segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Brigitte Bardot aos 80 anos: sempre ousada, franca e controversa


Por Agnès Poirier
Do Observer
Tradução de Paulo Migliacci


A mulher que a revista "Paris-Match" descreveu como "imoral da cabeça aos pés" em 1958 completa 80 anos hoje. A "mulher mais bonita do mundo" pode ter optado por abandonar a carreira em 1973, no pico de sua fama e beleza, para dedicar a vida aos animais, mas Brigitte Bardot nunca deixou de ser uma figura controversa.

Algumas histórias bastam para explicar. Na noite de 7 de dezembro de 1967, Paris aguardava com a respiração suspensa: Charles de Gaulle e Brigitte Bardot estavam por se encontrar pela primeira vez. "Le général" havia convidado a estrela de cinema a visitá-lo no palácio do Eliseu. E, em uma violação chocante do protocolo do palácio, que na época proibia que mulheres usassem calças como traje noturno, Bardot chegou vestida de hussardo da era napoleônica. Com galardões dourados e mais de uma dúzia de fileiras de botões reluzentes sobre o busto, ela trazia os longos cabelos loiros soltos por sobre os ombros, e os olhos maquiados com forte delineador preto. O mordomo chefe do palácio deve ter suado frio quando a viu subindo as escadas naqueles trajes. A estrela e o general se encontraram nos degraus. Foi ela que falou primeiro: "Bonjour, mon général", disse Bardot, um tanto tímida. De Gaulle, fingindo inspecionar o dólmã que ela vestia, respondeu: "De fato! Madame!" "Panache" é o termo que descreve bem a atitude que os dois exibiram abundantemente ao longo de suas vidas, ainda que de modos e em circunstâncias muito diferentes.

Ao contrário das outras deusas das telas de sua era, como Gina Lollobrigida e Sophia Loren (que completou 80 anos no último dia 20), Bardot não era uma garota de classe operária. Vinha de uma família muito burguesa, de católicos muito devotos, que vivia em um apartamento de sete quartos no elegante 16º arrondissement de Paris, não distante da Torre Eiffel. Tendo estudado balé por três anos, a partir dos 13, no Conservatoire de Paris (sua colega de curso, Leslie Caron, seria mais tarde selecionada por Gene Kelly para estrelar com ele a obra-prima do Technicolor "Um Americano em Paris"), Bardot desenvolveu a postura e o caminhar elegante que não demorariam a fascinar o mundo.

Em 8 de março de 1950, aos 15 anos, Bardot apareceu na capa da revista "Elle", e o eixo do planeta se deslocou. Lá estava o epítome da graça e estilo. Ela era recatada, católica, repleta de curvas mas com um corpo forte e musculoso; uma forma de atleta construída por meio de sessões intensas de entrechats. Bardot usava vestidos de algodão sem forros elaborados ou estruturas restritivas, e biquínis estampados de cores fortes. Com Françoise Sagan, que escreveu o best seller "Bom Dia, Tristeza", aos 17 anos, ela compartilhava de um sorriso provocante, um olhar inteligente e dos verões descalços de Saint Tropez. Eram as brilhantes meninas prodígio da França. Depois da "aposentadoria" prematura de Bardot como atriz, Sagan escreveu um livro sobre ela, em 1975: a um só tempo celebração e despedida. "Bardot não se desculpava por seu absoluto triunfo, em um momento no qual tantos outros se desculpavam por suas meias-vitórias".

A inocente "jeune fille" cresceu e, em poucos anos, se tornou símbolo sexual. Em 1957, aos 23 anos, fez história cinematográfica com "E Deus Criou a Mulher", o seminal filme de seu marido Roger Vadim, no qual sua explosiva sensualidade é graciosa como de hábito, sem jamais resvalar para a crueza. Em uma cena famosa, ela dança como se estivesse em transe, descalça, a pele reluzente de suor, os cabelos soltos, desarranjados. Suas coxas, de bailarina, são bronzeadas, fortes, musculosas. Ela está tão longe da imagem ordeira e construída das estrelas de Hollywood naquela era que, quando o filme foi lançado nos Estados Unidos, causou indignação em escala continental. Ver aquelas gotas de suor enlouquecia os homens norte-americanos. Os dirigentes de cinemas que ousaram exibir o filme terminaram processados, e ele foi proibido em alguns Estados; artigos nos jornais denunciavam a depravação daquilo tudo. Como resultado, "E Deus Criou a Mulher" se tornou sucesso ainda maior de bilheteria e o controvérsia ajudou a promovê-lo ainda mais na Europa.

Os defensores da moralidade pediam que Bardot fosse proibida, como se ela fosse alguma forma de droga ilegal. O apelo de Bardot, de fato, é diferente de qualquer outro. Tendo por base sua grande beleza, uma combinação de sensualidade voraz e grande estilo, ela também fascinou pelo menos duas gerações por conta de seu estilo de vida. Pois Bardot se comportava exatamente como um homem, em sua vida pessoal. Não respeitava restrições; não se sentia compelida a seguir convenções. Não queria ser esposa e mãe. Tentou as duas coisas, casou-se quatro vezes e teve um filho, mas decidiu que não havia sido feita para aquilo. Não é que Bardot estivesse se rebelando contra alguma coisa; estava só sendo quem era. Nos anos 50, 15 anos antes da voga revolucionária de 1968, comportamento como o dela era tanto fonte de escândalo quanto de aspiração secreta para muitas mulheres. Em um estudo sobre Bardot publicado em 1959, aquela outra mulher francesa que vivia sua vida desrespeitando convenções, Simone de Beauvoir, reconheceu a "absoluta liberdade" de Bardot. Seu estilo de vida, para muitos admiradores, era como que um manifesto filosófico.

Marie-Dominique Lelièvre, autora de numerosas biografias, diz que dos muitos astros a que voltou sua atenção, de Yves Saint-Laurent a Coco Chanel, passando por Serge Gainsbourg e François Sagan, Bardot tinha a mais complexa personalidade, e usava sua celebridade como uma cortina de fumaça. "Ela foi a primeira mulher a ter sua liberdade sexual publicamente exibida", disse Lelièvre. "Antes de Bardot, uma mulher que trocasse de amante pelo menor capricho era chamada de vagabunda, de 'salope'. Depois de Bardot, ela simplesmente passou a ser vista como 'libérée'. Ao contrário das atrizes de Hollywood, que respeitavam as regras, Bardot ditava as suas. Atraía mulheres que queriam ser como ela, e homens que simplesmente a queriam". John Lennon, completamente encantado por Bardot, tinha um pôster gigantesco com uma foto dela no teto de seu quarto. Gainsbourg compôs uma canção para ela chamada "Initials BB", depois que eles romperam em 1968, na qual ele canta: "Até o alto das coxas sobem suas botas, e é como cálice para sua beleza; ela usa só um perfume de Guerlain nos cabelos".

Hoje, Bardot continua a ser ícone. "Kate Moss e Amy Winehouse devem muito a ela", explica Lelièvre. E Bardot sempre foi um ícone controverso. Ao contrário de Faye Dunaway, Loren e Catherine Deneuve, e de quase todas as demais beldades cinematográficas de sua estatura, Bardot jamais recorreu a cirurgias cosméticas. "Ela nunca evitou o olhar cruel do espelho. Suporta o envelhecimento com classe", diz Lelièvre. Mesmo assim, nem tudo vai bem na terra de Bardot. Depois de viver por décadas como reclusa em suas duas propriedades em Saint Tropez, incapaz de sair sem ser incomodada por fãs e paparazzi, ela desenvolveu, diz sua biógrafa, "uma visão de mundo bastante distorcida", e se concentra apenas em sua fundação para a proteção e bem estar dos animais. Oposta ao que vê como crueldade inerente ao processo halal de abate de animais, ela fez comentários antimuçulmanos pelos quais foi condenada nos tribunais franceses e forçada a pagar multas salgadas. Entre 1997 e 2008, ela encarou os juízes franceses em cinco ocasiões, sob acusações de "incitar o ódio racial". Na última delas, foi multada em 15 mil euros. Bardot foi condenada por declarar que "estou cheia de viver sob o controle dessa população [a comunidade muçulmana] que está nos destruindo, destruindo nosso país e impondo seus atos". Ela estava se referindo ao fato de que o método ritual muçulmano não inclui anestesiar os carneiros antes do abate. "Os animais são sua vida, e sendo a mulher espontânea que é, ela não consegue guardar suas opiniões para si. Não compreende que, por ser Bardot, suas palavras portam certo peso. De diversas maneiras, ela continua a ser uma criança irrefletida e egocêntrica", diz Lelièvre.

E há também a questão de seu aparente flerte com a Frente Nacional. Mas, de acordo com Lelièvre, a dimensão de sua simpatia pela extrema direita pode estar sendo superestimada. "O marido de Brigitte Bardot é amigo de Jean-Marie Le Pen, mas nem ele e nem ela são membros do partido. Bardot não é racista e nem ativista de extrema direita". De fato, diz Lelièvre, qualquer tentativa de classificá-la é fútil: "Bardot é Bardot, e desafia definições".

O currículo de Brigitte Bardot

Nascida em 28 de setembro de 1934; seu pai, Louis, era engenheiro. Ela estudou balé no Conservatório de Paris e começou a trabalhar como modelo aos 14 anos.

Carreira: Lançada à fama em 1956 depois de aparecer se retorcendo na praia em "E Deus Criou a Mulher", um filme que se tornou cult, ela estrelou 47 filmes. Aposentou-se em 1973, "cansada" da fama e desejosa de dedicar sua vida aos animais.

Família: Casou-se com o cineasta Roger Vadim aos 18 anos, e se divorciou cinco anos mais tarde. Depois, se casou com o ator Jacques Charrier, com quem teve seu único filho, Nicolas. Mais tarde, se casou com o milionário alemão Gunter Sachs. Em 1992, se casou com Bernard d'Ormale, ex-assessor da Frente Nacional, o partido francês de extrema direita. Em 2012, apoiou a líder da Frente Nacional, Marine Le Pen, na eleição presidencial francesa.



segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Todos os títulos e os muitos nomes de Spinoza


Por Úrsula Passos*
Da Ilustríssima

A obra do filósofo holandês Spinoza (1632-77), embora considerada seminal para a modernidade, não estava integralmente disponível naquela que era a língua de sua família: o português. Lançamentos recentes cobrem essa brecha e jogam luz sobre o estudioso excomungado da comunidade judaica por suas ideias.

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"Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja seu levantar e maldito seja seu deitar, maldito ele em seu sair e maldito ele em seu entrar." Foi com essas palavras que um homem de 24 anos foi expulso da comunidade judaica de Amsterdã, no ano de 1656. Em 1674, os Estados Gerais da Holanda proibiriam a impressão de seu livro "Tratado Teológico-Político", considerado "blasfematório e pernicioso para a alma", e, quatro anos mais tarde, vetariam a divulgação de sua obra póstuma.

Benedictus de Spinoza, como assinou suas obras em latim, ou Baruch de Espinosa ou Baruch Spinoza, como aparece em documentos oficiais (1632-77), foi, por muitos anos, considerado subversivo por suas teses filosóficas, que incluem a identidade entre Deus e natureza, a negação do livre-arbítrio do homem e uma concepção de religião que dispensa templos, cerimônias e teologias. Hoje, é considerado um dos inauguradores do pensamento moderno, junto a nomes como René Descartes e Thomas Hobbes.

Até este ano, porém, o leitor brasileiro não dispunha de uma tradução das obras completas de Spinoza na íntegra. A edição em quatro volumes da editora Perspectiva vem preencher esta lacuna. O projeto foi organizado pelo editor Jacó Guinsburg e pelo jornalista Newton Cunha -que também traduziram os livros- em conjunto com o professor de filosofia da Unicamp Roberto Romano.

A coleção traz, no primeiro volume, o "(Breve) Tratado de Deus, do Homem e de sua Felicidade", "Princípios da Filosofia Cartesiana", "Pensamentos Metafísicos", "Tratado da Correção do Intelecto" e o "Tratado Político" [R$ 75, 488 págs.] e publica pela primeira vez a correspondência completa de Spinoza, acompanhada da primeira biografia do filósofo -"A Vida de Barukh de Spinoza" (1705), de Johannes Colerus [R$ 69, 392 págs.], no segundo tomo da série.

O terceiro volume é dedicado ao "Tratado Teológico-Político" [R$ 69, 394 págs.] e o quarto, que deve sair ainda neste mês, contempla a "Ética" e, também pela primeira vez em português, o "Compêndio de Gramática da Língua Hebraica", traduzida por Jacó e sua mulher, Gita Guinsburg.

Além da Perspectiva, a editora Autêntica conta, desde 2011, com a Série Espinosana, que pretende lançar, separadamente, todas as obras do filósofo, sob coordenação do professor de filosofia da USP Homero Santiago, de Ericka Marie Itokazu, professora da Unirio, e de André Menezes Rocha, doutor em filosofia pela USP.

A coleção, que também publica ensaios sobre o filósofo, conta, por ora, com dois títulos: "A Unidade do Corpo e da Mente - Afetos, Ações e Paixões em Espinosa" [trad. Luis César Guimarães Oliva e Marcus Ferreira de Paula, R$ 39, 208 págs.], da professora francesa Chantal Jaquet, e "Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu Bem-estar" [trad. Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luis César Guimarães Oliva, R$ 47, 176 págs.], lançado em 2012, a primeira tradução desse texto de Spinoza para a língua portuguesa.

GEÔMETRAS

A Edusp, por sua vez, deve lançar até o fim do ano uma nova tradução da "Ética" (cujo nome completo é "Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras"), feita pelo Grupo de Estudos Espinosanos, sob coordenação da professora de filosofia da USP Marilena Chaui. Essa tradução começou a ser feita nos anos 1990 como uma forma de aprofundar as pesquisas do grupo, e sua edição terá projeto gráfico semelhante ao da edição original, de 1677, na qual se evidencia graficamente a divisão do livro em proposições, demonstrações e escólios (comentários ou explicações de uma proposição).

"Spinoza era um homem muito ligado em ciência, na época dele a geometria era, e ainda é, o exemplo máximo da racionalidade. Aquela forma que Euclides adotou de dizer explicitamente quais são os princípios e estabelecer nexos lógicos depois se transformou numa referência do que é uma obra científica, do que é uma explicitação racional do pensamento. Ele não esconde a sua maneira de evoluir e, muito inspirado em Descartes, estabelece um raciocínio matemático na 'Ética'", afirma o editor César Benjamin.

Ele organizou e publicou recentemente por sua editora, a Contraponto, o volume "Estudos sobre Spinoza" [trad. Eliana Aguiar, Estela dos Santos Abreu e Vera Ribeiro, R$ 82, 372 págs.], que reúne quatro ensaios de estudiosos estrangeiros e consagrados, como o francês Léon Brunschvicg (1869-1944), sobre a obra do filósofo.

Para o professor Homero Santiago, autor de "Espinosa e o Cartesianismo" (Humanitas, 2004), é surpreendente que o português não contasse com uma tradução das obras completas de Spinoza, à diferença do que já acontecia com idiomas como o francês, o inglês, o alemão e o italiano.

Por outro lado, Santiago chama a atenção para um efeito sanfona no interesse pelo filósofo. Ainda que tenha sido constantemente uma referência para grandes pensadores, desde sua morte, no século 17, ele ficou centenas de anos sem reedições importantes. "Ele se tornou quase um espectro sobre a Europa e apenas no século 19 foi republicado, na Alemanha", diz.

"A discussão que há em Spinoza é válida; é a discussão sobre a liberdade humana, sobre os limites da intervenção do Estado, sobre as obrigações entre Estado e cidadão, e, sobretudo, sobre a liberdade de opinião", diz Jacó Guinsburg, editor e fundador da Perspectiva, em seu escritório, cercado por prateleiras contendo os livros que vem publicando desde 1965.

MAIO DE 68

Foi no bojo do movimento francês de Maio de 68 que se retomou de vez a obra do filósofo excomungado de sua comunidade, intelectual judeu de origem portuguesa cuja família fugia da Inquisição. Na França dos anos 1960 foram publicados dois importantes estudos sobre Spinoza. Um foi a obra em dois volumes de Martial Gueroult (1891-1976), professor do Collège de France que chegou a dar aulas no Brasil nos anos 1940 e 1950, e o outro, o de Gilles Deleuze, "Spinoza e o Problema da Expressão", sua tese secundária de doutorado, defendida em 68 -a primeira deu origem ao livro "Diferença e Repetição", obra fundamental do filósofo.

A interpretação de Deleuze "conecta Spinoza a toda a movimentação política, de transformação social do Maio de 68 francês", explica Santiago. A partir daí, os estudos spinozianos ganham ímpeto. "Embora seja um clássico do século 17, ele é um dos filósofos mais em evidência hoje, não só no campo da filosofia mas no das humanidades em geral. Desde a década de 1960 houve um renascimento que só tem se intensificado nos últimos anos."

Nas décadas de 1970 e 1980, estudos fortaleceriam o vínculo entre o filósofo e a política e, recentemente, o influente filósofo marxista italiano Antonio Negri se declararia spinoziano. "Até mais", diz Santiago: "Ele propõe que hoje deve-se ler Marx sob as lentes spinozianas".

"A defesa que Spinoza faz da liberdade de consciência e de expressão é muito atual. Como o Estado não pode alterar consciências, ele não tem que legislar sobre consciências", diz Benjamin.

Para ele, outro aspecto da obra de Spinoza a colocá-lo entre os precursores do moderno é a questão da individualidade. "Em sua época não existia a ideia de indivíduo, cada um pertencia a um grupo e tinha suas qualidades, por meio do qual fazia a mediação com o Estado". Isolado de seu grupo pela excomunhão, Spinoza introduz a questão do indivíduo em sua obra. "Ele é um precursor, o mundo moderno já estava nascendo, e ele, tanto pela obra quanto pela vida, é o precursor dessa modernidade", opina o editor.

LENTE

Spinoza, que se estabelecera como artesão de lentes, recusou o convite para lecionar na universidade alemã de Heidelberg porque, segundo ele, não sabia quanto o fato de ensinar limitaria a liberdade que a instituição lhe havia prometido. No "Tratado Político" o filósofo defende que, em uma república livre, deve haver licença para ensinar publicamente, mas não a expensas do Estado. Spinoza não virou professor e não cuidou dos negócios de produtos orientais da família: passou a vida polindo instrumentos ópticos.

"Ele era um intelectual naquilo que de mais puro podemos pensar: não ter comprometimentos de outra ordem", diz Guinsburg.

"Spinoza se volta para a política como uma maneira de lidar com a multidão, uma forma de fazer avançar o processo civilizatório sem exigir que todas as pessoas sejam intelectuais", explica César Benjamin. Segundo Roberto Romano, nos livros do filósofo é perene a confiança na política, e o "exame cauteloso dos textos" deixa claro por que Spinoza e seus seguidores foram alvo de "tantos ataques, excomunhões e vetos". "Ler Spinoza ajuda a pensar o Estado e a sociedade, sobretudo em suas gravíssimas crises institucionais de hoje. Quem deseja uma vida democrática e livre não se afasta de Spinoza", frisa.

DEUS

Em 1999, Marilena Chaui, maior estudiosa de Spinoza no Brasil, foi entrevistada no programa "Roda Viva", da TV Cultura. Na ocasião, lançava seu imponente estudo sobre o filósofo, "A Nervura do Real" [Companhia das Letras, R$ 104, 1.240 págs.]. O apresentador Paulo Markun perguntou-lhe se acreditava em Deus. Sua resposta causou frisson: "Eu conheço Deus, eu não acredito nele". E explicou, à moda de Spinoza: "Conhecê-lo é exercer o trabalho do pensamento na direção de conhecer a estrutura do universo e seu modo de realização".

Para Spinoza há uma identidade entre Deus e natureza ("Deus sive Natura"). Ao longo do tempo, essa identificação foi vista de diferentes formas: no século 17, foi considerada como ateísmo; no Iluminismo, como religião natural; e, finalmente, no romantismo, como misticismo panteísta. Mas o que Spinoza nega, ao afirmar tal identidade, é um Deus onisciente e onipotente que age com vistas a um fim -visão que, segundo ele, seria a da religião supersticiosa, fundada no medo e na esperança irracionais. Na filosofia spinoziana, o real como um todo pode ser conhecido pelo intelecto humano, e é a ignorância que leva o homem a forjar a imagem de um Deus supremo e todo-poderoso.

Além disso, a liberdade do homem não está em seu livre-arbítrio, mas em fazer parte da natureza, sendo capaz de agir e pensar por si. "Spinoza, assim como Giordano Bruno e Montaigne, Descartes ou Leibniz, é um pensador que volta a estabelecer a importância e a necessidade da filosofia e da liberdade de pensar, ajudando a criação do mundo moderno, ao separar o que diz respeito à crença e à fé daquilo que a razão é capaz de perceber e formular. Em resumo, ao declarar que a verdade é uma busca honesta, uma livre inquirição, não um dogma religioso", complementa Newton Cunha.

"Somos parte de um todo, e não um ser especial, e só a nós cabe construir uma vida em comum, para além e mesmo contra os impulsos e os afetos inevitáveis da natureza, âmbito no qual não há nem o bem nem o mal. A maior alegria do homem é o conhecimento que ele constrói", conclui o tradutor.



* ÚRSULA PASSOS, 27, é redatora da "Ilustríssima".

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Mulher de Tolstói ganha voz própria


Por William Grimes
Do Nem York Times

Durante seu longo e muitas vezes turbulento casamento com Lev Tolstói, Sophia Andreevna Tolstói suportou muita coisa, mas "Sonata a Kreutzer" foi um castigo incomum.

Publicada em 1889, a história apresentou a visão cada vez mais radical de Tolstói sobre as relações sexuais e o casamento, por meio de um monólogo frenético feito por um narrador que assassinou sua esposa num acesso de ciúmes e nojo.

Em seu diário, Sophia escreveu: "Não sei como ou por que razão todo o mundo ligou 'Sonata a Kreutzer' a nossa própria vida de casados, mas foi o que aconteceu". Escreveu também: "Também eu sei em meu íntimo que esta história é voltada contra mim e que me fez uma injustiça enorme, me humilhou aos olhos do mundo e destruiu os últimos vestígios de amor entre nós."

Sophia apresentou seus próprios pontos de vista em duas novelas, "Whose Fault?" (de quem é a culpa?) e "Song Without Words" (canção sem palavras), que ficaram esquecidas nos arquivos do Museu Tolstói até sua publicação recente na Rússia. Michael R. Katz, professor aposentado de estudos da Rússia e Europa do Leste no Middlebury College, no Vermont, incluiu as histórias em "The Kreutzer Sonata Variations" (variações da sonata a Kreutzer), ampliando assim uma onda de trabalhos recentes que avaliam a esposa de Tolstói como figura merecedora de atenção por suas próprias qualidades.

"Ao ler essas novelas, minha primeira reação foi de assombro porque existiam e ninguém sabia delas", disse Katz. "Minha segunda reação foi pensar: 'Não são más histórias. Podem não ser literatura de primeiro nível, mas vieram de uma mulher instruída, culta, pensativa."

"Whose Fault?" conta a história de Anna, 18 anos, bem nascida e educada, que visualiza o casamento como a união de duas mentes, almas gêmeas compartilhando o amor pela filosofia e as artes, desfrutando juntas as mesmas atividades de lazer e dedicando-se a seus filhos.

As queixas arroladas pelo narrador de Tolstói são rebatidas na narrativa tristonha de sua mulher sobre decepção amorosa, a incompatibilidade entre o desejo sexual masculino e a sede feminina de satisfação emocional, as diferentes expectativas e imposições do parto e criação dos filhos.

"Song Without Words" explora a fronteira maleável entre a atração intelectual e sexual. A história apresenta uma versão mal disfarçada da amizade intensa de Sophia com o compositor Sergei Taneyev.

A atmosfera de conflito e desilusão que permeia as histórias reflete com precisão o casamento dos Tolstói, especialmente nos anos depois de o escritor passar por uma crise espiritual e criar uma vertente idiossincrática do cristianismo.

Essa fé reencontrada o mergulhou em contradições que dificultaram sua vida e a de sua mulher até sua morte, em 1910. Tolstói foi um rico latifundiário que via a propriedade privada como imoral, um igualitarista cercado por empregados, um artista que rejeitava quase toda a arte, vendo-a como nociva, um defensor do celibato que teve 13 filhos e continuou sexualmente ativo até depois dos 80 anos de idade.

Katz traduziu as novelas ao inglês e acrescentou materiais que lançam luz sobre o furor desencadeado por "Kreutzer" e extratos das cartas de Sophia, de seus diários e de sua autobiografia, "My Life" (minha vida), outro trabalho que passou várias décadas juntando poeira.

Nos últimos anos de vida de Tolstói, e até muito tempo depois de sua morte, seus discípulos retrataram Sophia como vilã, a megera que fez o possível para manter o escritor afastado de seu trabalho. Surpreendentemente, foi Sophia quem saiu em defesa de Tolstói quando "Sonata a Kreutzer" enfrentou dificuldades com a censura. Como curadora da obra literária de seu marido, ela viajou a São Petersburgo em 1891 para defender a causa da novela diante do czar Alexandre.

Usando de charme e sofismas, argumentou que "Sonata a Kreutzer" defendia a pureza sexual, que certamente era uma coisa boa. Ademais, acrescentou, um favor do czar poderia encorajar seu marido a voltar a escrever obras como "Anna Kariênina".

"Isso seria tão bom!", respondeu o czar. A proibição foi revogada.