segunda-feira, 7 de julho de 2014

As definições do dicionário Fritz Lang

Fritz Lang comanda as filmagens de "Metrópolis", em 1926
 Fritz Lang comanda as filmagens de Metropólis, em 1926


Da Ilustríssima 
Por Fritz Lang (1890-1976) - cineasta alemão, dirigiu, entre outros, "Metrópolis" (1927) e "O Testamento do Dr. Mabuse" (1933).


SOBRE O TEXTO Esta é uma seleção de verbetes de um dicionário pessoal criado pelo cineasta alemão (1890-1976). A íntegra foi publicada em francês em 1964 e estará no catálogo da retrospectiva completa de Fritz Lang, no CCBB-SP de 11/7 a 24/8, que será exibida também nas sedes da instituição em Brasília e no Rio.

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ARTE Uma coisa é certa. A arte deve ser crítica; essa é sua força e sua razão. Essa crítica deve ser uma crítica social, mas não unicamente. Neste mundo há muitas coisas que devem ser criticadas. Não se pode propor soluções, mas deve-se sempre lutar para se designar o mal. Assim, meus filmes policiais americanos são, antes de tudo, uma crítica à corrupção policial e, portanto, contra toda corrupção. Acontece de um criador descobrir em si mesmo coisas de que não gosta, e então ele deve criticar essas coisas.

CÂMERA Todos sabem que os filmes serão mais divertidos para o público se ele tiver o sentimento de participar daquilo que se passa na tela. Pode-se obter esse resultado usando a câmera de maneira apropriada. O espectador do teatro está sempre na posição de um homem que observa por uma fresta. Ele só pode olhar para a frente e, se os atores se viram, ele fica restrito a vê-los de costas, ignorando o que podem estar tramando. O teatro, como campo de expressão do ator, foi expandido e substituído pelo cinema. A câmera pode apresentar um grande número de ângulos diferentes. A câmera pode mostrar a ação exatamente como o autor a imaginava e a visualizava enquanto escrevia sua história. Como o leitor visualiza a história que lê, a câmera, que é um olho universal, possui um poder pelo qual o público é transportado para além da fileira e acaba participando da ação.

CARTAS NA MESA Descobri hoje algo que é bastante interessante para mim, e que acredito ser verdadeiro: em todos os meus filmes, eu coloco as cartas na mesa. Creio que isso é muito mais interessante do que os filmes policiais ingleses em que não se sabe quem é o assassino, ou o culpado. Acredito que é bem mais interessante mostrar, como em uma partida de xadrez, o que cada um faz.

CULTURA Acredita-se, em geral, que seja possível colocar a cultura americana no mesmo plano que a da Europa. Esse é um grande erro. Do outro lado do Atlântico, a cultura é mais técnica, mais vasta, talvez mais interessante. No que me diz respeito, tendo me banhado das duas culturas; eu gostaria de conseguir realizar uma mescla feliz das duas concepções.

DIZER Não faço filmes para a geração de Fritz Lang. Eu comecei minha carreira em 1918 e creio que seja necessário repetir as pequenas coisas que tenho a dizer para todas as gerações. É preciso somente repeti-las em outros termos, enriquecidas de sua própria experiência. São em geral coisas bastante simples, como "o dinheiro não é a coisa mais importante do mundo", "o amor é uma grande descoberta", "encontrar-se a si mesmo é o mais alto valor". São ideias elementares que nada têm de pessimistas. Se meus filmes parecem pessimistas, é porque o quadro e a condição que assolam esses valores são desastrosos.

EROTISMO O erotismo da vida cotidiana americana, como se sabe, faz sempre os europeus sorrirem com um pouco de compaixão. O "happy end" dos filmes de sucesso, quando os dois amantes se beijam e a câmera recua, significa a solução de todos os problemas evocados no decorrer do filme. Eles se conhecem, se casam, agora tudo está aparentemente em ordem, tudo está resolvido. Naturalmente, isso não é verdade, e atribuir à instituição do casamento tal poder só é possível para um povo que se preocupa com esse problema mais do que com qualquer outro e que não quer admitir o seu fracasso. De acordo com estatísticas, um terço das mulheres casadas admite ter relações com outros homens; três quartos das mulheres não amam seus maridos e não se separam unicamente por causa das crianças ou por conforto. É nisso que reside o problema sexual de nossa produção cinematográfica, pois é para esse público que devemos fazer filmes e dar-lhe, no cinema, aquilo que não tem em casa. Daí o interesse infatigável pelas histórias de amor e a autossugestão pela contemplação do casamento como solução definitiva.

INDIVIDUALIDADE Os grandes temas de uma história são internacionais, mas a maneira como se trata os temas depende do estilo do país. Eu acredito que o tema central de minha obra é a luta que um indivíduo trava contra aquilo que os gregos e os romanos chamavam de destino e que, no caso, assume a forma de uma potência real: ditadura, lei ou sindicato do crime. Trata-se da vontade de proteger a individualidade, e é importante lutar para conseguir isso.

LADRÕES DE BICICLETA Um filme como "Ladrões de Bicicleta" (1948), que em geral foi aceito nos Estados Unidos como um sucesso italiano, seria impossível num meio americano. O problema de um homem cuja sobrevivência depende de sua bicicleta não interessa à grande massa dos Estados Unidos, pois o problema de transporte ali já se encontra resolvido. O americano se interessa apenas por problemas que ainda não se encontram resolvidos para ele -por mais que nem sempre queira admitir que não tenham sido.

MAÇÃ Se eu precisasse explicar por que reservo normalmente um grande espaço vazio em torno de um centro de interesse, diria que é o efeito mais simples e que não quero distrair o público daquilo que é importante. Num filme em cores, eu não colocaria uma maçã vermelha atrás de uma delicada moça, porque os olhos do espectador seriam demasiadamente solicitados pela mancha vermelha.

MAR Eu jamais tive coragem de colocar em um de meus filmes um único plano de mar (1). O mar me assusta. Eu gostaria de ter dado antes de Victor Hugo a seguinte definição: "O mar é uma coisa que me dá medo". E, no entanto, nada me encanta mais do que o mar. Mas como não creio que alguém seja capaz de traduzir o elemento poético do mar -que seja em poema, em quadro ou em filme-, nunca ousei eu mesmo fazê-lo.

MORTE No que diz respeito à morte, eu diria que, em certas circunstâncias particularmente desfavoráveis que acometem uma vida, ela chega a ser desejável, mas que, ainda assim, se deve lutar por aquilo que se entende como justo, mesmo que ao fim haja a morte.

PSICANALISTA Eu tinha o hábito de não levar a sério as pessoas que vinham me explicar o que eu tentava fazer em meus filmes, mas depois aprendi que, ao escrever uma história, deve-se conseguir explicar aos atores por que seus personagens agem de determinada maneira. Talvez o crítico seja uma espécie de psicanalista e descubra certas coisas reais das quais não sou consciente.

PUTAS Em todos nós existe o mal, e um cineasta deve mostrá-lo, deve exprimir o mal. O que nos diverte mais? Passar a noite toda falando de uma puta ou de uma mulher tranquila que só se deita com seu marido? Da puta, é claro. Elas são mais interessantes. O que podemos dizer de uma mulher tranquila? É uma mulher tranquila, nada mais. Tenho o hábito de dizer o seguinte: existem apenas duas categorias de indivíduos: os que são maus e os que são muito maus. Mas nós chegamos a um acordo e chamamos os maus de bons e os muito maus de maus.

RECEITA Amo o cinema, tenho vontade de realizar filmes, mas não me pergunte por que nem como os faço. Os jovens, os estudantes que vêm me ver, querem sempre obter receitas e explicações para a "mise-en-scène". Sinto vontade de citar-lhes estas palavras de Fausto: "Aquilo que você não capta você jamais compreenderá".

REMAKE É absurdo realizar um remake de "M., o Vampiro de Düsseldorf" (1931). O assunto e o contexto do original estavam ligados a uma atmosfera local muito bem definida, que não pode ser transposta, e esse tema, que com o passar dos anos infelizmente se tornou bastante conhecido, era então novo e original. Remakes como "Quo Vadis" (1951) e "Os Miseráveis"(2) são outra coisa, pois tratam de problemas que não encontraram solução definitiva e que, portanto, interessam-nos hoje como nos interessavam outrora, quando foram concebidos pela primeira vez. Esse tipo de remake me parece justificado. Mas repetir um filme unicamente por causa de seu sucesso financeiro já me parece uma má solução. De qualquer forma, não há garantia de sucesso financeiro.

WESTERNS Há certas coisas que, quando ouço as pessoas comentando sobre elas, sou incapaz de entender -quando falam de amor, por exemplo. E a moral, o que isso quer dizer, diga-me, por favor? A moral dos westerns: ela é muito simples. O western concebe da maneira mais simples os atores, os cenários, a luz, e tudo isso recai sobre seus filmes seguintes. Quando você fica mais velho, sua forma de viver também se torna muito mais simples e talvez você veja as coisas de um jeito um pouco mais claro. A simplicidade continuou em toda a minha obra americana.



NOTAS:
1. O mar aparecerá na obra de Lang em filmes posteriores ao texto: "Só a Mulher Peca" (1952) e "O Tesouro de Barba Rubra" (1955).

2. O texto não especifica a qual das adaptações de "Os Miseráveis" Lang se refere, provavelmente ao filme de 1935, dirigido por Richard Boleslawski, ou à versão francesa de 1958, com Jean Gabin e dirigida por Jean-Paul Le Chanois.

Nota da Redação: esta é uma versão adaptada da tradução de Bruno Andrade que constará do catálogo da mostra "Fritz Lang - O Horror Está no Horizonte" (mais informações em culturabancodobrasil.com.br/portal).

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