segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A construção da 'obra total' de Ariano Suassuna


Por Carlos Newton Júnior
Da Ilustríssima


RESUMO Morto em 23 de julho, Ariano Suassuna trabalhou por mais de três décadas naquela que chamava de obra da sua vida, em que reuniu prosa, poesia, teatro e arte. Estudioso do escritor e digitador do inédito, professor relata o percurso que leva de Pedro Dinis Quaderna, de A Pedra do Reino, a dom Pantero, o novo protagonista.

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O leitor não perca tempo procurando em dicionários. A palavra ilumiara é mais um neologismo usado por Ariano Suassuna para identificar uma de suas criações no campo da arte. Neste caso específico, para identificar a súmula da sua própria criação, uma vez que A Ilumiara foi o título escolhido para a obra em que pretendia fundir -e não apenas reunir- todo o seu trabalho nos campos da poesia, do teatro, do romance, do ensaio e das artes plásticas.

No tempo em que atuou como Secretário de Cultura de Pernambuco, durante o terceiro mandato do governador Miguel Arraes (1995-1998), Suassuna idealizou conjuntos escultóricos e também arquitetônicos que batizou de ilumiaras -a exemplo da Ilumiara Zumbi, construída em Olinda, ou da Ilumiara Pedra do Reino, em São José do Belmonte, bem em frente aos dois monólitos que dão nome ao lugar e se tornaram conhecidos sobretudo através dos romances de Araripe Júnior, José Lins do Rego e dele próprio.

Seriam, esses espaços, altares iluminados, erguidos à guisa de marcos sagratórios do Brasil real (em oposição ao Brasil oficial) e para que neles se realizassem espetáculos em defesa da cultura brasileira. Assim também Ariano pensava a sua obra: como um marco do Brasil verdadeiro e profundo, que apontasse, para o nosso povo, um novo caminho a seguir, mais justo e fraterno, do ponto de vista social, do que o que trilhamos até agora; e mais belo e original do que o caminho da vulgaridade, da descaracterização e do mau gosto, apontado pela massificação cultural e pelos apóstolos da globalização.

Amigo de Suassuna ao longo de quase três décadas, tive o privilégio de acompanhar de muito perto, nos últimos sete anos, sua trajetória em direção à Ilumiara. Isto porque fui o responsável, ao longo desse tempo, pela digitação do seu novo romance, que ele batizou de O Jumento Sedutor e através do qual deu início, de fato, à fusão de gêneros tantas vezes anunciada. Foi este o romance que Suassuna concluiu pouco antes do último dia 23 de julho, como se pressentisse, cada vez mais próxima, a bela e cruel Moça Caetana.

Suassuna escrevia à mão, como muitos sabem. Aos poucos, os manuscritos foram se avolumando e as alterações que ele sentia necessidade de fazer no texto foram exigindo um tempo de que não dispunha, sobretudo por conta das inúmeras aulas-espetáculo que vinha ministrando Brasil afora. O trabalho de digitação, assim, agilizava o processo, permitindo que as alterações fossem feitas com muito mais rapidez.

O caminho de Suassuna não foi fácil. Foram muitas as experiências que empreendeu até chegar à forma final que o satisfizesse plenamente. O êxito do Romance d'A Pedra do Reino, consequência direta da identificação absoluta entre o protagonista-narrador, Pedro Dinis Quaderna, e o seu estilo régio, certamente dificultava as coisas. A voz de Quaderna, personagem que reaparece em O Jumento Sedutor, não poderia sobressair à de dom Pantero, o novo protagonista. Mal comparando, Suassuna não poderia deixar ocorrer, com ele próprio, o que ocorreu com seu amigo José Cândido de Carvalho, que não conseguiu, em textos posteriores a O Coronel e o Lobisomem, desvencilhar-se da voz de Ponciano de Azeredo Furtado.

Além disso, perfeccionista declarado, Suassuna burilou o texto o quanto pôde. Foram inúmeros os personagens e cenas cortados e acrescentados, os nomes de personagens alterados, as passagens inteiramente reescritas. Todas as vezes que me devolvia o material já digitado com as alterações a serem feitas, ele pedia desculpas pelo trabalho que me dava e arrematava com a seguinte frase: Ah, dom Carlos [era assim que ele carinhosamente me chamava, e como sentirei falta, meu Deus, desta forma de tratamento], este seu amigo, aqui, é o Hamlet da literatura brasileira!.

Ao mesmo tempo em que se dedicava ao novo livro, Ariano fazia pequenas alterações em romances e peças anteriores, para que estes pudessem melhor se ajustar ao conjunto final com que sonhava. Quem tiver a curiosidade de cotejar as folhas de abertura das últimas edições de A Pedra do Reino, por exemplo, poderá melhor compreender o que estou afirmando aqui, ao perceber a inclusão do nome A Ilumiara antes do título do romance, enquanto o romance armorial brasileiro transforma-se, paulatinamente, em uma Introdução ao Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores.

Por outro lado, se A Pedra do Reino já contava, desde a sua primeira edição, em 1971 (editora José Olympio), com a participação de Antônio Moraes, o mesmo personagem do Auto da Compadecida, o leitor atento poderá encontrar, nas edições mais recentes, ninguém menos do que João Grilo e Chicó, que passam a ocupar, respectivamente, os lugares que cabiam a Piolho (empregado de Quaderna na célebre Estalagem à Távola Redonda) e a seu inseparável companheiro Adauto.

Suassuna já vinha demonstrando, assim, na prática, a desistência do plano original da trilogia iniciada com A Pedra do Reino, anunciada pelo menos desde o início da década de 1980. E deixava claro, também, que O Jumento Sedutor, em vias de ser concluído, como vinha afirmando em várias entrevistas, seria apenas o primeiro livro de um conjunto maior, o Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores -obra que exigiria, como introdução, a leitura de A Pedra do Reino.

Não é fácil explicar, em poucas linhas, como Suassuna conseguiu fundir, em O Jumento Sedutor, os vários gêneros que compõem a sua obra. Apresentado sob a forma de cartas, publicadas em um suplemento de jornal, o romance é na verdade um extenso diálogo do qual participam vários personagens. Ao longo deste diálogo, conduzido, em última instância, por dom Pantero, a trama do romance vai sendo tecida através da recitação de poemas, da encenação de espetáculos de música, dança e teatro, da discussão de teses filosóficas etc.

À medida que compunha o romance, Ariano ia incorporando à narrativa, devidamente transfiguradas pela arte, as saídas para ministrar as suas famosas aulas-espetáculo. Entenda-se a palavra saída, aqui, no sentido eminentemente quixotesco, ou seja, no sentido de missão, uma missão tão bem desempenhada por Suassuna ao longo de 70 anos de vida literária. Foram as aulas-espetáculo da vida real que lhe deram o material necessário para criar as aulas-espetaculosas ministradas por dom Pantero.

Suassuna conseguiu, assim, de modo genial, incorporar à sua obra a sua própria vida. É por isso que ele não morreu, como muitos podem estar pensando. Usando a si próprio como matéria de romance, ele acabou por se transfigurar na sua própria Ilumiara.

Afirma dom Pantero, a certa altura do livro, que A Ilumiara seria a grande obra; e cada carta por ele escrita, um padrão, ou marco, semelhante àqueles que os navegadores portugueses semeavam pelas terras que iam descobrindo. Nesse sentido, Suassuna poderia dizer, agora, como Fernando Pessoa: A alma é divina e a obra é imperfeita./ Este padrão sinala ao vento e aos céus/ Que, da obra ousada, é minha a parte feita:/ O por fazer é só com Deus.




CARLOS NEWTON JÚNIOR, 47, é poeta, ensaísta e professor de história da arte da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

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