segunda-feira, 28 de julho de 2014

Sete razões para não escrever romances e uma para escrevê-los



Por Javier Marías
Tradução: Cassiano Elek Machado
Da Ilustríssima


RESUMO Há várias razões para não escrever um romance, defende, neste ensaio, inédito no Brasil, o espanhol Javier Marías, um dos principais romancistas contemporâneos: há muitos deles disponíveis, são custosos de serem feitos, não trazem fortuna. Mas escrever, diz, vale a pena: é um modo de inventar um futuro que o autor não verá.


Ocorrem-me as seguintes razões para não escrever romances hoje em dia:

PRIMEIRA Há muitos romances e muita gente que os escreve. Não apenas os publicados no passado seguem existindo e pedindo eternamente para serem lidos, como a cada ano milhares deles, inteiramente novos, surgem nos catálogos das editoras e nas livrarias de todo o mundo; e não só, porque dezenas de milhares deles são recusados pelas editoras e não chegam às livrarias, mas nem por isso deixam de existir também. Trata-se, portanto, de uma atividade comum, em princípio ao alcance de qualquer pessoa que tenha aprendido a escrever na escola, para a qual não se requer nenhum tipo de estudo superior nem de formação específica.

SEGUNDA Escrever um romance não é nenhum mérito. A prova disso é que se trata de um gênero que, ocasionalmente ou não, é praticado por todo tipo de indivíduo, seja qual for sua profissão, e que, portanto, deve ser fácil e sem nenhum mistério. Não há outra explicação possível para que seja um gênero cultivado por poetas, filósofos e dramaturgos; por sociólogos, linguistas, banqueiros, editores e jornalistas; por políticos, cantores, apresentadoras de televisão e técnicos de futebol; por engenheiros, professores primários, diplomatas (às centenas), funcionários públicos e atores de cinema; por críticos, aristocratas, padres e donas de casa; por psiquiatras, professores universitários e de ensino médio, militares, terroristas e pastores de cabras. Isso nos permite pensar, porém, que mesmo descontadas a facilidade de escrevê-los e sua falta de mérito, o romance deve retribuir algo, ou ao menos servir como um enfeite. Mas que tipo de enfeite é esse que está ao alcance de todas as profissões, independentemente da formação prévia, do prestígio e do poder aquisitivo? O que afinal ele pode propiciar?

TERCEIRA O romance não dá dinheiro, ou, melhor dizendo, só um de cada cem romances publicados --para arriscar uma porcentagem otimista-- traz um bom dinheiro ao seu autor. Mas mesmo no melhor dos casos são valores que não mudam a vida de ninguém, ou seja, que não são suficientes para alguém se aposentar; além disso, um romance de extensão normal e que seja minimamente legível pede meses, às vezes anos, de trabalho. Investir todo esse tempo em uma tarefa que tem um por cento de possibilidades de ser rentável é um disparate, sobretudo tendo em conta que em princípio ninguém --nem sequer os aristocratas ou as donas de casa mais abastadas-- dispõe hoje desse tempo (o Marquês de Sade e Jane Austen dispunham, mas seus equivalentes atuais, não, e o que é pior, nem sequer os aristocratas e as donas de casa que não escrevem, mas leem, têm tempo de ler o que escrevem seus colegas romancistas).

QUARTA O romance não traz fama, ou, quando a traz, ela é modesta e poderia ser obtida por meios mais rápidos e menos trabalhosos. A verdadeira fama, todos sabem, quem traz atualmente é a televisão, meio no qual é cada vez mais raro que apareça um romancista, a não ser que o faça não por conta do interesse ou excelência de seus romances, mas por sua qualidade de competente fanfarrão ou palhaço, junto a outros palhaços procedentes de outras áreas, artísticas ou não, o que é indiferente. Os romances desse romancista verdadeiramente famoso --uma celebridade televisiva-- serão apenas um fastiento pretexto inicial e logo esquecido de sua popularidade, cuja manutenção dependerá muito mais de sua capacidade de portar uma bengala, enrolar um belo cachecol no pescoço, ajeitar a peruca, ostentar camisas havaianas ou coletes patéticos, contar como se comunica com seu Deus heterodoxo e sua Virgem ortodoxa ou de quão bem ou autenticamente consegue viver entre os mouros (isso ao menos na Espanha), do que da qualidade de seus romances futuros, que na realidade não importam a ninguém. De outra parte, é um despropósito esforçar-se para escrever romances para conquistar a fama (mesmo que sejam redigidos de modo rasteiro, isso também toma tempo) quando hoje em dia não é preciso fazer nada de muito especial nem muito tangível para consegui-la: um casamento ou um caso com a pessoa adequada e o subsequente rastro de conjugalidades e extranconjugalidades são muito mais eficazes. Também é fácil o expediente de cometer algumas indecências ou barbaridades, desde que não sejam tão graves para levar alguém à prisão durante tempo demais.

QUINTA O romance não traz a imortalidade, entre outras razões porque a imortalidade já nem existe. Por não existir, nem sequer parecer existir a posteridade, entendendo por tal a de cada indivíduo: todo mundo é esquecido dois meses após sua morte. O romancista que acredite no contrário é antiquadamente tolo ou antiquadamente ingênuo. Se os livros duram se tanto uma temporada, não só porque os leitores e os críticos os esqueçam, mas também porque nem sequer serão encontráveis nas livrarias poucos meses depois que tenham vindo à luz (talvez nem sequer existam mais livrarias), é uma ilusão pensar que uma de nossas obras será perene. Como podem ser imperecíveis se a maioria delas já nascem perecidas ou com a expectativa de vida de um inseto? Com a duração já não se pode contar.

SEXTA Escrever romances não adula a vaidade, nem sequer momentaneamente. À diferença do diretor de cinema, do pintor ou do músico, que podem observar a reação de alguns espectadores diante de suas obras e inclusive ouvir seus aplausos, o romancista não vê seus leitores lendo seu livro nem assiste à sua aprovação, emoção ou complacência. Se tem a sorte de vender muitos exemplares, talvez poderá se consolar com um número, despersonalizado e abstrato como todos os números, por mais alto que seja, e além disso deverá saber que compartilha esse tipo de cifra e de consolo com os seguintes autores: chefs de cozinha que divulgam suas receitas, biógrafos escandalosos de celebridades com cabeça de vento, futurólogos que usam correntes, colares e até capas, filhas maledicentes de atrizes, colunistas fascistas que veem o fascismo por toda parte menos em si mesmos, tolos arrogantes que dão lições de maneiras, bem como outras figuras tão eminentes quanto. Com relação ao possível elogio da crítica, é muito difícil que o receba; se recebê-lo, é muito possível que o façam por pena de sua dura vida e ameaçando-o com relação aos livros seguintes; se não acontecer assim, é possível que o crítico julgue que gostou de seu livro por razões equivocadas; e se nada disso ocorrer e o elogio for aberto, generoso e inteligente, o mais provável é que dele só fiquem sabendo alguns gatos pingados, o que, considerando todas as circunstâncias necessárias para que aconteça, só trará infelicidade e frustração.

SÉTIMA Agrupo aqui todas aquelas razões mais batidas, e portanto enfadonhas, tais como a solidão com a qual o romancista trabalha, o muito que sofre duelando com as palavras e sobretudo com a sintaxe, a angústia frente à página em branco, o desgaste de sua alma chutada por crianças e paisagens e geografias e choros, sua relação descarnada com verdades que o escolhem e só a ele para manifestar-se, seu impulso perpétuo contra o poder, sua relação ambígua com a realidade, que pode chegar a fazer com que confunda a verdade com a mentira, sua luta titânica com seus próprios personagens que às vezes ganham vida própria e até escapam dele (faz falta ser pusilânime), o muito que bebe, o quão especial ou anormal que é preciso ser para viver como artista; e demais miudezas que já seduziram as almas cândidas ou mentecaptas por tempo demais, fazendo-as crer que havia muita paixão e muita tortura e muito romantismo na, a bem da verdade, muito mais modesta e prazerosa arte de inventar e contar histórias.

E isso me leva à única razão que vejo para escrever romances, muito pequena comparada com as sete anteriores, e sem dúvida contraditória com algumas delas:

PRIMEIRA E ÚLTIMA Escrevê-los permite ao romancista viver boa parte de seu tempo instalado na ficção, seguramente o único lugar suportável, ou o que o é mais. Isso quer dizer que lhe permite viver no reino do que pôde ser e nunca foi, por isso mesmo no território do que ainda é possível, do que sempre estará por ser cumprido, do que ainda não está descartado por já ter acontecido ou porque se sabe que nunca ocorrerá. O romancista realista, ou que assim é chamado, aquele que ao escrever segue instalado e vivendo no território daquilo que é e acontece, é o que confundiu sua atividade com a do cronista, a do repórter ou a do documentarista. O romancista verdadeiro não reflete a realidade, mas sim a irrealidade, entendendo por esta não a inverossimilhança nem o fantástico, mas simplesmente o que poderia ter acontecido e não aconteceu, o contrário dos fatos, dos acontecimentos, dos dados e dos feitos, o contrário "do que acontece". Aquilo que "só" é possível segue sendo possível, eternamente possível em qualquer época e em qualquer lugar, e por isso se pode ler ainda hoje "Dom Quixote" ou "Madame Bovary", alguém pode viver uma temporada com eles dando-lhes crédito, ou seja, não considerando-os impossíveis nem por serem já ultrapassados, ou o que dá no mesmo, por consabidos. A Espanha de 1600 que conhecemos e que hoje conta para nós é a de Cervantes e não outra, a de um livro irreal sobre livros irreais e sobre um anacrônico cavaleiro andante saído deles, e não do que era ou foi a realidade: a assim chamada Espanha de 1600 não existe, ainda que é de se supor que tenha existido; assim como nada existe ou conta mais sobre a França de 1900 que aquela que Proust decidiu incluir em sua obra de ficção, a única que hoje conhecemos. Antes havia dito que a ficção é o lugar mais suportável. Assim é porque traz diversão e consolo aos que a frequentam, mas também por algo a mais, a saber: porque além de ser isso, ficção presente, é também o futuro possível da realidade. E ainda que nada tenha que ver com a imortalidade pessoal, isso quer dizer que para cada romancista há uma possibilidade --infinitesimal, mas uma possibilidade-- de que o que ele escreva esteja configurando e ao mesmo tempo seja esse futuro que ele nunca verá.

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