terça-feira, 8 de julho de 2014

Poética de Hermafrodito

Salmacis e Hermafrodito, por Bartholomeus Spranger

Por Edmundo de Oliveira Gaudêncio
Trabalho elaborado para o X Colóquio Nacional Representações de Gênero e Sexualidade, que teve como realizadoras a UEPB e FAVIP

INTRODUÇÃO

Vendo-as a partir de diferentes olhares, determinados por diversos tempos e lugares, jamais enxergamos as coisas mesmas do mesmo mundo da mesmíssima forma. Isso se denomina de perspectivismo, para Nietzsche. A isso Foucault preferiu denominar de episteme: a forma mediante a qual cada tempo vê, compreende e se propõe a explicar as coisas do mundo.
Aplico isso à figura de Hermafrodito, olhado a partir de duas perspectivas e compreendido a partir de duas epistemes, a da Grécia Clássica, através do mito, e a da Modernidade, através da Ciência. 

EXPOSIÇÃO

Conhecemos o mito de Hermafrodito. Quem melhor o conta é Ovídio, em sua obra “Metamorfoses”. Segundo Brandão (1990, p. 220-1), Hermafrodito, filho adulterino de Afrodite, a Deusa da Vulva, em certas tradições, com Hermes, o Senhor do Fálus, por conta da culpa materna foi entregue às ninfas do Monte Sagrado de Ida para que dele cuidassem. Adolescente, tendo fugido da guarda de suas protetoras, passou a peregrinar pela Grécia. Embora herdeiro da beleza materna, dela não conservou os impulsos do amor carnal. Certo dia, banhando-se despido na fonte de Salmacis, foi avistado pela ninfa daquelas águas que de imediato por ele se apaixonou. Havendo sido por ele repudiada, a ninfa invocou os deuses e, rogando que eles os unissem para sempre, em meio às águas, com ele copulou. Em obediência aos seus anseios, aquele que trazia unido em si o nome da mãe ao nome do pai, Hermafrodito, passou a trazer no corpo a identidade mista de macho e fêmea, tornando-se um andrógino, com tudo que nele há de ambiguidade, estranheza, mistério e fascínio (CIRLOT, 1985; RACIONERO, 2008).
Se dessa forma a mitologia procurava explicar a existência desses seres ambíguos, no plano da Filosofia, o mito do Andrógino, em “O banquete”, de Platão, servirá a Aristófanes para que fale do Amor. Concedo a Pessanha (1987, p.94-5), citando Platão (1983), o direito de, poeticamente, melhor que eu poder contar isso, ainda que fazendo longa citação:
“Inicialmente, diz Aristófanes, foram três os gêneros de humanidade: o masculino, o feminino e o andrógino. O primeiro era constituído por duas partes masculinas, o segundo por duas partes femininas, o terceiro por uma parte masculina e outra feminina. As duas partes de cada um desses humanos primitivos se situavam como cara e coroa de uma moeda. Assim, ‘inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos...’Tal conformação dava a essa humanidade anterior grande mobilidade: esses seres duplos moviam-se nas duas direções e podiam, apoiando-se em seus oito membros, locomover-se em círculo. Eram fortes, mas dotados de grande presunção. Por isso, voltaram-se contra os deuses e tentaram mesmo fazer uma escalada ao céu para atacá-los. O castigo de Zeus à hybris dos humanos primitivos consistiu em cortá-los, separando verso e reverso. Apolo incumbiu-se de retocar os seres assim divididos, numa operação plástica que inclusive fez o rosto voltar-se para o lado do corte. Mas o que a plástica divina não pôde mudar foi a sensação de incompletude e a ânsia de cada metade, daí por diante, unir-se à outra. O que primitivamente fora um duplo masculino são agora duas metades masculinas que se procuram; o que antes fora um duplo feminino são agora duas metades femininas que se querem completar; o que fora um duplo andrógino resulta em parte feminina e parte masculina que tentam refazer, no amor, a unidade perdida. O amor é, assim, fundamentalmente, não busca do semelhante, mas busca da totalidade partida, da unidade quebrada. Por isso, o amor parte desse sabor que o ser humano experimenta de falta, de mutilação, de incompletude. O desejo de unir-se ao amado provém dessa sensação de se ser apenas parte, metade de um todo. (...) Mas o pior pode ainda acontecer. Se os humanos mutilados não forem pios e reverentes aos deuses, nova divisão – terrível, mortífera – pode ocorrer: ‘é de temer que de novo sejamos fendidos em dois, e perambulemos tais quais os que nas estrelas estão talhados em perfil, serrados na linha do nariz, como os ossos que se fendem’.”  

DISCUSSÃO

Como sugerimos, para Foucault, a cada tempo corresponde uma dada visão de mundo, a qual se expressa em um discurso dito “hegemônico”, aquele que detém, com exclusividade, a verdade. Assim, a cada época sua episteme e sua “verdade” – passível de mudança, uma vez substituído um saber hegemônico por outro. Dito de outra forma, a episteme da Idade Clássica é lentamente substituída pela episteme medieval, a qual é destronada pela episteme do Classicismo, tornada obsoleta pela episteme da Modernidade, passando-se, com isso, do discurso hegemônico mítico-religioso ao discurso científico-racional (FOUCAULT,1966;1997).
Passando por sobre o abismo das equivocadas trevas medievais, para as quais o andrógino, ora era simplesmente um monstro, resultado do cruzamento de seres humanos com Satanás (FOUCAULT, 2001), ora tratado com fria indiferença, saltemos da Grécia Clássica para a Modernidade, quando o mito, cedendo lugar à ciência, possibilitará que Hermafrodito, substantivo, seja transformado no adjetivo hermafroditismo.
Para isso recorro às memórias de Adelaide-Herculine Barbin, a partir dos textos coligidos, organizados, analisados e republicados por Michel Foucault, sob o título original: “Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita” (1982).
No primeiro parágrafo da obra citada, pergunta Foucault: 
“Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo? Com uma constância que chega às raias da teimosia, as sociedades do ocidente moderno responderam afirmativamente a essa pergunta. Situavam obstinadamente essa questão de “verdadeiro sexo” numa ordem de coisas onde se podia imaginar que só contam a realidade dos corpos e a intensidade dos prazeres”. (FOUCAULT, 1982, p.1)
Continua ele, mais adiante (op cit, p. 3-4): 
“Sou inclinado a dizer que a história seria banal, se não fossem duas ou três coisas que lhe dão particular intensidade: Primeira, o tempo e que o fato transcorreu, anos 1860-70, em que a procura da identidade na ordem sexual é praticada com maior intensidade. Interessa à ciência a identificação do verdadeiro sexo do hermafrodita; interessa descrever e classificar as perversões, marcando os sujeitos na ordem das anomalias sexuais, ele é e aquilo que o determina; e se durante séculos acreditamos que fosse necessário esconder as coisas do sexo porque eram vergonhosas, sabemos agora que é o próprio sexo que esconde as partes mais secretas do indivíduo: a estrutura de seus fantasmas, as raízes de seu eu, as formas de sua relação com o real. No fundo do sexo, está a verdade. No cruzamento dessas duas ideias – a de que não devemos nos enganar a respeito de nosso sexo, e a de que nosso sexo esconde o que há de mais verdadeiro em nós mesmos – a psicanálise consolidou seu vigor cultural. Ela nos promete ao mesmo tempo, nosso verdadeiro sexo e a verdade de nós mesmos que vela secretamente nele”.  
Relata o nosso autor que nem o caso, nem as “Memórias” publicadas despertaram muito interesse, quer na França, quer na época do ocorrido, mas somente alguns anos depois, na Alemanha, quando  Leopold Hermann Oskar Panizza (nascido em 12 de novembro de 1853) escreve uma novela, intitulada “Escândalo no convento”, após a leitura da obra de Herculine Barbin. O autor em questão era psiquiatra, poeta e escritor anteclerical e antimonarquista. Por conta de seus escritos, permaneceu preso por um ano, acusado de quase uma centena de blasfêmias, dada a publicação de “O concílio do amor”, novela ambientada em 1495, durante o papado de Alexandre VI (Rodrigo Borgia), época em que se abateu, sobre o Vaticano, uma epidemia de sífilis. Nela ridiculariza o papado, Deus e Jesus Cristo. Tornou-se famoso por seus estudos sobre o haxixe, as alucinações e a psicose, discutindo a base alucinatória da religião e a loucura de Jesus Cristo. Colega de Kraepelin, o pai da moderna psiquiatria, Panizza foi diagnosticado como portador de paranóia. Após tentativa de suicídio foi interno no manicômio de Bayreuth, onde morreu, após dezesseis anos de reclusão, em 28 de setembro de 1921. 
Vejamos, porém, o caso que nos interessa:
Adelaide-Herculine Barbin, também conhecida, entre os íntimos, como Alexina Barbin e Camille, nasceu em 8 de novembro de 1838, em Saint-Jean d’Angely, França e, ao longo de toda uma vida dividida entre orfanatos, escolas para moças e conventos de freiras, foi diagnosticada como hermafrodita, sendo obrigada a mudar o seu sexo civil para o masculino, em 22 de julho de 1860, quando adotou o nome de Abel Barbin. Em seu nome, dois assassinatos, um mítico, outro simbólico: Assim como Abel por Caim foi morto, Camille, Abel matou. Atestaram sua condição de hermafrodita os doutores Goujon e Chesnet, quando descreveram, em seu corpo, a existência de um pênis que, flácido mediria entre 3 e 5 centímetros e uma estreita vagina, em fundo cego, com cerca de 6 centímetros.  Sobre seu caso, Tardieu, um dos maiores nomes da Medicina Forense, escreveu um tratado: “Question médico-legale de l’identité dans sés rapports avec les vices de conformation des organes sexueles”, publicado em 1874). Abel, nascido Adelaide-Herculine, faleceu em um quarto de hotel de um bairro pobre de Paris em fevereiro de 1868, aos 30 anos, portanto.
Diz o documento no qual se faz o registro de sua condição, hoje denominada clinicamente de “intersexualidade”:  
“No. 145 Nascimento de Adélaide Herculine Barbin. No ano de mil oitocentos e trinta e oito, mês de novembro, às três horas da tarde, tendo em nossa presença Jean Baptiste Marie Copy, prefeito e oficial do estado civil do povo de Saint-Jean d’Angely, território de Saint-Jean d’Angely, departamento de Charente Inférieure, compareceu Jean Barbin, com vinte e dois anos de idade, domiciliado em Saint-Jean d’Angely, profissão de vendedor de tamancos, quem nos apresentou uma criança do sexo feminino, nascida à meia noite do dia anterior na casa dos pais, na Rua de Jélu, do casamento legítimo do declarante com Adelaide Destouches, com vinte e dois anos de idade, sem profissão, domiciliada nesta cidade, a quem ele deu o nome de Adelaide Herculine, as ditas declarações e apresentações feitas  na presença de Jacques Destouches, avô materno da criança, com cinquenta anos de idade, domiciliado em Saint-Jean d’Angely, profissão de vendedor de tamancos, e de Jean Baptiste Lebrun, com vinte e cinco anos de idade, domiciliado em Saint-Jean d’Angely, profissão de marceneiro, e os declarantes e testemunhas assinaram conosco o presente ato após ter sido feita a sua leitura, com exceção da primeira testemunha que disse não saber assinar. 
A margem do documento traz a seguinte retificação: Por julgamento do tribunal civil de Saint-Jean d’Angely datado de 21 de junho de 1860, ordenou-se que o ato acima fosse retificado no seguinte sentido: 1) que a criança aqui mencionada seja designada como pertecendo ao sexo masculino. 2) e que o  nome de Abel seja substituído ao de Adelaide Herculine. Saint-Jean d’Angely, 22 de junho de 1860.” (FOUCAULT, 1982, p. 138-139).
Sobre a aparência de Camille, pelo descrito nos documentos estudados, diz Foucault (p. 6): 
“Esse corpo um tanto desengonçado, pouco gracioso e cada vez mais aberrante, que crescia entre moças, parece que ninguém olhando percebia; mas como exercia sobre todos, ou melhor, sobre todas, um certo poder feiticeiro que enevoava os olhos e calava na boca toda e qualquer pergunta a seu respeito. O calor que aquela presença estranha dava aos contatos, às carícias e aos beijos que circulavam através dos jogos daquelas adolescentes, era acolhido com tanta ternura que não dava lugar à curiosidade.”
Adelaide-Herculine (a quem prefiro, doravante, chamar de Camille), em “Minhas memórias”, publicadas postumamente, na primeira parte da obra, colocando sua fala no gênero feminino e assumindo, na segunda, gênero narrativo masculino, diz, em seu primeiro parágrafo: “Tenho 25 anos, e, embora seja ainda jovem, começo a não duvidar do termo fatal de minha existência”. (FOUCAULT, p. 13).
Cabe observar, a princípio, que, neste texto, procedo tal como Foucault nas notas por ele produzidas para “Memórias de um hermafrodita”: que minha fala seja mínima para que a autora de sua própria história possa falar.
Contando a história de sua primeira paixão, aos 15 anos, diz Camille (FOUCAULT, p. 18-9): 
“Dentre minhas brilhantes companheiras, fiz amizade com a filha de um conselheiro da Corte Real de... Eu a amei à primeira vista, e embora fisicamente ela não fosse deslumbrante, a graça e a simplicidade que todo o seu corpo vertia, tornavam-na irresistivelmente atraente; seus traços não eram bonitos, mas eram encantadoramente harmoniosos. (...) Eu a envolvia num culto ideal e apaixonado ao mesmo tempo. Eu era sua escrava, seu cão fiel e agradecido. Eu a amava com aquele ardor que eu colocava em todas as coisas. (...) “Lea”, eu dizia, “Lea, eu te amo!”.
Inferimos, por meio de suas próprias palavras que, quando aos 17 anos, época de seu segundo e maior amor, Camille sabia de sua condição de hermafrodita, a partir das leituras que fazia. Diz ela, à página 26:
“Confesso que fiquei particularmente transtornada (grifo no original) com a leitura das “Metaforfoses” de Ovídio. Quem as conhece pode ter uma ideia do que isso significa”. 
Primeira Consideração Extemporânea:
No que do Saber se sabe é que existem três saberes:
O saber-se do ser e não ser;
o saber-se do ser ou não ser.
Trágico, porém, este terceiro saber:
O saber que entre ser e/ou não ser
existe a terrível necessidade do haver que escolher...!
Narrando a história de sua grande paixão por Sara, Camille confidencia:
“Tinha dezoito anos. Nem a sombra de um pensamento maldoso vinha perturbar a serenidade de sua alma cândida. Nessa época começou nossa ligação, que não tardou a se transformar em verdadeira  afeição. Naturalmente bondosa, Sara me cercava de amabilidades que eram próprias de um coração generoso. Fui sua confidente e sua primeira amiga. (...) Eu não a amava, eu a adorava!”.(p. 47-8;51).
Mais adiante, anota:
“Sara estava ressentida comigo. Apesar de todos os seus esforços, consegui arrancar-lhe um sorriso, a que respondi cobrindo-a de beijos. Esse movimento despenteou seus cabelos que desenrolando-se inundaram-lhe o rosto e os ombros. Beijeio-os. Fiquei terrivelmente emocionada. Sara percebeu. “Pelo amor de Deus, Camille, o que há com você? E então não sabe que é a você que eu mais amo no mundo?” (p.52).
Páginas à frente, continua:
“Essas dores [causadas pelos transtornos pélvicos inerentes à anatomia do hermafrodita] se manifestavam principalmente à noite e eram tão fortes que me impediam até de gritar. Que se julgue o meu pavor! Poderia ter morrido assim sem ter articulado um gemido! Feliz com esse pretexto que não deixava de ser verdadeiro, implorei a minha amiga que viesse dividir comigo o leito. Ela aceitou com prazer. Não sei como definir a felicidade que senti com a sua presença ao meu lado! Fiquei louca de alegria. Conversamos longamente antes de dormir; eu com os braços em volta de seu corpo, e ela com o rosto apoiado bem perto do meu! Meu Deus! Fui eu a culpada, e devo, portanto, me acusar agora de ter cometido um crime? Não, não!... Esse erro não foi meu, mas de uma fatalidade a que não pude resistir!!! Sara me pertencia agora!!. Ela era minha!!!... O que na ordem natural das coisas deveria ter nos separado, acabou por nos unir!!! (p.53-4) (...) “Em nossos deliciosos encontros ela se comprazia em me dar qualificações masculinas, o que coincidiria mais tarde com meu estado civil. “Meu querido Camille, eu te amo tato!!! Por que fui conhecer você, se esse amor vai fazer a infelicidade de toda a minha vida?”  (p.59)
Após o primeiro exame clínico em que se atestava sua condição de gênero, nossa memorialista narra:
“Francamente”, me disse o bom doutor, “sua madrinha foi muito feliz na escolha do nome Camille. Me dê a mão senhorita; em breve a chamaremos de outra forma, eu espero”. (...) Em seguida dirigiu algumas palavras de encorajamento a minha pobre mãe, cuja perplexidade chegava ao auge. “A senhora perdeu sua filha, é verdade”, disse ele, “mas ganhou um filho que não esperava”. (p.76).
Uma vez cabíveis o comunicado a Sara e a tomada das medidas legais quanto à mudança social de gênero a que era obrigada, continua Camille:
“Dois dias depois eu estava em L... Prevenida da minha chegada, Sara me esperava. Depois dos primeiros abraços, percebeu a gravidade de minha fisionomia. E como me perguntasse, sentei à beira da cama e olhei para ela condoída. “Minha bem amada”, disse-lhe eu, “é chegada a hora de nos separarmos”, e contei a ela em linhas gerais o que tinha acabado de se passar em B... Vejo ainda seu rosto doce e querido, envolto numa tristeza sombria. Não disse nada, mas seu olhar parecia me reprovar pelo fato de ter tomado essa decisão sem ela. “Se você quisesse”, dizia o seu olhar, “podíamos ter sido felizes ainda por muito tempo. Mas eu já não lhe satisfazia mais; você tem sede de uma existência livre e independente que eu não posso lhe oferecer.” Ela tinha razão. Tinha um pouco de tudo isso no desgosto que se apoderou de mim. Não vivia mais. A vergonha que eu sentia daquela situação era o bastante para me fazer romper com aquele passado que me fazia corar. O desejo pelo desconhecido me tornara egoísta e me impedia de lamentar os laços tão queridos que eu, por minha própria vontade, iria romper. Mais tarde eu me arrependeria amargamente daquilo que então eu considerava um imperioso dever. O mundo logo me ensinaria que eu tinha cometido um ato de fraqueza e estupidez, e me puniria cruelmente por isso”. (p.77-8).
Continuando a narrativa de sua vida, escreve:
“Tudo estava feito. A partir de agora, o estado civil me obrigaria a fazer parte daquela metade da raça humana a que chamamos de sexo forte. Eu, criado até os vinte e um anos de idade entre moças tímidas das casas religiosas, iria como Aquiles, deixar longe, bem longe de mim, um passado delicioso, para entrar na arena, armada apenas de minha fraqueza e de minha profunda inexperiência dos homens e das coisas!” (p.85).
Rompida a relação com Sara, a quem não mais procurou para não lhe desonrar o nome, dados os mexericos e as notícias jornalísticas escandalosas sobre o caso, Camille continua, manifestando em suas falas a tristeza que, cada vez mais intensa, sobre ela se abatia, depois que, saindo de sua condição de “estranheza genérica”, teve que efetivar o salto para um dos lados, o masculino, sabendo da impossibilidade sócio-jurídica de retorno:
“Não há entre as mulheres desprezíveis que me sorriram e beijaram, uma que não tenha recuado de vergonha em meus braços, como se houvesse tocado um verme.  Sim, é verdade. Mas não amaldiçoei ninguém. Passei por todas elas sem tocá-las. Homem! Não enlameei meus lábios com perjúrios, nem meu corpo com hediondas cópulas. Não vi meu nome ser arrastado na lama por uma esposa infiel. Todos esses flagelos imundos que vocês, homens, expõem ao dia claro, me foram poupados”. (92-3). “Minha razão perdida me foi restituída. Com ela reencontrei a paz, o esquecimento, a felicidade. Ah, não, a felicidade não! A felicidade nunca brilhou para mim. (...) A visão de um túmulo me reconcilia com a vida. Lá encontro não sei que ternura, para aqueles cujos ossos estão sob meus pés. E todos os homens que me foram estranhos tornam-se meus irmãos. Converso com suas almas libertas das correntes terrestres; cativo, espero ansiosamente o instante em que poderei me unir a elas. (...) Senti muitas vezes o que estou descrevendo aqui. Meu passeio favorito em Paris é ir ao Père-Lachaise, o cemitério de Montmartre. O culto da morte nasceu comigo. Cheguei a compreender e desculpar o suicídio nessa época. (...) Quantas vezes, sentado triste num banco triste das Tuileries, me deixei levar por esses pensamentos terríveis, de onde só se retorna apavorado, abatido, e moralmente destruído. Oh! Como invejo o sono dos mortos, o sono daquele  último refúgio da natureza humana. Por que, Senhor, prolongaste até agora uma existência inútil a todos e tão penosa para mim? Eis um mistério que  não cabe aos homens desvendar”.(p.95;100-101) 
Segunda Consideração Extemporânea:
O que é o estranho,
senão isso que,
em seu reflexo positivo
– embora às avessas! –,
o meu espelho me mostra:
esta angústia, este pavor de ser e não ser apenas isso que,
feliz ou infelizmente sou, 
havendo que, em escolhendo, às vezes não me poder escolher?
Tudo isso tendo sido narrado, é esta a última anotação de Camille Barbin, à página 105 de suas Memórias: “Não sei que estranha cegueira me fez sustentar até o fim esse papel absurdo. Talvez aquela sede do desconhecido, tão natural nos homens”.  Ao pé da mesma página, Foucault adicionou uma nota: “Em fevereiro de 1868 foi encontrado num quarto do bairro de Odéon o cadáver de Abel Barbin  que havia se suicidado com um fogareiro a carvão. Ele deixou o manuscrito do texto reproduzido acima”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Talvez a maior fantasia sexual do gênero humano, para aquém da pele do macho e para além da pele da fêmea, possa ser colocada nesta questão, ora posta por homens, “Como goza, a mulher, através das entranhas de sua vagina?”, ora por mulheres: “Como é o gozo masculino obtido através do pênis?”. Questão evidentemente passível de ser respondida apenas por Hermafrodito (ou Tirésias, que, segundo o mito (BRANDÃO, 1990), tanto foi homem quanto mulher), sendo pergunta irrespondível para o restante dos mortais.
No avesso dessa questão, nossas feridas narcísicas e ontológicas mais dolorosas: Dado o abismo entre a pele de um e outro parceiros sexuais, jamais podermos saber como o outro nos sente, ao tempo em que o outro fica sempre sem saber como sentimos nós e, daí, a impossibilidade de sermos unos (e portanto completos), no ato que aparentemente nos unifica, vez que, concordando com Lacan (1985), “não existe a relação sexual”: o prazer, o gozo, o êxtase sexual dá-se através do outro, sendo, porém, vivenciado apenas por cada um, completamente a sós, nos limites de seu corpo e à sombra de seus fantasmas.
Por outro lado, no plano do Simbólico, a completude do hermafrodita é encenada por aqueles que mais se aproximam da androginia, a pessoa do travesti, do bissexual, do homoafetivo; no plano do Imaginário, é posta em cena pelo substituto gráfico pós moderno do mito de Hermafrodito, o futanari, esse tipo de colagem fotográfica e/ou de desenho dos mangás japoneses, em que lindíssimas mulheres ostentam fartos seios, vaginas e fálus descomunais; no plano do Real, é contra a completude do andrógino que se projeta o sintoma da inveja narcísica transformada no ódio mediante o qual se tenta, inutilmente e mediante a brutalidade aplicada ao outro, desmentir a castração determinante, para sempre, de nossa total e eterna incompletude ontológica, a qual se manifesta no repúdio, na exclusão de quem tenha pretensões à completude com que foi simultaneamente beneficiado e punido Hermafrodito. 
Dito de outra forma: No hermafrodita, a desejada Eutopia da completude transforma-se, para a Clínica, numa Distopia genital, enquanto, para a Psicanálise, nada mais é que uma Utopia, a utopia da possibilidade da completude perdida.
Terceira e Última Consideração Extemporânea:
Panizza, louco e encarcerado; 
suicidada pela sociedade, Camille.
Em defesa da normalidade, 
duas tragédias que nesta história se entrecruzam.
Normalidade, normalidade,
não existem opostos, 
mas interpenetrações de contrários.
Normalidade, normalidade, 
em teu nome, 
quantos crimes hediondos, vil falácia, quimera vil?

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, J.J. Mitologia grega. Petrópolis, RJ : Ed. Vozes, 1990. (vols. I, II e III). 
CIRLOT, J.-E, Diccionário de símbolos. Barcelona, Espanha : Editorial Labor, 1985.
CIVITA, V. (Ed.) Mitologia. São Paulo : Abril Cultural, 1973 (vols. I e III).
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Liv. Martins Fontes/Portugália Ed. 1966. 
FOUCAULT, M. Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita. Rio de Janeiro  : Francisco Alves, 1982.
FOUCAULT, M. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1997.
FOUCAULT, M. Os anormais. São Paulo : Martins Fontes, 2001.
LACAN, J. O Seminário: livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1985.
PESSANHA, J. A. M. “Platão: as várias formas do amor”, in CARDOSO, S. [et al]. Os sentidos da paixão. São Paulo : Companhia das Letras, 1987.
PLATÃO. O banquete. São Paulo : Abril Cultural, 1983. (col. “Os pensadores)
RACCIONERO, L. Leonardo da Vinci. Espanha : Ediciones Folio, S.A., 2008.

Internet:
Sobre Oskar Panizza e na ausência de dados biográficos disponíveis em Língua Portuguesa, veja-se: http://en.wikipedia.org/wiki/Oskar_Panizza
FOUCAULT, M. Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita. Rio de Janeiro  : Francisco Alves, 1982, também localizável em
http://pt.scribd.com/doc/220665253/FOUCAULT-Michel-Org-Herculine-Barbin-o-Diario-de-Um-Herma


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