, Totoro compartilha o papel com seu amigo, o Ônibus Gato. O ônibus tem a forma de um gato vivo com janelas, olhos como faróis e patas como rodas e é uma das grandes criações cômicas e surreais de Miyazaki, como um refúgio uterino que tivesse crescido e pudesse percorrer o mundo.

A Viagem de Chihiro também é em larga medida um desfile de pantomimas sobre o processo de amadurecer. Chihiro, a pequena heroína, está sendo levada pelos pais à sua nova escola. Quando não a encontra, a família tropeça em um reino fantasmático que oferece a Chihiro a verdadeira educação de que ela precisa uma educação para a vida, para a sabedoria e o sentimento.

Entre as coisas que ela aprende estão: nenhuma busca humana é realizada sem trabalho duro e adversidade; nenhuma figura de autoridade (nem mesmo os pais) merece confiança acrítica; sempre acredite no que vir, e não naquilo que lhe disserem; e se o amor disser que a acompanhará até os confins da terra, faça-o cumprir sua promessa.

Mas Miyazaki não passa o tempo todo dando lições de vida. Há ornamentos, glórias e piadas soltas espalhadas por todos os filmes, minúcias inconsequentes que revelam uma imaginação infatigável. Veja as minúsculas criaturas que não param de surgir, como um insano coral, em seus filmes. Em Princesa Mononoke, os pequenos fantasmas da floresta com seus olhos ocos e cabeças rotativas, em Meu Amigo Totoro e A Viagem de Chihiro as criaturas de fuligem, pequenas aranhas que correm, conspiram, e aprontam.

Ou veja o delírio de inventividade que resultou em O Castelo Animado. Parte tanque, parte fortaleza, parte fábrica, parte cortiço, parte gigantesco bule de chá, ele ronca e cambaleia pela paisagem com suas pernas parecidas com as de uma galinha, e cada uma de suas partes parece se sacudir e reajustar separadamente durante o movimento. O castelo apita, o castelo range, o castelo lança fumaça de suas chaminés.

É um triunfo de insanidade organizada e poética, com um toque de mágica. O que talvez seja a melhor maneira, ou a única maneira, de resumir o cinema de Hayao Miyazaki.



segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

David Hockney: "Quando trabalho me sinto com 30"


Por Tim Lewis
Do Observer
Tradução de Clara Allain
Ilustração de Ana Elisa Egreja


RESUMO No ano passado David Hockney deixou Yorkshire, na Inglaterra, após acontecimentos traumáticos em sua vida pessoal na região, e voltou para sua casa em Hollywood Hills. O artista britânico, 77, fala de como a Califórnia o remoçou e responde a perguntas de leitores do Observer e de personalidades do mundo cultural.

*

David Hockney quer contar uma piada. Um homem vai ao médico e diz que pretende viver pelo máximo possível de tempo. O que fazer? O médico pede que ele redija uma lista de seus vícios e então lhe diz: Muito bem, quero que você abandone o cigarro, deixe de beber, abra mão da alimentação gordurosa e desista do sexo. O homem fica chocado e fala em voz baixa: Ok. Desse jeito vou ter vida mais longa?. O médico responde: Não, mas será essa a sensação.

Como se estivesse ouvindo a piada pela primeira vez, Hockney, 77 anos, solta uma gargalhada que mais parece um uivo, terminando num urro rouco e num chiado de fumante. Estamos em duas poltronas respingadas de tinta no estúdio, que é um anexo à casa do artista em Hollywood Hills. Hockney passa a maior parte de seus dias aqui. O lugar tem tudo de que ele precisa, incluindo alguns galões de água mineral e um estoque de 2.000 cigarros Camel Wides, para a eventualidade de um terremoto atingir Los Angeles.

Ao chegar à casa, depois de subir por ruas tortuosas saindo de Sunset Boulevard, desviando de caminhões de lixo que desciam em alta velocidade no sentido oposto, foi impossível não ser dominado por uma sensação de déjà vu. Muito antes do Google Earth, Hockney pintou essas colinas em tons absurdos de laranja, verde, azul e vermelho, em paisagens como Mulholland Drive: The Road to the Studio, 1980. Agora que estou aqui, algo que eu pensava ser uma fantasia hiper-realista em tinta acrílica revela-se surpreendentemente realista -mais um exemplo do dom de Hockney para captar alguma essência de qualquer lugar ou pessoa que pinta.

A casa, comprada no final da década de 1970, se esconde atrás de portões cinzas, que não deixam transparecer o país das maravilhas que escondem. Passando por eles, o terreno desce, numa selva de exóticas samambaias e palmeiras, até a famosa piscina na parte mais baixa. O sol inclemente faz faiscarem tons iridescentes de rosa e cerúleo. O artista Howard Hodgkin disse certa vez que a casa era tão romântica e artificial quanto ele esperava -e é. Mas, hoje, tudo está calmo, e as folhas que boiam sobre a piscina traem seu uso apenas esporádico. Talvez faça tempo desde que festas tresloucadas varavam a noite e pessoas se deitavam nuas sobre as pedras quentes à beira da água.

Não saio de casa. Quase nunca saio daqui, Hockney admite. Contrastando com os trabalhos vibrantes que o cercam, sua aparência é tão sóbria quanto é sóbrio o portão da casa: calças risca de giz cinzentas, casaco cinza escuro e, inesperadamente, considerando o desdém com que ele encara qualquer forma de exercício, tênis Skechers. Vou ao dentista, ao médico, à livraria e à loja de maconha, porque a cada um desses lugares é preciso ir pessoalmente. E é só. Não saio muito, na verdade, porque estou surdo demais. Estou ouvindo você agora, mas se houvesse duas pessoas conversando em voz baixa eu não conseguiria ouvir, porque ouço tudo em um ruído só. Por isso não tenho propriamente uma vida social, porque a vida social é conversar e ouvir, e não consigo ouvir realmente. Mas está tudo bem, tenho um monte de coisas para fazer, estou bem.

Você é freguês regular da loja de maconha? Bem, sou... ele começa a responder, tirando a carteira do bolso de trás para mostrar seu cartão de paciente de maconha medicinal, como se estivesse sendo revistado pela polícia. Para conseguir esse cartão só é preciso falar 'tenho dor nas costas, ansiedade ou alguma coisa', e pronto. E é ótimo, na verdade. Não fumo muito, mas, como não tomo mais álcool, um pouco de maconha à noite às vezes é agradável.

Hockney voltou para Los Angeles no verão de 2013, depois de oito anos na Inglaterra, a maior parte do tempo em Bridlington, na parte leste de Yorkshire. Foi um período produtivo, em que ele ampliou seus horizontes técnicos e tecnológicos. Sua produção foi surpreendente para um artista de qualquer idade: desde milhares de pequenos desenhos em seu iPhone e iPad até enormes paisagens da região de Yorkshire Wolds (notadamente Bigger Trees Near Warter, de 12,2 metros por 4,6 metros), culminando numa exposição triunfal na Royal Academy, em 2012. Mais de 600 mil pessoas viram David Hockney: A Bigger Picture, o dobro do número previsto de visitantes -e esse público se repetiu quando a mostra viajou para Bilbao e Colônia.

Mas sua saída de Yorkshire foi repentina -até insatisfatória. Não parecia ser a hora da despedida; problemas pessoais se impuseram. Em setembro de 2012, Hockney sofreu um AVC. Num primeiro momento ele não se deu conta do que tinha acontecido. Levantou-se cedo e saiu para comprar o jornal, mas então percebeu que não conseguia dizer frases completas. Depois, em março do ano passado, um de seus assistentes de estúdio, Dominic Elliott, de 23 anos, morreu na casa do artista, em Bridlington, após ingerir um produto de limpeza doméstica, sob efeito de ecstasy e cocaína. Por fim, a surdez de Hockney, que é hereditária e o obriga a usar aparelhos nos dois ouvidos, piorou.

O retorno a Hollywood Hills, onde ele viveu durante boa parte dos anos 1980 e 1990, tem sido um tanto catártico, ele acredita. Antes de deixar a Inglaterra, estava trabalhando sobre paisagens sombrias em Yorkshire, desenhadas a carvão, mas, na Califórnia, decidiu outra vez usar tintas acrílicas ousadas e fazer alguns retratos. O primeiro foi de Jean-Pierre Gonçalves de Lima, seu assistente principal, sentado numa cadeira com a cabeça apoiada nas mãos.

Comecei essa pintura de JP, diz. Nos sentíamos muito caídos, muito mesmo. Estávamos deprimidos por causa do que aconteceu na Inglaterra e tínhamos acabado de voltar. Tinha outras coisas acontecendo, mas comecei a fazer esses retratos, e só foi preciso isso. Pintei 50 pessoas, todas na mesma cadeira, na mesma posição. Levou três dias cada uma, mais ou menos três sessões de seis horas, e eu curti fazer isso. Chamei pessoas para virem sentar-se ali e falei: É uma exposição de 18 horas.

Desde então, Hockney não parou mais. Ele continua a mexer com tecnologia para produzir trabalhos novos. (Trabalho oito dias por semana, diz Gonçalves de Lima, fingindo estar exasperado. Todo dia é segunda-feira.) Ele completou recentemente um conjunto de cinco desenhos fotográficos: montagens em diferentes perspectivas de pessoas distribuídas por seu estúdio, exibidas em telas de alta definição. Esses trabalhos estão expostos na Pace Gallery, em Nova York, onde ficarão até 10 de janeiro, juntamente com alguns dos retratos na cadeira e pinturas de grupos de bailarinos -uma homenagem a A Dança, de Henri Matisse.

Quando nos encontramos, Hockney acabava de começar uma série de estudos mais convencionais de jogadores de baralho. Com os olhos azuis cintilando, ele diz que agora entende o que atraiu Cézanne e Caravaggio para o mesmo tema. Os jogadores ficam razoavelmente parados, suas mãos estão sobre a mesa, eles estão concentrados, eles me ignoram, mas mesmo assim me sinto próximo deles.

Hockney está determinado a olhar para o futuro, mas nós ganhamos uma oportunidade preciosa para uma incursão retrospectiva em sua vida com o lançamento do documentário que leva seu nome, que estreou no mês passado e será exibido pela BBC2 ano que vem.

Hockney acende um Camel Wide -agora só restam 1.999 no estoque- e se prepara para responder perguntas de outros artistas, amigos e leitores do Observer.


ARTISTAS PERGUNTAM

Grayson Perry (artista visual) - Tenho a sensação de que, à medida que vou ficando mais velho, quero fazer arte cada vez mais feliz. O que você acha, David?

David Hockney -É uma boa pergunta. Bom, minha arte é brincalhona, ela tem muito disso. Não sei se ela é feliz, mas acho que não é infeliz. O estado de ânimo em que você está sempre transparece em seu trabalho. Na verdade, se estou muito deprimido e infeliz, eu nem trabalho. Isso não acontece com muita frequência. Geralmente eu trabalho sete dias por semana. Hoje em dia, o trabalho é a única coisa que eu faço. Estou com, deixe eu ver, 77 anos, e sinto que ainda estou apenas explorando coisas. Neste momento, estou explorando a perspectiva de maneira nova. Isso é interessante para mim.

Não sou um artista deprimido. A arte deve transmitir alegria. Ainda não vi a exposição de Matisse [a exposição Cut-Outs da Tate que foi levada aos Estados Unidos], pretendo ir na semana que vem quando eu estiver em Nova York, mas estou com muita vontade de ver. Matisse é pura alegria. Jovens e velhos amam isso, não? E acho que minha mostra na Royal Academy foi vista por jovens e velhos, então isso deve ser uma coisa boa.

Ali Smith (escritora) - Como você descreveria o lugar onde as coisas que você já leu e a música que conhece penetram os quadros que você faz? Olho para suas paisagens e de alguma maneira eles me parecem... Beethoven. É uma forma de sinestesia em ação?

Se é sinestesia, não sei. Alguém disse que sou sinestesista devido à cor que usei nas imagens que fiz para o palco de óperas anos atrás, mas acho que não, na realidade. Mas Beethoven... talvez eu estivesse ouvindo Beethoven algumas vezes quando pintei uma paisagem. Eu me lembro de que no carro, a caminho de Woldgate, eu ouvia Glenn Gould tocando ao piano a versão de Franz Liszt da Quinta Sinfonia de Beethoven. O carro foi o último lugar onde pude realmente ouvir música, porque era um carro bom, tinha 18 caixas de som.

Bella Freud (estilista) - Como você bolou um jeito tão bom de se vestir? Foi algo pensado com cuidado ou foi um experimento casual que funcionou bem?

Foi por acaso! Não sei, meu pai era um dândi. Ele sempre usava ternos, e eram feitos sob medida. Ele não ganhava muito, mas naquela época as pessoas mandavam fazer seus ternos. Ele os mandava fazer em Bradford, só isso. Hoje eu tenho uns dez ternos e na realidade é só isso que uso. Durante uns 20 anos a Fallan & Harvey em Savile Row fez meus ternos. E eu pinto de terno, então alguns estão mais manchados que outros. Mas é só isso que eu uso.

Quando você é um jovem artista, você quer chamar a atenção. É necessário, mas depois de ter chamado a atenção, está feito. Não penso muito sobre roupa, simplesmente visto alguma coisa. Hoje vesti esta calça mais nova. Bem, é mais nova que as mais velhas.

David Shrigley (artista visual) - Você tem a mesma paixão por fazer arte de quando era mais jovem?

Tenho ainda mais. Estou trabalhando mais hoje do que trabalhava 20 anos atrás, estou produzindo mais. Provavelmente porque tenho mais certeza das coisas. Tenho plena confiança no que estou fazendo. Eu sei que meu trabalho é interessante. Sei disso porque vejo o trabalho de outras pessoas e sei que o meu é diferente. Eu sei que estou um pouco por conta própria. Gosto do seu trabalho. Vi sua exposição na Hayward Gallery. Achei muito, muito boa. Uma exposição memorável.

Paul Smith (estilista) - Você ainda desenha do modo mais tradicional, como fazia inicialmente quando saiu do Royal College?

Sim, eu desenho. Em 2013 fiz uns 30 retratos, desenhos a carvão -bem convencionais, na realidade, mas não tanto assim. Os desenhos me levaram dois dias. Dos 16 aos 20 anos eu só fiz realmente desenhar, porque estava na escola de artes de Bradford e em Bradford você podia ficar na escola das 9h às 21h. Passei quatro anos desenhando. Se você faz isso você melhora, qualquer pessoa melhoraria, mas hoje não são muitas as pessoas que tentam, e é esse o problema. Eu tentei e me aperfeiçoei rapidamente.

Não sei como estão as escolas de arte hoje, mas me disseram que elas não ensinam mais desenho. 

Isso me parece uma insensatez. O desenho será necessário no futuro. Videogames e outras coisas -são pessoas desenhando. Sempre é preciso voltar à tábua de desenho. Sempre. Mesmo no computador, é preciso voltar à prancheta de desenho.

Yinka Shonibare (artista visual) Desenhar com o iPad lhe dá a mesma sensação que desenhar no papel?

Não, porque você está desenhando numa folha de vidro. Mas num iPad você pode desenhar para sempre, e numa folha de papel isso não é possível. E no iPad você desenha de forma um pouco diferente, mas é só isso.

O desenho existe há 50 mil anos, não é verdade? Acho que ele vem de algum lugar muito profundo em nosso íntimo. Quando aquele pessoal todo nos anos 1970 estava tentando abrir mão do desenho, eu fui ver essas pessoas e elas me disseram: Agora não é mais preciso desenhar. E eu observei: Por que vocês não tentam dizer isso àquela criancinha ali? Tentem lhe dizer que ela não precisa desenhar e vejam o que acontece.


LEITORES PERGUNTAM

Se você pudesse dar um jantar para cinco pessoas, vivas ou mortas, quem seriam?

Cinco pessoas: Picasso, Goya, Rembrandt, Michelangelo e um escritor, talvez Goethe, porque sei que ele tinha um papo interessante e porque não sei muito sobre ele.

Eu frequentemente faço uma peregrinação até a galeria Salts Mill, em Saltaire, para ver suas obras e me comovo com a dos últimos momentos de vida de sua mãe. 

Quando você cria um trabalho profundamente pessoal, como esse, como se sente quando volta para vê-lo alguns meses ou anos mais tarde?

Penso em minha mãe. Penso nela com frequência. Nos últimos dez anos de vida dela eu ia vê-la quatro vezes por ano. Ela viveu até os 99 anos. Eu passava uma semana em Bridlington e a desenhava, sempre. Pensava que talvez aquela fosse a última vez que a veria. E ainda tenho todos aqueles desenhos. A pintura da qual você fala pertence a mim, eu apenas a cedi temporariamente a Saltaire. Guardei todas as pinturas e os desenhos de minha família; só dei uma para a Tate porque a queriam, mas fiquei com muitas. Mais adiante vou dá-las a museus e assim por diante.

Uma das coisas que sempre amei em você e seu trabalho é que você dá a impressão de ser totalmente indiferente às críticas. Essa impressão é verdadeira? Ou alguma crítica já o feriu ou o obrigou a rever seu trabalho?

Não, isso nunca aconteceu. A maioria das críticas não é grande coisa. Se eu prestasse atenção aos críticos, ficaria louco. Nunca dei importância a Brian Sewell; ele me ataca sempre, ataca todos os artistas ingleses contemporâneos, mas na realidade ele é uma piada, só isso. Nunca o levei a sério. Sim, sempre fui capaz de ignorar as críticas. Na realidade, sempre tive muita autoconfiança. Quando cheguei ao Royal College of Art, as pessoas me tratavam com sarcasmo por eu ser de Yorkshire, faziam piadinhas em tom de menosprezo. Eu não dava bola, mas às vezes olhava os desenhos delas e pensava: Se eu desenhasse assim, ficaria calado. Mas eu nunca me importei, não tinha importância. 

Quando primeiro fui para Londres, imaginei que todo o mundo ali seria muito, muito bom, mas depois de quinze dias no Royal College eu já tinha formado uma opinião sobre muitas coisas. Podia ver que nem todos eram tão bons assim.

Sempre tive autoconfiança porque eu sabia desenhar. Eu tinha consciência de possuir um talento; tive essa consciência desde menino. Eu pensava: Se as coisas ficarem difíceis, eu sempre poderia pintar retratos no La Coupole, em Paris. Havia um homenzinho que desenhava retratos, e eu pensava: Eu também poderia fazer isso. Pensar que você sempre teria a opção de fazer isso ou aquilo lhe dá confiança.

Você sempre foi um homem apaixonado. Agora que está mais velho, qual é o papel do amor em sua vida? Esse papel mudou?

Amo meu trabalho. E acho que o trabalho tem amor, na realidade. Estou morando sozinho. Bem, vivo com JP, mas não somos amantes. Estou aberto à possibilidade do amor romântico, estou sempre aberto! Mas não espero isso agora. Já tive amor suficiente, estou razoavelmente feliz aqui. Não estou infeliz. Estou trabalhando, é só isso que quero fazer, e há amor em minha vida. Amo a vida. É assim que assino cartas: Amo a vida, David Hockney. Quando estou trabalhando, me sinto como Picasso, me sinto como se tivesse 30 anos. Quando paro, eu sei que não tenho, mas quando pinto, passo seis horas por dia em pé e me sinto com 30 anos, isso mesmo. Picasso disse que entre os 30 e os 90 anos, ele sempre se sentiu com 30 quando pintava.

O que você diz aos não fumantes que falam de seu vício em tom farisaico?

Uma vez eu estava caminhando no Holland Park (estava posando para Lucian Freud) e parei para observar alguns coelhos pretos brincando. Me sentei num banco e então algumas pegas -aves pretas e brancas- pousaram no chão. Eram bonitas. Eu estava sentado lá, fumando um cigarro, e três garotas passaram ao lado correndo. Elas me viram, disseram ai, ai [faz um gesto de repreensão com o dedo]. Fiquei sentado e pensei: Elas acham que são muito saudáveis, mas não viram os coelhos. Pensei: Sou mais saudável que elas.

As pessoas são mesquinhas, são sim. São mesquinhas e deprimentes: deprimentes! Uso a palavra deprimente porque acho muitas pessoas deprimentes, e elas não me interessam. São deprimentes. Deprimentes demais.

Você acha que, com sua arte, mudou a atitude das pessoas em relação à homossexualidade? Se sim, isso é importante para você?

Provavelmente, e isso é uma coisa boa, acho. Sim, quando eu era muito jovem eu já sabia que os gays escondem coisas, e eu não queria fazer isso. Pensei: Vou ser um artista, simplesmente. Tenho que ser honesto. É preciso ser honesto. Então era isso, eu era gay e isso não me preocupava. E eu sempre dizia que vivíamos na zona boêmia e que ela é um lugar tolerante. Naquela época existia uma zona boêmia. Hoje em dia não existe, porque, para haver uma zona boêmia, é preciso haver lugares que custem pouco, certo? Paris foi uma cidade boêmia no passado, mas hoje não é, é rica demais. Nova York está ficando assim. Acho que não existe muita zona boêmia em Nova York hoje.

Se você pudesse ter uma pintura apenas da história pendurada em seu quarto, qual seria? E, se daqui a 2.000 anos só restassem algumas poucas de suas telas, qual você mais gostaria que durasse?

Há um desenho de Rembrandt que para mim é o maior desenho já feito. Está no British Museum. É de uma família ensinando uma criança a andar, então é uma coisa universal, todo mundo já viveu ou viu isso. Todo mundo. Eu costumava imprimir cópias grandes de desenhos de Rembrandt, eu as dava às pessoas e dizia: Se vocês encontrarem um desenho melhor, mandem para mim. Mas se vocês encontrarem um melhor, será de Goya ou de Michelangelo, talvez. Mas na realidade acho que não existe nada melhor. É um desenho magnífico, magnífico.

Quanto a uma pintura minha... 2.000 anos! Isso é muito tempo, acho que até lá minhas pinturas não serão mais grande coisa. Mas na realidade eu as pinto para durar, e elas são pintadas corretamente, ou seja, são pintadas gordo sobre magro [permitindo que as camadas inferiores sequem, para evitar rachaduras na superfície], então a tinta se projeta. A primeira coisa que fiz quando ganhei dinheiro foi comprar telas e tintas de qualidade melhor, porque sabia que era necessário, e posso olhar aqueles quadros de 50 anos atrás e ainda estão bem. Se eu tivesse que escolher apenas um, escolheria o retrato de meus pais. Mas não sei se ele duraria 2.000 anos. Talvez durasse, mas as pinturas só duram se alguém realmente quer vê-las; se são guardadas em algum depósito, acabam virando pó.

Qual foi a pessoa mais linda que você já beijou?

O artista Peter Schlesinger, talvez. Eu o conheci quando ele tinha 18 anos, e eu, 28. Ele era um rapaz muito, muito, muito sexy, e era inteligente também. Eu já tinha conhecido rapazes sexy antes, mas não eram muito espertos. Peter era inteligente, era um tipo diferente de pessoa.


- TIM LEWIS é jornalista, publicou originalmente a entrevista com David Hockney no britânico Observer.


segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A beleza salvará o mundo


Por Luiz Felipe Pondé
Da Ilustrada

Caro leitor, cara leitora, que sua semana se abra com tamanha beleza: Meu único amor, nascido de meu único ódio! Cedo demais o vi, ignorando-lhe o nome, e tarde demais fiquei sabendo quem é. Monstruoso para mim é o nascedouro desse amor, que me faz amar tão odiado inimigo. É uma fala de Julieta, na peça Romeu e Julieta de William Shakespeare.

E mais: Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas.

Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargistes tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo do desejo da tua paz.

O trecho é de Confissões, de Santo Agostinho, capítulo dez.

O grande autor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) dizia que a beleza salvaria o mundo. Conhecendo o abismo do desespero e do niilismo, ele profetizou a força da beleza como restauradora do espírito.

Para ele, habitaríamos um futuro em que a verdade desapareceria por força de nossa própria dúvida e razão, e que, talvez, apenas a beleza poderia recuperar a forma do mundo.

Mundo este feito para acolher a misericórdia, já que habitado por solitários como nós. A esperança, para o nosso russo, é flor que brota dos escombros. Visões de um romântico, claro. Romântico como a jovem Julieta.

Mesmo que presos ao tempo -que nos assola a cada dia com o desespero que parece brotar do vazio das horas e lentamente nos revela o destino que nos espera-, é este mesmo tempo que ambos, Shakespeare e Santo Agostinho, chamam à cena para marcar o momento da descoberta da beleza.

Sempre tarde demais ou cedo demais, ela chega. E nós, com nossas palavras e gestos, corremos atrás pra dar-lhe nome. Romeu e Deus. É pelo esforço de dar nome à doce fúria que ela nos incita, que recuperamos o gosto pelas coisas.

Mesmo que seja, como diz o príncipe no final de Romeu e Julieta, para nos mostrar como nosso mundo não suporta a beleza de dois jovens que se amam, sem perceberem que o mundo não é lugar para tamanha monstruosidade de um amor fora do lugar.

A beleza que Agostinho tarda a amar, na história de Cristo, é esta beleza mesma, despedaçada pela incapacidade humana de sair da cela da humilhação para a leveza da humildade -única virtude indestrutível, como diria outro grande artista, Georges Bernanos.

Sem a humildade, nos sentimos humilhados pela beleza de Deus. O desejo enlouquecido de Agostinho no texto é lugar comum na literatura mística, tradição marcada pelo encontro com esta beleza.

No texto de Shakespeare, Romeu é o objeto de amor avassalador da jovem de 13 anos conhecida como Julieta, da nobre família dos Capuleto, representante aqui de todo homem e toda mulher que um dia enlouqueceu de amor.

No texto de Santo Agostinho, Deus é o objeto. Aquele que sustenta tudo que existe e que é mais íntimo de mim do que sou de mim mesmo. Conhecer Deus exige de nós um autoconhecimento desconhecido para quem nunca se descobriu cego.

Beleza esta que nasce das profundezas da cegueira de quem se sabe incapaz de criá-la, mas pressente sua presença nalgum lugar que não sou eu.

Uma ciência do mistério, que encanta todos que um dia escreveram sobre ela. Ridícula, como diria o profeta russo Dostoiévski em seu maravilhoso conto tardio, Sonho de um homem ridículo, porque inacessível para quem nunca se viu disforme.

Se lembrarmos o que dizia outro grande artista, Nelson Rodrigues, que escrevia contos de amor e morte, assistiríamos à peça Romeu e Julieta de joelhos.

Logo o amor será objeto de algum psicofármaco. Trataremos Julieta com calmantes, como já tratamos Santo Agostinho. Eis o inferno para um romântico: a vida bem resolvida.