segunda-feira, 28 de julho de 2014

Sete razões para não escrever romances e uma para escrevê-los



Por Javier Marías
Tradução: Cassiano Elek Machado
Da Ilustríssima


RESUMO Há várias razões para não escrever um romance, defende, neste ensaio, inédito no Brasil, o espanhol Javier Marías, um dos principais romancistas contemporâneos: há muitos deles disponíveis, são custosos de serem feitos, não trazem fortuna. Mas escrever, diz, vale a pena: é um modo de inventar um futuro que o autor não verá.


Ocorrem-me as seguintes razões para não escrever romances hoje em dia:

PRIMEIRA Há muitos romances e muita gente que os escreve. Não apenas os publicados no passado seguem existindo e pedindo eternamente para serem lidos, como a cada ano milhares deles, inteiramente novos, surgem nos catálogos das editoras e nas livrarias de todo o mundo; e não só, porque dezenas de milhares deles são recusados pelas editoras e não chegam às livrarias, mas nem por isso deixam de existir também. Trata-se, portanto, de uma atividade comum, em princípio ao alcance de qualquer pessoa que tenha aprendido a escrever na escola, para a qual não se requer nenhum tipo de estudo superior nem de formação específica.

SEGUNDA Escrever um romance não é nenhum mérito. A prova disso é que se trata de um gênero que, ocasionalmente ou não, é praticado por todo tipo de indivíduo, seja qual for sua profissão, e que, portanto, deve ser fácil e sem nenhum mistério. Não há outra explicação possível para que seja um gênero cultivado por poetas, filósofos e dramaturgos; por sociólogos, linguistas, banqueiros, editores e jornalistas; por políticos, cantores, apresentadoras de televisão e técnicos de futebol; por engenheiros, professores primários, diplomatas (às centenas), funcionários públicos e atores de cinema; por críticos, aristocratas, padres e donas de casa; por psiquiatras, professores universitários e de ensino médio, militares, terroristas e pastores de cabras. Isso nos permite pensar, porém, que mesmo descontadas a facilidade de escrevê-los e sua falta de mérito, o romance deve retribuir algo, ou ao menos servir como um enfeite. Mas que tipo de enfeite é esse que está ao alcance de todas as profissões, independentemente da formação prévia, do prestígio e do poder aquisitivo? O que afinal ele pode propiciar?

TERCEIRA O romance não dá dinheiro, ou, melhor dizendo, só um de cada cem romances publicados --para arriscar uma porcentagem otimista-- traz um bom dinheiro ao seu autor. Mas mesmo no melhor dos casos são valores que não mudam a vida de ninguém, ou seja, que não são suficientes para alguém se aposentar; além disso, um romance de extensão normal e que seja minimamente legível pede meses, às vezes anos, de trabalho. Investir todo esse tempo em uma tarefa que tem um por cento de possibilidades de ser rentável é um disparate, sobretudo tendo em conta que em princípio ninguém --nem sequer os aristocratas ou as donas de casa mais abastadas-- dispõe hoje desse tempo (o Marquês de Sade e Jane Austen dispunham, mas seus equivalentes atuais, não, e o que é pior, nem sequer os aristocratas e as donas de casa que não escrevem, mas leem, têm tempo de ler o que escrevem seus colegas romancistas).

QUARTA O romance não traz fama, ou, quando a traz, ela é modesta e poderia ser obtida por meios mais rápidos e menos trabalhosos. A verdadeira fama, todos sabem, quem traz atualmente é a televisão, meio no qual é cada vez mais raro que apareça um romancista, a não ser que o faça não por conta do interesse ou excelência de seus romances, mas por sua qualidade de competente fanfarrão ou palhaço, junto a outros palhaços procedentes de outras áreas, artísticas ou não, o que é indiferente. Os romances desse romancista verdadeiramente famoso --uma celebridade televisiva-- serão apenas um fastiento pretexto inicial e logo esquecido de sua popularidade, cuja manutenção dependerá muito mais de sua capacidade de portar uma bengala, enrolar um belo cachecol no pescoço, ajeitar a peruca, ostentar camisas havaianas ou coletes patéticos, contar como se comunica com seu Deus heterodoxo e sua Virgem ortodoxa ou de quão bem ou autenticamente consegue viver entre os mouros (isso ao menos na Espanha), do que da qualidade de seus romances futuros, que na realidade não importam a ninguém. De outra parte, é um despropósito esforçar-se para escrever romances para conquistar a fama (mesmo que sejam redigidos de modo rasteiro, isso também toma tempo) quando hoje em dia não é preciso fazer nada de muito especial nem muito tangível para consegui-la: um casamento ou um caso com a pessoa adequada e o subsequente rastro de conjugalidades e extranconjugalidades são muito mais eficazes. Também é fácil o expediente de cometer algumas indecências ou barbaridades, desde que não sejam tão graves para levar alguém à prisão durante tempo demais.

QUINTA O romance não traz a imortalidade, entre outras razões porque a imortalidade já nem existe. Por não existir, nem sequer parecer existir a posteridade, entendendo por tal a de cada indivíduo: todo mundo é esquecido dois meses após sua morte. O romancista que acredite no contrário é antiquadamente tolo ou antiquadamente ingênuo. Se os livros duram se tanto uma temporada, não só porque os leitores e os críticos os esqueçam, mas também porque nem sequer serão encontráveis nas livrarias poucos meses depois que tenham vindo à luz (talvez nem sequer existam mais livrarias), é uma ilusão pensar que uma de nossas obras será perene. Como podem ser imperecíveis se a maioria delas já nascem perecidas ou com a expectativa de vida de um inseto? Com a duração já não se pode contar.

SEXTA Escrever romances não adula a vaidade, nem sequer momentaneamente. À diferença do diretor de cinema, do pintor ou do músico, que podem observar a reação de alguns espectadores diante de suas obras e inclusive ouvir seus aplausos, o romancista não vê seus leitores lendo seu livro nem assiste à sua aprovação, emoção ou complacência. Se tem a sorte de vender muitos exemplares, talvez poderá se consolar com um número, despersonalizado e abstrato como todos os números, por mais alto que seja, e além disso deverá saber que compartilha esse tipo de cifra e de consolo com os seguintes autores: chefs de cozinha que divulgam suas receitas, biógrafos escandalosos de celebridades com cabeça de vento, futurólogos que usam correntes, colares e até capas, filhas maledicentes de atrizes, colunistas fascistas que veem o fascismo por toda parte menos em si mesmos, tolos arrogantes que dão lições de maneiras, bem como outras figuras tão eminentes quanto. Com relação ao possível elogio da crítica, é muito difícil que o receba; se recebê-lo, é muito possível que o façam por pena de sua dura vida e ameaçando-o com relação aos livros seguintes; se não acontecer assim, é possível que o crítico julgue que gostou de seu livro por razões equivocadas; e se nada disso ocorrer e o elogio for aberto, generoso e inteligente, o mais provável é que dele só fiquem sabendo alguns gatos pingados, o que, considerando todas as circunstâncias necessárias para que aconteça, só trará infelicidade e frustração.

SÉTIMA Agrupo aqui todas aquelas razões mais batidas, e portanto enfadonhas, tais como a solidão com a qual o romancista trabalha, o muito que sofre duelando com as palavras e sobretudo com a sintaxe, a angústia frente à página em branco, o desgaste de sua alma chutada por crianças e paisagens e geografias e choros, sua relação descarnada com verdades que o escolhem e só a ele para manifestar-se, seu impulso perpétuo contra o poder, sua relação ambígua com a realidade, que pode chegar a fazer com que confunda a verdade com a mentira, sua luta titânica com seus próprios personagens que às vezes ganham vida própria e até escapam dele (faz falta ser pusilânime), o muito que bebe, o quão especial ou anormal que é preciso ser para viver como artista; e demais miudezas que já seduziram as almas cândidas ou mentecaptas por tempo demais, fazendo-as crer que havia muita paixão e muita tortura e muito romantismo na, a bem da verdade, muito mais modesta e prazerosa arte de inventar e contar histórias.

E isso me leva à única razão que vejo para escrever romances, muito pequena comparada com as sete anteriores, e sem dúvida contraditória com algumas delas:

PRIMEIRA E ÚLTIMA Escrevê-los permite ao romancista viver boa parte de seu tempo instalado na ficção, seguramente o único lugar suportável, ou o que o é mais. Isso quer dizer que lhe permite viver no reino do que pôde ser e nunca foi, por isso mesmo no território do que ainda é possível, do que sempre estará por ser cumprido, do que ainda não está descartado por já ter acontecido ou porque se sabe que nunca ocorrerá. O romancista realista, ou que assim é chamado, aquele que ao escrever segue instalado e vivendo no território daquilo que é e acontece, é o que confundiu sua atividade com a do cronista, a do repórter ou a do documentarista. O romancista verdadeiro não reflete a realidade, mas sim a irrealidade, entendendo por esta não a inverossimilhança nem o fantástico, mas simplesmente o que poderia ter acontecido e não aconteceu, o contrário dos fatos, dos acontecimentos, dos dados e dos feitos, o contrário "do que acontece". Aquilo que "só" é possível segue sendo possível, eternamente possível em qualquer época e em qualquer lugar, e por isso se pode ler ainda hoje "Dom Quixote" ou "Madame Bovary", alguém pode viver uma temporada com eles dando-lhes crédito, ou seja, não considerando-os impossíveis nem por serem já ultrapassados, ou o que dá no mesmo, por consabidos. A Espanha de 1600 que conhecemos e que hoje conta para nós é a de Cervantes e não outra, a de um livro irreal sobre livros irreais e sobre um anacrônico cavaleiro andante saído deles, e não do que era ou foi a realidade: a assim chamada Espanha de 1600 não existe, ainda que é de se supor que tenha existido; assim como nada existe ou conta mais sobre a França de 1900 que aquela que Proust decidiu incluir em sua obra de ficção, a única que hoje conhecemos. Antes havia dito que a ficção é o lugar mais suportável. Assim é porque traz diversão e consolo aos que a frequentam, mas também por algo a mais, a saber: porque além de ser isso, ficção presente, é também o futuro possível da realidade. E ainda que nada tenha que ver com a imortalidade pessoal, isso quer dizer que para cada romancista há uma possibilidade --infinitesimal, mas uma possibilidade-- de que o que ele escreva esteja configurando e ao mesmo tempo seja esse futuro que ele nunca verá.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Sigmund Freud analisa Gustav Mahler


Leiden, Holanda
Agosto de 1910
Por Craig Brown



Gustav Mahler marcou três encontros com Sigmund Freud, e nas três vezes decidiu cancelar. Freud deixou claro que, se o compositor voltasse a desmarcar a consulta, não teria outra oportunidade.

A mulher de Mahler, Alma, vem insistindo. O casamento dos dois, sempre cambaleante, agora está mesmo em crise. Gustav tem cinquenta anos e é quase duas décadas mais velho que Alma. Quando se casaram, há oito anos, poucos amigos acharam que fosse durar. "Ela é uma beldade célebre, acostumada a uma vida social glamourosa, e ele é desapegado das coisas mundanas e adora ficar sozinho", observou um amigo de Mahler, o maestro Bruno Walter.

Alma é gregária e sedutora (1). Gustav é introvertido e ascético. Quando ficam noivos, Alma demonstra interesse em seguir a carreira de compositora, mas Gustav a proíbe. "Você deve se entregar incondicionalmente, moldar a sua vida futura, em todos os detalhes, inteiramente de acordo com as minhas necessidades [...]. O papel de compositor é o meu - o seu é o da companheira amorosa."

Em julho de 1910, Mahler abre uma carta erroneamente endereçada a ele, escrita na verdade para Alma (2).O remetente é o jovem amante da mulher de Mahler, Walter Gropius, afirmando que não consegue viver sem ela e instando-a a largar o marido. Mahler põe Alma contra a parede e ela atribui a culpa ao próprio Gustav: "Passei anos ansiando por seu amor, e ele, absorto em sua fanática concentração por sua própria vida, simplesmente me ignorava".

Mahler promete que vai se emendar; Alma concorda em ficar. Se antes Gustav a tratava com indiferença, agora desenvolveu um ciúme passional, nas palavras de Alma, "de tudo e de todos [...]. Muitas vezes eu acordava no meio da noite e ele estava de pé, ao lado da cama, no escuro". Mas ela não se livra de Gropius e mais uma vez é forçada a escolher. Decide ficar com Mahler, sob uma condição: que ele procure Freud.

Mahler desconfia da psicanálise há muito tempo. Três anos atrás, quando um amigo mencionou o nome de Sigmund Freud, o maestro vociferou que a psicanálise não lhe interessava: "Freud tenta curar ou solucionar tudo a partir de um certo aspecto". O amigo observou que "ele aparentemente relutou, na presença da mulher, em usar os termos apropriados".

No final de agosto, Mahler finalmente marca a consulta. Freud interrompe as férias no litoral e pega um trem até Leiden.

Os dois fazem uma longa caminhada pela cidade, conversando durante quatro horas (3).Para os passantes, deve parecer uma dupla bizarra: Freud tem mais de um metro e oitenta de altura, e Mahler pouco mais de um e sessenta; o compositor tem um modo de andar incomum: passos largos e irregulares, interrompidos por uma estranha batida do pé (4).

Depois de ouvir os problemas conjugais de Mahler, Freud diz que a diferença de idade do casal, que o maestro tanto teme, é precisamente o que o atrai em Alma. "Você amava tanto a sua mãe que a procura em todas as mulheres. Ela era carinhosa e enfermiça, e, inconscientemente, você deseja que a sua mulher seja igual."

Quando Gustav relata a Alma essas conclusões, ela julga que Freud acertou na mosca. "Ele está certo em ambos os casos. A mãe de Mahler se chamava Marie. O primeiro impulso dele foi mudar o meu nome para Marie, apesar da sua dificuldade em pronunciar o r. E, quando ele me conheceu melhor, quis que o meu rosto fosse mais 'pesaroso' - palavra dele próprio. Quando ele disse à minha mãe que era uma pena ter havido tão pouca tristeza na minha vida, ela respondeu: 'Não se preocupe - isso ainda virá'." Alma também concorda com o diagnóstico que Freud faz da fixação dela própria pelo pai. "Sempre procurei um homem pequeno, fraco, que tivesse sabedoria e superioridade espiritual, pois era isso o que eu amava no meu pai."

Freud também fica impressionado com Mahler; jamais conheceu alguém que compreenda tão rápido a psicanálise.

"Mahler disse que agora entendia por que razão sua música sempre tinha sido impedida de alcançar o ponto mais alto nas passagens mais nobres, inspiradas por emoções profundas, sempre arruinadas pela intromissão de alguma melodia trivial. Seu pai, aparentemente uma pessoa brutal, tratava muito mal a mulher, e quando criança Gustav testemunhou uma cena especialmente dolorosa entre o casal. Foi algo insuportável para ele, que saiu correndo de casa. Naquele momento, porém, encontrou na rua um realejo tocando a popular cantiga vienense 'Ach, du Lieber Augustin'. Na opinião de Mahler, a conjunção de alta tragédia e diversão ligeira ficou desde então transfixada em sua mente, e um estado de espírito traz inevitavelmente o outro (5).

É claro que é isso o que as pessoas admiram em sua música, é o que a torna inovadora e moderna. Mas, para os artistas, pode ser difícil diferenciar as suas próprias forças e fraquezas, já que ambas coexistem muito proximamente.

Depois da sessão peripatética com Freud, Mahler entra num estado de júbilo. "Sentindo-me animado. Discussão interessante", ele telegrafa a Alma, e, mais tarde, "Vivendo como se tudo fosse novo". No trem, de volta para casa, escreve versos sobre o encontro:

As sombras da noite se dissiparam graças a uma palavra potente.
Acabou o incessante latejar dos tormentos.
Agora unidos, mesclados num só acorde, finalmente,
Meus tímidos pensamentos e tempestuosos sentimentos.

Após retornar, Mahler olhou novamente as composições de Alma e começou a tocá-las no piano. "O que eu fiz? Essas canções são boas, são excelentes [...]. Não vou descansar até que você comece a trabalhar de novo. Deus, como fui tacanho naqueles dias!"

Mahler dedica à mulher sua "Oitava Sinfonia", que ele rege em 12 de setembro de 1910; e também publica cinco "lieder" de Alma, que estreiam em Viena e Nova York.

Nove meses depois, em 18 de maio de 1911, Mahler morre de endocardite bacteriana (6). Meses depois, Freud se dá conta de que jamais enviou a nota da consulta, e então providencia uma, datada de "Viena, 24 de outubro de 1911", anexa dois selos e despacha para a viúva de Mahler, "por serviços prestados".


NOTAS:

1.Ela teve relacionamentos amorosos com Gustav Klimt, Max Burckhard, Alexander Zemlinsky e Oskar Kokoschka, entre outros. Casou-se com Gustav Mahler em 1902, com Walter Gropius em 1915 e com Franz Werfel em 1929.

2."Na ocasião Gustav acreditou - e passou o resto da vida convencido disso - que o arquiteto tinha endereçado propositalmente a carta para ele, como uma maneira de lhe pedir a minha mão em casamento", escreveria Alma anos mais tarde.

3.Os psicanalistas contemporâneos parecem acreditar que uma consulta tão breve não pode ser classificada propriamente como psicanálise. Ainda assim, em muitos sentidos parece ter sido mais produtiva e mais construtiva do que muitos tratamentos que duram a vida inteira.

4.Na festa de casamento de Mahler, sua sobrinha Eleanor foi flagrada imitando o modo de andar do compositor, e por causa disso foi mandada para casa, em desgraça.

5."O uso do trivial lugar-comum [...] como meio de expressão prenuncia a principal tendência da arte do século xx", escreveu Donald Mitchell em seu ensaio "Mahler e Freud" (1958). O próprio Freud não era capaz de julgar música: era surdo para notas musicais e melodias.

6. Alma viveria por mais 53 anos. Morreu em 1964.

*

Este texto é um capítulo do livro "Um por Um", de Craig Brown, lançado pela editora Três Estrelas. [trad. Renato Marques; R$ 59,90 (536 págs.)]

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Antônio Nóbrega só quer ficar pra brincar

Antônio Nóbrega no teatro do Instituto Brincante

Por Camila Moraes
Foto: Bosco Martín 
Do El País 

Se tem alguém que vibra e faz vibrar a mais autêntica cultura popular brasileira, e a difunde em palcos de grandes centros do país, é Antônio Nóbrega. Um dos mais importantes pesquisadores das tradições culturais brasileiras, esse músico, dançarino e ator recifense de 62 anos percorreu todo o Brasil vivenciando as diferentes manifestações artísticas regionais e aprendendo com elas para então devolvê-las à sua origem, que são... As pessoas.

Quem o vê íntimo de instrumentos de percussão que a maioria dos brasileiros mal sabe identificar e dançando e cantando frevo ao ponto de ter se tornado um dos maiores representantes desse ritmo autenticamente pernambucano, não imagina que a sua primeira formação é a de um artista erudito. Filho de médico, aluno da Escola de Belas Artes do Recife e violinista e cantor lírico formado, Nóbrega participou de orquestras sinfônicas. Para equilibrar sua vertente clássica, chegou, no máximo, um criar um conjunto de música pop com as irmãs nos anos 60.

O encontro com Ariano Suassuna em 1971 e o convite desse dramaturgo e romancista brasileiro para integrar como violinista o grupo de música instrumental Quinteto Armorial (conhecido por sintetizar música erudita e tradições populares do Nordeste brasileiro) foram sua introdução no folclore nacional – em seu sentido mais puro e sem preconceitos. De aí em diante, seu peculiar talento para unir arte popular e sofisticação tornou-se evidente em espetáculos que o tornaram famoso, como Figural (1990) e Brincante (1992).

Foi nos anos 90, com o sucesso dessas apresentações, que ele e sua esposa, a atriz e dançarina curitibana Rosane Almeida, se fixaram em São Paulo. Apesar das críticas positivas do trabalho realizado por ambos no resto do país, quase nenhum palco cedeu espaço à dupla, que se viu obrigada a fundar seu próprio Teatro Brincante. O sucesso foi imediato e ultrapassou os limites da cena. O teatro virou um instituto, no qual crianças de todas as idades reconhecem e experimentam a cultura popular brasileira de um modo especial, autenticamente brincante – que é como os artistas populares se autodenominam, já que, ao realizar um espetáculo, dizem que vão brincar.

Por 22 anos, o espaço serviu de casa lúdica e ajudou a despertar as sensibilidades de mais de 20.000 alunos inscritos nos cursos que ele oferece e 57 mil pessoas que compareceram aos seus eventos. Mas, há 15 dias, o Brincante recebeu a notícia de que terá que fechar suas portas. O motivo: a especulação imobiliária que está pressionando os habitantes de grandes cidades brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e outras mais. Sem ter sido consultado pelo proprietário do imóvel que ocupa, o casal de locatários (que tem a prioridade de compra) foi notificado por uma incorporadora que pretende construir ali um prédio comercial de oito andares, derrubando algumas casinhas da área.

O problema suscitou o debate sobre o lugar do espírito lúdico em nossa sociedade, cada vez mais racionalista e tecnicista e que vive em cidades de crescimento desorientado, com raros espaços dedicados à brincadeira – e à cultura popular, que, no fim das contas, é o brincar de um povo. Brincar, explica Nóbrega, significa manter vivo o universo lúdico que habita cada um dos seres humanos, sem distinção de origem ou idade. Um chamado primordial, segundo ele: “Nascemos com a necessidade lúdica. Na fase em que somos mais inconscientes do mundo cotidiano, podemos organizá-la com mais plenitude. Mas as formas lúdicas estão dentro de nós até a morte. O que nos resta fazer é responder, de acordo com as diferentes idades, a isso”.

Sair não está – nem nunca esteve – nos planos nem dele, nem de sua esposa. “Se foi nesse lugar que vivenciamos essas experiências, buscando ir além das próprias manifestações culturais populares e tratando de resgatar o ‘estar bem na vida’ que elas trazem, existe alguma coisa que o próprio espaço e o próprio bairro acolheram. Sair daqui, tirar o Brincante nessas condições, é passar por cima dessas reflexões”, afirma Rosane Almeida. Nóbrega concorda, levantando um debate antigo, ainda que atual: o da visão ocidental versus os ensinamentos marginalizados por ela. “Não podemos negar que o patrimônio ocidental colocou ordem nas coisas. Mas, nesse afã, ele simetrizou excessivamente. Temos uma herança positiva que é fruto da nossa cultura marginal, principalmente graças aos negros. Temos que ser conscientes e compreender como utilizar isso. Organizar o que é desorganizado”.

O plano de Nóbrega e de Rosane, que são proprietários de duas casinhas próximas ao Brincante que já receberam também propostas de compra, é fazer justamente isso: organizar esforços para criar um centro cultural que mantenha viva nossa rica desorganização. Essa é a esperança, não só para eles, mas para que cidades como São Paulo não sejam cada vez mais emblemáticas do eminente fim da brincadeira. Não são poucas as vozes que engrossam esse coro, como mostra a campanha #ficabrincante, que já domina o Twitter e o Facebook.


segunda-feira, 14 de julho de 2014

A seleção brasileira, a monarquia e a compaixão


Por Armando Antenore

“Os caras ganham bem demais para você ter pena deles.” Foi o que escutei de um amigo na terça-feira, quando a seleção alemã marcou o sétimo gol contra a assombrada equipe de Felipão. Senti pena, sim. Presenciar a impotência e a perplexidade de Júlio César, David Luiz, Marcelo, Fernandinho, Hulk e companhia no Mineirão me inundou de uma piedade inesperada pelos jogadores que assistiam à própria derrocada enquanto a provocavam de modo quase surreal. Pobres meninos ricos… Em que momento da história recente, o dinheiro se tornou a régua de tudo? Por que a dor profunda e legítima de um milionário deveria gerar menos compaixão que a de um mendigo? Quantos milhões de dólares compensariam a humilhação de atletas que se revelaram patéticos diante do mundo inteiro? Quantas maletas de euros amenizariam o suplício de ver um deslize terrível relembrado infinitas vezes em manchetes, posts e tuítes? Quantas moedas de prata arrancariam da memória coletiva a sucessão de erros que transformou um dia banal num dia infame? Quantos potes de ouro anulariam a gigantesca decepção de rapazes vigorosos que se surpreenderam imensamente frágeis?

Embora conheça pouco de futebol, moro aqui há tempo suficiente para constatar que nós, brasileiros, vivemos tanto no século 21 como no período pré-republicano. Por um lado, usufruímos dos inúmeros avanços tecnológicos, comportamentais e econômicos que a contemporaneidade nos oferece. Mas, por outro, continuamos exibindo traços inequivocamente escravocratas e monárquicos. O futebol – não à toa, considerado o símbolo máximo da alma nacional – reflete muitíssimo bem esse viés passadista. É um dos únicos terrenos onde negros, cafuzos e mulatos conseguem ascender socialmente de maneira significativa, exceção que apenas joga luz sobre a hedionda persistência das senzalas nos quatro cantos do país. É também uma atividade que se guia francamente por códigos imperiais. Prevalecem, sobretudo em nossa seleção, as ideias de predestinação e messianismo, tão características dos reinados. Desde os anos 50, o Brasil se enxerga proprietário natural e genuíno da coroa que o referendaria na posição mais nobre do ranking futebolístico. Quando conquistamos uma Copa, estamos somente cumprindo nossa tarefa grandiosa e nos reafirmando como a “pátria de chuteiras”. Quando perdemos o torneio, estamos cedendo o trono à revelia e temporariamente para os plebeus. Não importam táticas, preparo físico nem organização extracampo – a taça nos pertence a priori, do mesmo jeito que o cetro pertence à dinastia Windsor no Reino Unido. A camisa amarela adquire, assim, a força mágica de um manto aristocrático. Frente à canarinho, os inimigos (ou usurpadores) tremeriam de medo e respeito. Não é de se estranhar, portanto, que Pelé aceitou sem maiores questionamentos o título de Rei e vem lutando arduamente para mantê-lo. Afinal, à semelhança de qualquer majestade, o craque julga a honraria vitalícia. Não bastasse, ainda se arvora o direito de indicar os príncipes herdeiros – figuras que, aliás, a mídia e o povo não se cansam igualmente de procurar. Às vezes, a opinião de Pelé coincide com a dos súditos e o país brada, em uníssono, o nome do jovem eleito. O caso mais recente é o de Neymar Jr. Ele sabe perfeitamente o que representa incorporar destino tão altaneiro. Cobre-se de luxo e prestígio, mas também de obrigações e expectativas sobre-humanas – como, de resto, toda a corte de 22 convocados que o rodeia. Segundo o jargão dos gramados, os príncipes herdeiros “chamam a responsabilidade para si”. Ou melhor: assumem o fardo de liderar o time e de salvá-lo se estiver à beira do precipício. Convertem-se, de esportistas talentosos, em super-heróis – a versão moderna e pop do bíblico Messias.

Lógico que meios de comunicação, políticos, comerciantes, publicitários e cartolas não abdicam de explorar gananciosamente tal mitologia. A comissão técnica da CBF tampouco se esquiva de invocá-la. Em geral, lança mão de platitudes (as detestáveis frases motivacionais) que, despejadas sobre a nação e os jogadores, buscam reacender a adesão massificada, acrítica e dionisíaca à lenda dos 23 ungidos.

Das equipes brasileiras que acompanhei ao longo das últimas onze Copas, nenhuma me pareceu acreditar tanto na predestinação e no messianismo quanto a de 2014. Vale dizer que, aqui, uso o verbo “acreditar” em sua acepção mais infantil. Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, Cinderela, Boi da Cara Preta, Loira do Banheiro. Crianças precisam cultivar fantasias muito elementares para conseguir lidar com o mundo recém-descoberto, que as fascina e apavora em igual proporção. Os adultos frequentemente se apegam às crenças de modo idêntico. Simplificam o complexo na esperança de que tudo faça sentido, como se a existência não fosse um quebra-cabeça absurdo, repleto de peças que dificilmente se encaixarão. Agarrados à fé, imaginam-se protegidos dos perigos, das injustiças, das perdas e das próprias fraquezas – do caos, enfim. Os atletas da seleção, por se exibirem em casa, abraçaram incondicionalmente a missão de vencer ou vencer, mantra que Felipão e Parreira não se cansavam de repetir antes mesmo de o torneio começar. Mais do que nunca, o mito da infalibilidade, da sina abençoada tinha de se materializar.

Já na fase inaugural da Copa, podia-se notar que o time estava à flor da pele. Bastava observar o fervor com que os jogadores cantavam o hino, as lágrimas excessivas e fora de lugar, o desempenho irregular em campo, os abraços aliviados que trocavam entre si mal as disputas terminavam. Havia algo de muito esquisito e desconcertante naquilo. Não se tratava, afinal, de novatos. Cada membro da seleção enfrentara diversas e terríveis batalhas durante a carreira. Entretanto, quando adentravam as novíssimas arenas do Brasil, me lembravam invariavelmente garotos assustados. O fato de se perfilarem apoiando a mão direita sobre o ombro do companheiro à frente, como meninos disciplinados num colégio de freiras, reforçava meu desconforto. Veio, então, a partida contra a Alemanha. O que divisamos no Mineirão merece menos a análise de comentaristas esportivos e mais a de psicólogos. Em seis minutos, o time protagonizou um apagão sem precedentes. Levou inacreditáveis quatro gols. De repente, atletas hiperqualificados se converteram em zumbis. Mergulharam num transe coletivo que os aniquilou. Vivenciaram um inquestionável colapso emocional. O mito que deveria engrandecê-los e ampará-los agora os oprimia impiedosamente, exagerando as debilidades de uma equipe nem brilhante, nem tão medíocre. A camisa amarela provocava medo, sim, mas nos próprios atletas que a envergavam.

Como não se compadecer diante do que ocorreu ali? Como não se solidarizar com os atônitos desportistas, certamente o elo mais fraco (ainda que bem remunerado) de uma cultura paternalista, delirante e perversa? Sempre nutri alguma simpatia por jogadores rebeldes – aqueles que, a exemplo de Romário, “desestabilizam o grupo”. Eles, no fundo, zombam das mitologias e, assim, se protegem delas. Não baixam a cabeça para o gênio de Pelé, não ecoam os bordões triunfalistas dos técnicos, não se preocupam em salvaguardar a honra de uma nação.  Sabem que fantasias são importantes, mas que a realidade nunca deixará de ter a última palavra.


terça-feira, 8 de julho de 2014

Poética de Hermafrodito

Salmacis e Hermafrodito, por Bartholomeus Spranger

Por Edmundo de Oliveira Gaudêncio
Trabalho elaborado para o X Colóquio Nacional Representações de Gênero e Sexualidade, que teve como realizadoras a UEPB e FAVIP

INTRODUÇÃO

Vendo-as a partir de diferentes olhares, determinados por diversos tempos e lugares, jamais enxergamos as coisas mesmas do mesmo mundo da mesmíssima forma. Isso se denomina de perspectivismo, para Nietzsche. A isso Foucault preferiu denominar de episteme: a forma mediante a qual cada tempo vê, compreende e se propõe a explicar as coisas do mundo.
Aplico isso à figura de Hermafrodito, olhado a partir de duas perspectivas e compreendido a partir de duas epistemes, a da Grécia Clássica, através do mito, e a da Modernidade, através da Ciência. 

EXPOSIÇÃO

Conhecemos o mito de Hermafrodito. Quem melhor o conta é Ovídio, em sua obra “Metamorfoses”. Segundo Brandão (1990, p. 220-1), Hermafrodito, filho adulterino de Afrodite, a Deusa da Vulva, em certas tradições, com Hermes, o Senhor do Fálus, por conta da culpa materna foi entregue às ninfas do Monte Sagrado de Ida para que dele cuidassem. Adolescente, tendo fugido da guarda de suas protetoras, passou a peregrinar pela Grécia. Embora herdeiro da beleza materna, dela não conservou os impulsos do amor carnal. Certo dia, banhando-se despido na fonte de Salmacis, foi avistado pela ninfa daquelas águas que de imediato por ele se apaixonou. Havendo sido por ele repudiada, a ninfa invocou os deuses e, rogando que eles os unissem para sempre, em meio às águas, com ele copulou. Em obediência aos seus anseios, aquele que trazia unido em si o nome da mãe ao nome do pai, Hermafrodito, passou a trazer no corpo a identidade mista de macho e fêmea, tornando-se um andrógino, com tudo que nele há de ambiguidade, estranheza, mistério e fascínio (CIRLOT, 1985; RACIONERO, 2008).
Se dessa forma a mitologia procurava explicar a existência desses seres ambíguos, no plano da Filosofia, o mito do Andrógino, em “O banquete”, de Platão, servirá a Aristófanes para que fale do Amor. Concedo a Pessanha (1987, p.94-5), citando Platão (1983), o direito de, poeticamente, melhor que eu poder contar isso, ainda que fazendo longa citação:
“Inicialmente, diz Aristófanes, foram três os gêneros de humanidade: o masculino, o feminino e o andrógino. O primeiro era constituído por duas partes masculinas, o segundo por duas partes femininas, o terceiro por uma parte masculina e outra feminina. As duas partes de cada um desses humanos primitivos se situavam como cara e coroa de uma moeda. Assim, ‘inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos...’Tal conformação dava a essa humanidade anterior grande mobilidade: esses seres duplos moviam-se nas duas direções e podiam, apoiando-se em seus oito membros, locomover-se em círculo. Eram fortes, mas dotados de grande presunção. Por isso, voltaram-se contra os deuses e tentaram mesmo fazer uma escalada ao céu para atacá-los. O castigo de Zeus à hybris dos humanos primitivos consistiu em cortá-los, separando verso e reverso. Apolo incumbiu-se de retocar os seres assim divididos, numa operação plástica que inclusive fez o rosto voltar-se para o lado do corte. Mas o que a plástica divina não pôde mudar foi a sensação de incompletude e a ânsia de cada metade, daí por diante, unir-se à outra. O que primitivamente fora um duplo masculino são agora duas metades masculinas que se procuram; o que antes fora um duplo feminino são agora duas metades femininas que se querem completar; o que fora um duplo andrógino resulta em parte feminina e parte masculina que tentam refazer, no amor, a unidade perdida. O amor é, assim, fundamentalmente, não busca do semelhante, mas busca da totalidade partida, da unidade quebrada. Por isso, o amor parte desse sabor que o ser humano experimenta de falta, de mutilação, de incompletude. O desejo de unir-se ao amado provém dessa sensação de se ser apenas parte, metade de um todo. (...) Mas o pior pode ainda acontecer. Se os humanos mutilados não forem pios e reverentes aos deuses, nova divisão – terrível, mortífera – pode ocorrer: ‘é de temer que de novo sejamos fendidos em dois, e perambulemos tais quais os que nas estrelas estão talhados em perfil, serrados na linha do nariz, como os ossos que se fendem’.”  

DISCUSSÃO

Como sugerimos, para Foucault, a cada tempo corresponde uma dada visão de mundo, a qual se expressa em um discurso dito “hegemônico”, aquele que detém, com exclusividade, a verdade. Assim, a cada época sua episteme e sua “verdade” – passível de mudança, uma vez substituído um saber hegemônico por outro. Dito de outra forma, a episteme da Idade Clássica é lentamente substituída pela episteme medieval, a qual é destronada pela episteme do Classicismo, tornada obsoleta pela episteme da Modernidade, passando-se, com isso, do discurso hegemônico mítico-religioso ao discurso científico-racional (FOUCAULT,1966;1997).
Passando por sobre o abismo das equivocadas trevas medievais, para as quais o andrógino, ora era simplesmente um monstro, resultado do cruzamento de seres humanos com Satanás (FOUCAULT, 2001), ora tratado com fria indiferença, saltemos da Grécia Clássica para a Modernidade, quando o mito, cedendo lugar à ciência, possibilitará que Hermafrodito, substantivo, seja transformado no adjetivo hermafroditismo.
Para isso recorro às memórias de Adelaide-Herculine Barbin, a partir dos textos coligidos, organizados, analisados e republicados por Michel Foucault, sob o título original: “Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita” (1982).
No primeiro parágrafo da obra citada, pergunta Foucault: 
“Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo? Com uma constância que chega às raias da teimosia, as sociedades do ocidente moderno responderam afirmativamente a essa pergunta. Situavam obstinadamente essa questão de “verdadeiro sexo” numa ordem de coisas onde se podia imaginar que só contam a realidade dos corpos e a intensidade dos prazeres”. (FOUCAULT, 1982, p.1)
Continua ele, mais adiante (op cit, p. 3-4): 
“Sou inclinado a dizer que a história seria banal, se não fossem duas ou três coisas que lhe dão particular intensidade: Primeira, o tempo e que o fato transcorreu, anos 1860-70, em que a procura da identidade na ordem sexual é praticada com maior intensidade. Interessa à ciência a identificação do verdadeiro sexo do hermafrodita; interessa descrever e classificar as perversões, marcando os sujeitos na ordem das anomalias sexuais, ele é e aquilo que o determina; e se durante séculos acreditamos que fosse necessário esconder as coisas do sexo porque eram vergonhosas, sabemos agora que é o próprio sexo que esconde as partes mais secretas do indivíduo: a estrutura de seus fantasmas, as raízes de seu eu, as formas de sua relação com o real. No fundo do sexo, está a verdade. No cruzamento dessas duas ideias – a de que não devemos nos enganar a respeito de nosso sexo, e a de que nosso sexo esconde o que há de mais verdadeiro em nós mesmos – a psicanálise consolidou seu vigor cultural. Ela nos promete ao mesmo tempo, nosso verdadeiro sexo e a verdade de nós mesmos que vela secretamente nele”.  
Relata o nosso autor que nem o caso, nem as “Memórias” publicadas despertaram muito interesse, quer na França, quer na época do ocorrido, mas somente alguns anos depois, na Alemanha, quando  Leopold Hermann Oskar Panizza (nascido em 12 de novembro de 1853) escreve uma novela, intitulada “Escândalo no convento”, após a leitura da obra de Herculine Barbin. O autor em questão era psiquiatra, poeta e escritor anteclerical e antimonarquista. Por conta de seus escritos, permaneceu preso por um ano, acusado de quase uma centena de blasfêmias, dada a publicação de “O concílio do amor”, novela ambientada em 1495, durante o papado de Alexandre VI (Rodrigo Borgia), época em que se abateu, sobre o Vaticano, uma epidemia de sífilis. Nela ridiculariza o papado, Deus e Jesus Cristo. Tornou-se famoso por seus estudos sobre o haxixe, as alucinações e a psicose, discutindo a base alucinatória da religião e a loucura de Jesus Cristo. Colega de Kraepelin, o pai da moderna psiquiatria, Panizza foi diagnosticado como portador de paranóia. Após tentativa de suicídio foi interno no manicômio de Bayreuth, onde morreu, após dezesseis anos de reclusão, em 28 de setembro de 1921. 
Vejamos, porém, o caso que nos interessa:
Adelaide-Herculine Barbin, também conhecida, entre os íntimos, como Alexina Barbin e Camille, nasceu em 8 de novembro de 1838, em Saint-Jean d’Angely, França e, ao longo de toda uma vida dividida entre orfanatos, escolas para moças e conventos de freiras, foi diagnosticada como hermafrodita, sendo obrigada a mudar o seu sexo civil para o masculino, em 22 de julho de 1860, quando adotou o nome de Abel Barbin. Em seu nome, dois assassinatos, um mítico, outro simbólico: Assim como Abel por Caim foi morto, Camille, Abel matou. Atestaram sua condição de hermafrodita os doutores Goujon e Chesnet, quando descreveram, em seu corpo, a existência de um pênis que, flácido mediria entre 3 e 5 centímetros e uma estreita vagina, em fundo cego, com cerca de 6 centímetros.  Sobre seu caso, Tardieu, um dos maiores nomes da Medicina Forense, escreveu um tratado: “Question médico-legale de l’identité dans sés rapports avec les vices de conformation des organes sexueles”, publicado em 1874). Abel, nascido Adelaide-Herculine, faleceu em um quarto de hotel de um bairro pobre de Paris em fevereiro de 1868, aos 30 anos, portanto.
Diz o documento no qual se faz o registro de sua condição, hoje denominada clinicamente de “intersexualidade”:  
“No. 145 Nascimento de Adélaide Herculine Barbin. No ano de mil oitocentos e trinta e oito, mês de novembro, às três horas da tarde, tendo em nossa presença Jean Baptiste Marie Copy, prefeito e oficial do estado civil do povo de Saint-Jean d’Angely, território de Saint-Jean d’Angely, departamento de Charente Inférieure, compareceu Jean Barbin, com vinte e dois anos de idade, domiciliado em Saint-Jean d’Angely, profissão de vendedor de tamancos, quem nos apresentou uma criança do sexo feminino, nascida à meia noite do dia anterior na casa dos pais, na Rua de Jélu, do casamento legítimo do declarante com Adelaide Destouches, com vinte e dois anos de idade, sem profissão, domiciliada nesta cidade, a quem ele deu o nome de Adelaide Herculine, as ditas declarações e apresentações feitas  na presença de Jacques Destouches, avô materno da criança, com cinquenta anos de idade, domiciliado em Saint-Jean d’Angely, profissão de vendedor de tamancos, e de Jean Baptiste Lebrun, com vinte e cinco anos de idade, domiciliado em Saint-Jean d’Angely, profissão de marceneiro, e os declarantes e testemunhas assinaram conosco o presente ato após ter sido feita a sua leitura, com exceção da primeira testemunha que disse não saber assinar. 
A margem do documento traz a seguinte retificação: Por julgamento do tribunal civil de Saint-Jean d’Angely datado de 21 de junho de 1860, ordenou-se que o ato acima fosse retificado no seguinte sentido: 1) que a criança aqui mencionada seja designada como pertecendo ao sexo masculino. 2) e que o  nome de Abel seja substituído ao de Adelaide Herculine. Saint-Jean d’Angely, 22 de junho de 1860.” (FOUCAULT, 1982, p. 138-139).
Sobre a aparência de Camille, pelo descrito nos documentos estudados, diz Foucault (p. 6): 
“Esse corpo um tanto desengonçado, pouco gracioso e cada vez mais aberrante, que crescia entre moças, parece que ninguém olhando percebia; mas como exercia sobre todos, ou melhor, sobre todas, um certo poder feiticeiro que enevoava os olhos e calava na boca toda e qualquer pergunta a seu respeito. O calor que aquela presença estranha dava aos contatos, às carícias e aos beijos que circulavam através dos jogos daquelas adolescentes, era acolhido com tanta ternura que não dava lugar à curiosidade.”
Adelaide-Herculine (a quem prefiro, doravante, chamar de Camille), em “Minhas memórias”, publicadas postumamente, na primeira parte da obra, colocando sua fala no gênero feminino e assumindo, na segunda, gênero narrativo masculino, diz, em seu primeiro parágrafo: “Tenho 25 anos, e, embora seja ainda jovem, começo a não duvidar do termo fatal de minha existência”. (FOUCAULT, p. 13).
Cabe observar, a princípio, que, neste texto, procedo tal como Foucault nas notas por ele produzidas para “Memórias de um hermafrodita”: que minha fala seja mínima para que a autora de sua própria história possa falar.
Contando a história de sua primeira paixão, aos 15 anos, diz Camille (FOUCAULT, p. 18-9): 
“Dentre minhas brilhantes companheiras, fiz amizade com a filha de um conselheiro da Corte Real de... Eu a amei à primeira vista, e embora fisicamente ela não fosse deslumbrante, a graça e a simplicidade que todo o seu corpo vertia, tornavam-na irresistivelmente atraente; seus traços não eram bonitos, mas eram encantadoramente harmoniosos. (...) Eu a envolvia num culto ideal e apaixonado ao mesmo tempo. Eu era sua escrava, seu cão fiel e agradecido. Eu a amava com aquele ardor que eu colocava em todas as coisas. (...) “Lea”, eu dizia, “Lea, eu te amo!”.
Inferimos, por meio de suas próprias palavras que, quando aos 17 anos, época de seu segundo e maior amor, Camille sabia de sua condição de hermafrodita, a partir das leituras que fazia. Diz ela, à página 26:
“Confesso que fiquei particularmente transtornada (grifo no original) com a leitura das “Metaforfoses” de Ovídio. Quem as conhece pode ter uma ideia do que isso significa”. 
Primeira Consideração Extemporânea:
No que do Saber se sabe é que existem três saberes:
O saber-se do ser e não ser;
o saber-se do ser ou não ser.
Trágico, porém, este terceiro saber:
O saber que entre ser e/ou não ser
existe a terrível necessidade do haver que escolher...!
Narrando a história de sua grande paixão por Sara, Camille confidencia:
“Tinha dezoito anos. Nem a sombra de um pensamento maldoso vinha perturbar a serenidade de sua alma cândida. Nessa época começou nossa ligação, que não tardou a se transformar em verdadeira  afeição. Naturalmente bondosa, Sara me cercava de amabilidades que eram próprias de um coração generoso. Fui sua confidente e sua primeira amiga. (...) Eu não a amava, eu a adorava!”.(p. 47-8;51).
Mais adiante, anota:
“Sara estava ressentida comigo. Apesar de todos os seus esforços, consegui arrancar-lhe um sorriso, a que respondi cobrindo-a de beijos. Esse movimento despenteou seus cabelos que desenrolando-se inundaram-lhe o rosto e os ombros. Beijeio-os. Fiquei terrivelmente emocionada. Sara percebeu. “Pelo amor de Deus, Camille, o que há com você? E então não sabe que é a você que eu mais amo no mundo?” (p.52).
Páginas à frente, continua:
“Essas dores [causadas pelos transtornos pélvicos inerentes à anatomia do hermafrodita] se manifestavam principalmente à noite e eram tão fortes que me impediam até de gritar. Que se julgue o meu pavor! Poderia ter morrido assim sem ter articulado um gemido! Feliz com esse pretexto que não deixava de ser verdadeiro, implorei a minha amiga que viesse dividir comigo o leito. Ela aceitou com prazer. Não sei como definir a felicidade que senti com a sua presença ao meu lado! Fiquei louca de alegria. Conversamos longamente antes de dormir; eu com os braços em volta de seu corpo, e ela com o rosto apoiado bem perto do meu! Meu Deus! Fui eu a culpada, e devo, portanto, me acusar agora de ter cometido um crime? Não, não!... Esse erro não foi meu, mas de uma fatalidade a que não pude resistir!!! Sara me pertencia agora!!. Ela era minha!!!... O que na ordem natural das coisas deveria ter nos separado, acabou por nos unir!!! (p.53-4) (...) “Em nossos deliciosos encontros ela se comprazia em me dar qualificações masculinas, o que coincidiria mais tarde com meu estado civil. “Meu querido Camille, eu te amo tato!!! Por que fui conhecer você, se esse amor vai fazer a infelicidade de toda a minha vida?”  (p.59)
Após o primeiro exame clínico em que se atestava sua condição de gênero, nossa memorialista narra:
“Francamente”, me disse o bom doutor, “sua madrinha foi muito feliz na escolha do nome Camille. Me dê a mão senhorita; em breve a chamaremos de outra forma, eu espero”. (...) Em seguida dirigiu algumas palavras de encorajamento a minha pobre mãe, cuja perplexidade chegava ao auge. “A senhora perdeu sua filha, é verdade”, disse ele, “mas ganhou um filho que não esperava”. (p.76).
Uma vez cabíveis o comunicado a Sara e a tomada das medidas legais quanto à mudança social de gênero a que era obrigada, continua Camille:
“Dois dias depois eu estava em L... Prevenida da minha chegada, Sara me esperava. Depois dos primeiros abraços, percebeu a gravidade de minha fisionomia. E como me perguntasse, sentei à beira da cama e olhei para ela condoída. “Minha bem amada”, disse-lhe eu, “é chegada a hora de nos separarmos”, e contei a ela em linhas gerais o que tinha acabado de se passar em B... Vejo ainda seu rosto doce e querido, envolto numa tristeza sombria. Não disse nada, mas seu olhar parecia me reprovar pelo fato de ter tomado essa decisão sem ela. “Se você quisesse”, dizia o seu olhar, “podíamos ter sido felizes ainda por muito tempo. Mas eu já não lhe satisfazia mais; você tem sede de uma existência livre e independente que eu não posso lhe oferecer.” Ela tinha razão. Tinha um pouco de tudo isso no desgosto que se apoderou de mim. Não vivia mais. A vergonha que eu sentia daquela situação era o bastante para me fazer romper com aquele passado que me fazia corar. O desejo pelo desconhecido me tornara egoísta e me impedia de lamentar os laços tão queridos que eu, por minha própria vontade, iria romper. Mais tarde eu me arrependeria amargamente daquilo que então eu considerava um imperioso dever. O mundo logo me ensinaria que eu tinha cometido um ato de fraqueza e estupidez, e me puniria cruelmente por isso”. (p.77-8).
Continuando a narrativa de sua vida, escreve:
“Tudo estava feito. A partir de agora, o estado civil me obrigaria a fazer parte daquela metade da raça humana a que chamamos de sexo forte. Eu, criado até os vinte e um anos de idade entre moças tímidas das casas religiosas, iria como Aquiles, deixar longe, bem longe de mim, um passado delicioso, para entrar na arena, armada apenas de minha fraqueza e de minha profunda inexperiência dos homens e das coisas!” (p.85).
Rompida a relação com Sara, a quem não mais procurou para não lhe desonrar o nome, dados os mexericos e as notícias jornalísticas escandalosas sobre o caso, Camille continua, manifestando em suas falas a tristeza que, cada vez mais intensa, sobre ela se abatia, depois que, saindo de sua condição de “estranheza genérica”, teve que efetivar o salto para um dos lados, o masculino, sabendo da impossibilidade sócio-jurídica de retorno:
“Não há entre as mulheres desprezíveis que me sorriram e beijaram, uma que não tenha recuado de vergonha em meus braços, como se houvesse tocado um verme.  Sim, é verdade. Mas não amaldiçoei ninguém. Passei por todas elas sem tocá-las. Homem! Não enlameei meus lábios com perjúrios, nem meu corpo com hediondas cópulas. Não vi meu nome ser arrastado na lama por uma esposa infiel. Todos esses flagelos imundos que vocês, homens, expõem ao dia claro, me foram poupados”. (92-3). “Minha razão perdida me foi restituída. Com ela reencontrei a paz, o esquecimento, a felicidade. Ah, não, a felicidade não! A felicidade nunca brilhou para mim. (...) A visão de um túmulo me reconcilia com a vida. Lá encontro não sei que ternura, para aqueles cujos ossos estão sob meus pés. E todos os homens que me foram estranhos tornam-se meus irmãos. Converso com suas almas libertas das correntes terrestres; cativo, espero ansiosamente o instante em que poderei me unir a elas. (...) Senti muitas vezes o que estou descrevendo aqui. Meu passeio favorito em Paris é ir ao Père-Lachaise, o cemitério de Montmartre. O culto da morte nasceu comigo. Cheguei a compreender e desculpar o suicídio nessa época. (...) Quantas vezes, sentado triste num banco triste das Tuileries, me deixei levar por esses pensamentos terríveis, de onde só se retorna apavorado, abatido, e moralmente destruído. Oh! Como invejo o sono dos mortos, o sono daquele  último refúgio da natureza humana. Por que, Senhor, prolongaste até agora uma existência inútil a todos e tão penosa para mim? Eis um mistério que  não cabe aos homens desvendar”.(p.95;100-101) 
Segunda Consideração Extemporânea:
O que é o estranho,
senão isso que,
em seu reflexo positivo
– embora às avessas! –,
o meu espelho me mostra:
esta angústia, este pavor de ser e não ser apenas isso que,
feliz ou infelizmente sou, 
havendo que, em escolhendo, às vezes não me poder escolher?
Tudo isso tendo sido narrado, é esta a última anotação de Camille Barbin, à página 105 de suas Memórias: “Não sei que estranha cegueira me fez sustentar até o fim esse papel absurdo. Talvez aquela sede do desconhecido, tão natural nos homens”.  Ao pé da mesma página, Foucault adicionou uma nota: “Em fevereiro de 1868 foi encontrado num quarto do bairro de Odéon o cadáver de Abel Barbin  que havia se suicidado com um fogareiro a carvão. Ele deixou o manuscrito do texto reproduzido acima”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Talvez a maior fantasia sexual do gênero humano, para aquém da pele do macho e para além da pele da fêmea, possa ser colocada nesta questão, ora posta por homens, “Como goza, a mulher, através das entranhas de sua vagina?”, ora por mulheres: “Como é o gozo masculino obtido através do pênis?”. Questão evidentemente passível de ser respondida apenas por Hermafrodito (ou Tirésias, que, segundo o mito (BRANDÃO, 1990), tanto foi homem quanto mulher), sendo pergunta irrespondível para o restante dos mortais.
No avesso dessa questão, nossas feridas narcísicas e ontológicas mais dolorosas: Dado o abismo entre a pele de um e outro parceiros sexuais, jamais podermos saber como o outro nos sente, ao tempo em que o outro fica sempre sem saber como sentimos nós e, daí, a impossibilidade de sermos unos (e portanto completos), no ato que aparentemente nos unifica, vez que, concordando com Lacan (1985), “não existe a relação sexual”: o prazer, o gozo, o êxtase sexual dá-se através do outro, sendo, porém, vivenciado apenas por cada um, completamente a sós, nos limites de seu corpo e à sombra de seus fantasmas.
Por outro lado, no plano do Simbólico, a completude do hermafrodita é encenada por aqueles que mais se aproximam da androginia, a pessoa do travesti, do bissexual, do homoafetivo; no plano do Imaginário, é posta em cena pelo substituto gráfico pós moderno do mito de Hermafrodito, o futanari, esse tipo de colagem fotográfica e/ou de desenho dos mangás japoneses, em que lindíssimas mulheres ostentam fartos seios, vaginas e fálus descomunais; no plano do Real, é contra a completude do andrógino que se projeta o sintoma da inveja narcísica transformada no ódio mediante o qual se tenta, inutilmente e mediante a brutalidade aplicada ao outro, desmentir a castração determinante, para sempre, de nossa total e eterna incompletude ontológica, a qual se manifesta no repúdio, na exclusão de quem tenha pretensões à completude com que foi simultaneamente beneficiado e punido Hermafrodito. 
Dito de outra forma: No hermafrodita, a desejada Eutopia da completude transforma-se, para a Clínica, numa Distopia genital, enquanto, para a Psicanálise, nada mais é que uma Utopia, a utopia da possibilidade da completude perdida.
Terceira e Última Consideração Extemporânea:
Panizza, louco e encarcerado; 
suicidada pela sociedade, Camille.
Em defesa da normalidade, 
duas tragédias que nesta história se entrecruzam.
Normalidade, normalidade,
não existem opostos, 
mas interpenetrações de contrários.
Normalidade, normalidade, 
em teu nome, 
quantos crimes hediondos, vil falácia, quimera vil?

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, J.J. Mitologia grega. Petrópolis, RJ : Ed. Vozes, 1990. (vols. I, II e III). 
CIRLOT, J.-E, Diccionário de símbolos. Barcelona, Espanha : Editorial Labor, 1985.
CIVITA, V. (Ed.) Mitologia. São Paulo : Abril Cultural, 1973 (vols. I e III).
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Liv. Martins Fontes/Portugália Ed. 1966. 
FOUCAULT, M. Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita. Rio de Janeiro  : Francisco Alves, 1982.
FOUCAULT, M. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1997.
FOUCAULT, M. Os anormais. São Paulo : Martins Fontes, 2001.
LACAN, J. O Seminário: livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1985.
PESSANHA, J. A. M. “Platão: as várias formas do amor”, in CARDOSO, S. [et al]. Os sentidos da paixão. São Paulo : Companhia das Letras, 1987.
PLATÃO. O banquete. São Paulo : Abril Cultural, 1983. (col. “Os pensadores)
RACCIONERO, L. Leonardo da Vinci. Espanha : Ediciones Folio, S.A., 2008.

Internet:
Sobre Oskar Panizza e na ausência de dados biográficos disponíveis em Língua Portuguesa, veja-se: http://en.wikipedia.org/wiki/Oskar_Panizza
FOUCAULT, M. Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita. Rio de Janeiro  : Francisco Alves, 1982, também localizável em
http://pt.scribd.com/doc/220665253/FOUCAULT-Michel-Org-Herculine-Barbin-o-Diario-de-Um-Herma


segunda-feira, 7 de julho de 2014

As definições do dicionário Fritz Lang

Fritz Lang comanda as filmagens de "Metrópolis", em 1926
 Fritz Lang comanda as filmagens de Metropólis, em 1926


Da Ilustríssima 
Por Fritz Lang (1890-1976) - cineasta alemão, dirigiu, entre outros, "Metrópolis" (1927) e "O Testamento do Dr. Mabuse" (1933).


SOBRE O TEXTO Esta é uma seleção de verbetes de um dicionário pessoal criado pelo cineasta alemão (1890-1976). A íntegra foi publicada em francês em 1964 e estará no catálogo da retrospectiva completa de Fritz Lang, no CCBB-SP de 11/7 a 24/8, que será exibida também nas sedes da instituição em Brasília e no Rio.

*
ARTE Uma coisa é certa. A arte deve ser crítica; essa é sua força e sua razão. Essa crítica deve ser uma crítica social, mas não unicamente. Neste mundo há muitas coisas que devem ser criticadas. Não se pode propor soluções, mas deve-se sempre lutar para se designar o mal. Assim, meus filmes policiais americanos são, antes de tudo, uma crítica à corrupção policial e, portanto, contra toda corrupção. Acontece de um criador descobrir em si mesmo coisas de que não gosta, e então ele deve criticar essas coisas.

CÂMERA Todos sabem que os filmes serão mais divertidos para o público se ele tiver o sentimento de participar daquilo que se passa na tela. Pode-se obter esse resultado usando a câmera de maneira apropriada. O espectador do teatro está sempre na posição de um homem que observa por uma fresta. Ele só pode olhar para a frente e, se os atores se viram, ele fica restrito a vê-los de costas, ignorando o que podem estar tramando. O teatro, como campo de expressão do ator, foi expandido e substituído pelo cinema. A câmera pode apresentar um grande número de ângulos diferentes. A câmera pode mostrar a ação exatamente como o autor a imaginava e a visualizava enquanto escrevia sua história. Como o leitor visualiza a história que lê, a câmera, que é um olho universal, possui um poder pelo qual o público é transportado para além da fileira e acaba participando da ação.

CARTAS NA MESA Descobri hoje algo que é bastante interessante para mim, e que acredito ser verdadeiro: em todos os meus filmes, eu coloco as cartas na mesa. Creio que isso é muito mais interessante do que os filmes policiais ingleses em que não se sabe quem é o assassino, ou o culpado. Acredito que é bem mais interessante mostrar, como em uma partida de xadrez, o que cada um faz.

CULTURA Acredita-se, em geral, que seja possível colocar a cultura americana no mesmo plano que a da Europa. Esse é um grande erro. Do outro lado do Atlântico, a cultura é mais técnica, mais vasta, talvez mais interessante. No que me diz respeito, tendo me banhado das duas culturas; eu gostaria de conseguir realizar uma mescla feliz das duas concepções.

DIZER Não faço filmes para a geração de Fritz Lang. Eu comecei minha carreira em 1918 e creio que seja necessário repetir as pequenas coisas que tenho a dizer para todas as gerações. É preciso somente repeti-las em outros termos, enriquecidas de sua própria experiência. São em geral coisas bastante simples, como "o dinheiro não é a coisa mais importante do mundo", "o amor é uma grande descoberta", "encontrar-se a si mesmo é o mais alto valor". São ideias elementares que nada têm de pessimistas. Se meus filmes parecem pessimistas, é porque o quadro e a condição que assolam esses valores são desastrosos.

EROTISMO O erotismo da vida cotidiana americana, como se sabe, faz sempre os europeus sorrirem com um pouco de compaixão. O "happy end" dos filmes de sucesso, quando os dois amantes se beijam e a câmera recua, significa a solução de todos os problemas evocados no decorrer do filme. Eles se conhecem, se casam, agora tudo está aparentemente em ordem, tudo está resolvido. Naturalmente, isso não é verdade, e atribuir à instituição do casamento tal poder só é possível para um povo que se preocupa com esse problema mais do que com qualquer outro e que não quer admitir o seu fracasso. De acordo com estatísticas, um terço das mulheres casadas admite ter relações com outros homens; três quartos das mulheres não amam seus maridos e não se separam unicamente por causa das crianças ou por conforto. É nisso que reside o problema sexual de nossa produção cinematográfica, pois é para esse público que devemos fazer filmes e dar-lhe, no cinema, aquilo que não tem em casa. Daí o interesse infatigável pelas histórias de amor e a autossugestão pela contemplação do casamento como solução definitiva.

INDIVIDUALIDADE Os grandes temas de uma história são internacionais, mas a maneira como se trata os temas depende do estilo do país. Eu acredito que o tema central de minha obra é a luta que um indivíduo trava contra aquilo que os gregos e os romanos chamavam de destino e que, no caso, assume a forma de uma potência real: ditadura, lei ou sindicato do crime. Trata-se da vontade de proteger a individualidade, e é importante lutar para conseguir isso.

LADRÕES DE BICICLETA Um filme como "Ladrões de Bicicleta" (1948), que em geral foi aceito nos Estados Unidos como um sucesso italiano, seria impossível num meio americano. O problema de um homem cuja sobrevivência depende de sua bicicleta não interessa à grande massa dos Estados Unidos, pois o problema de transporte ali já se encontra resolvido. O americano se interessa apenas por problemas que ainda não se encontram resolvidos para ele -por mais que nem sempre queira admitir que não tenham sido.

MAÇÃ Se eu precisasse explicar por que reservo normalmente um grande espaço vazio em torno de um centro de interesse, diria que é o efeito mais simples e que não quero distrair o público daquilo que é importante. Num filme em cores, eu não colocaria uma maçã vermelha atrás de uma delicada moça, porque os olhos do espectador seriam demasiadamente solicitados pela mancha vermelha.

MAR Eu jamais tive coragem de colocar em um de meus filmes um único plano de mar (1). O mar me assusta. Eu gostaria de ter dado antes de Victor Hugo a seguinte definição: "O mar é uma coisa que me dá medo". E, no entanto, nada me encanta mais do que o mar. Mas como não creio que alguém seja capaz de traduzir o elemento poético do mar -que seja em poema, em quadro ou em filme-, nunca ousei eu mesmo fazê-lo.

MORTE No que diz respeito à morte, eu diria que, em certas circunstâncias particularmente desfavoráveis que acometem uma vida, ela chega a ser desejável, mas que, ainda assim, se deve lutar por aquilo que se entende como justo, mesmo que ao fim haja a morte.

PSICANALISTA Eu tinha o hábito de não levar a sério as pessoas que vinham me explicar o que eu tentava fazer em meus filmes, mas depois aprendi que, ao escrever uma história, deve-se conseguir explicar aos atores por que seus personagens agem de determinada maneira. Talvez o crítico seja uma espécie de psicanalista e descubra certas coisas reais das quais não sou consciente.

PUTAS Em todos nós existe o mal, e um cineasta deve mostrá-lo, deve exprimir o mal. O que nos diverte mais? Passar a noite toda falando de uma puta ou de uma mulher tranquila que só se deita com seu marido? Da puta, é claro. Elas são mais interessantes. O que podemos dizer de uma mulher tranquila? É uma mulher tranquila, nada mais. Tenho o hábito de dizer o seguinte: existem apenas duas categorias de indivíduos: os que são maus e os que são muito maus. Mas nós chegamos a um acordo e chamamos os maus de bons e os muito maus de maus.

RECEITA Amo o cinema, tenho vontade de realizar filmes, mas não me pergunte por que nem como os faço. Os jovens, os estudantes que vêm me ver, querem sempre obter receitas e explicações para a "mise-en-scène". Sinto vontade de citar-lhes estas palavras de Fausto: "Aquilo que você não capta você jamais compreenderá".

REMAKE É absurdo realizar um remake de "M., o Vampiro de Düsseldorf" (1931). O assunto e o contexto do original estavam ligados a uma atmosfera local muito bem definida, que não pode ser transposta, e esse tema, que com o passar dos anos infelizmente se tornou bastante conhecido, era então novo e original. Remakes como "Quo Vadis" (1951) e "Os Miseráveis"(2) são outra coisa, pois tratam de problemas que não encontraram solução definitiva e que, portanto, interessam-nos hoje como nos interessavam outrora, quando foram concebidos pela primeira vez. Esse tipo de remake me parece justificado. Mas repetir um filme unicamente por causa de seu sucesso financeiro já me parece uma má solução. De qualquer forma, não há garantia de sucesso financeiro.

WESTERNS Há certas coisas que, quando ouço as pessoas comentando sobre elas, sou incapaz de entender -quando falam de amor, por exemplo. E a moral, o que isso quer dizer, diga-me, por favor? A moral dos westerns: ela é muito simples. O western concebe da maneira mais simples os atores, os cenários, a luz, e tudo isso recai sobre seus filmes seguintes. Quando você fica mais velho, sua forma de viver também se torna muito mais simples e talvez você veja as coisas de um jeito um pouco mais claro. A simplicidade continuou em toda a minha obra americana.



NOTAS:
1. O mar aparecerá na obra de Lang em filmes posteriores ao texto: "Só a Mulher Peca" (1952) e "O Tesouro de Barba Rubra" (1955).

2. O texto não especifica a qual das adaptações de "Os Miseráveis" Lang se refere, provavelmente ao filme de 1935, dirigido por Richard Boleslawski, ou à versão francesa de 1958, com Jean Gabin e dirigida por Jean-Paul Le Chanois.

Nota da Redação: esta é uma versão adaptada da tradução de Bruno Andrade que constará do catálogo da mostra "Fritz Lang - O Horror Está no Horizonte" (mais informações em culturabancodobrasil.com.br/portal).

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Neil Gaiman:“Temos a obrigação de imaginar…”


Do The Guardian
• Versão editada da palestra de Neil Gaiman para a Reading Agency, que realiza uma série anual de palestras como uma plataforma para que escritores e pensadores compartilhem ideias originais e desafiadoras sobre a leitura e as bibliotecas

É importante para as pessoas dizerem de que lado estão e porque, e se elas podem ou não ser tendenciosas. Um tipo de declaração de interesse dos membros. Então eu estarei conversando com vocês sobre leitura. Direi à vocês que as bibliotecas são importantes. Vou sugerir que ler ficção, que ler por prazer, é uma das coisas mais importantes que alguém pode fazer. Vou fazer um apelo apaixonado para que as pessoas entendam o que as bibliotecas e os bibliotecários são e para que preservem ambos.

E eu sou óbvia e enormemente tendencioso: sou um escritor, muitas vezes um autor de ficção. Escrevo para crianças e adultos. Por cerca de 30 anos tenho ganhado a minha vida através das minhas palavras, principalmente por inventar as coisas e escrevê-las. Obviamente está em meu interesse que as pessoas leiam, que elas leiam ficção, que bibliotecas e bibliotecários existam para nutrir amor pela leitura e lugares onde a leitura possa ocorrer.

Então sou tendencioso como escritor. Mas eu sou muito, muito mais tendencioso como leitor. E sou ainda mais tendencioso enquanto cidadão britânico.

E estou aqui dando essa palestra hoje a noite sob os auspícios da Reading Agency: uma instituição filantrópica cuja missão é dar a todos as mesmas oportunidades na vida, ajudando as pessoas a se tornarem leitores entusiasmados e confiantes. Que apoia programas de alfabetização, bibliotecas e indivíduos e arbitrária e abertamente incentiva o ato da leitura. Porque, eles nos dizem, tudo muda quando lemos.

E é sobre essa mudança e este ato de leitura que quero falar hoje a noite. Eu quero falar sobre o que a leitura faz. O porquê de ela ser boa.

Uma vez eu estava em Nova York e ouvi uma palestra sobre a construção de prisões particulares – uma ampla indústria em crescimento nos Estados Unidos. A indústria de prisões precisa planejar o seu futuro crescimento – quantas celas precisarão? Quantos prisioneiros teremos daqui 15 anos? E eles descobriram que poderiam prever isso muito facilmente, usando um algoritmo bastante simples, baseado em perguntar a porcentagem de crianças entre 10 e 11 anos que não conseguiam ler. E certamente não conseguiam ler por prazer.

Não é um pra um: você não pode dizer que uma sociedade alfabetizada não tenha criminalidade. Mas existem correlações bastante reais.

E eu acho que algumas destas correlações, a mais simples, vem de algo muito simples. Pessoas alfabetizadas leem ficção.

A ficção tem duas utilidades. Primeiramente, é uma droga que é uma porta para leituras. O desejo de saber o que acontece em seguida, de querer virar a página, a necessidade de continuar, mesmo que seja difícil, porque alguém está em perigo e você precisa saber como tudo vai acabar… Este é um desejo muito real. E te força a aprender novos mundos, a pensar novos pensamentos, a continuar. Descobrir que a leitura por si é prazerosa. Uma vez que você aprende isso, você está no caminho para ler de tudo. E a leitura é a chave. Houve um burburinho brevemente há alguns anos atrás sobre a ideia de que estávamos vivendo em um mundo pós-alfabetizado, no qual a habilidade de fazer sentido através de palavras escritas estava de alguma forma redundante, mas esses dias acabaram: as palavras são mais importantes do que jamais foram: nós navegamos o mundo com palavras, e uma vez que o mundo desliza para a web, precisamos seguir, comunicar e compreender o que estamos lendo. As pessoas que não podem entender umas às outras não podem trocar ideias, não podem se comunicar e apenas programas de tradução vão tão longe.

A forma mais simples de ter certeza de que educamos crianças alfabetizadas é ensiná-los a ler, e mostrarmos a eles que a leitura é uma atividade prazerosa. E isso significa, na sua forma mais simples, encontrar livros que eles gostem, dar a eles acesso a estes livros e deixar que eles os leiam.

Eu não acho que exista algo como um livro ruim para crianças. Vez e outra se torna moda entre alguns adultos escolher um subconjunto de livros para crianças, um gênero, talvez, ou um autor e declará-los livros ruins, livros que as crianças devem parar de ler. Eu já vi isso acontecer repetidamente; Enid Blyton foi declarado um autor ruim, R. L. Stine também, assim como dúzias de outros. Quadrinhos tem sido acusados de promover o analfabetismo.

É tosco. É arrogante e é burro. Não existem autores ruins para crianças, que as crianças gostem e querem ler e buscar, porque cada criança é diferente. Eles podem encontrar as histórias que precisam, e eles levam a si mesmos nas histórias. Uma ideia banal e desgastada não é banal nem desgastada para eles. Esta é a primeira vez que a criança a encontrou. Não desencoraje uma criança de ler porque você acha que o que eles estão lendo é errado. A ficção que você não gosta é uma rota para outros livros que você pode preferir. E nem todo mundo tem o mesmo gosto que você.

Adultos bem intencionados podem facilmente destruir o amor de uma criança pela leitura: parar de ler pra eles o que eles gostam, ou dar a eles livros ‘chatos mas que valem a pena’ que você gosta, os equivalentes “melhorados” da literatura Vitoriana do século XXI. Você acabará com uma geração convencida de que ler não é legal e pior ainda, desagradável.

Precisamos que nossas crianças entrem na escada da leitura: qualquer coisa que eles gostarem de ler irá movê-las, degrau por degrau, à alfabetização. (Além disso, não faça o que eu fiz quando a minha filha de 11 anos estava gostando de ler R. L. Stine, que foi pegar uma cópia de Carrie do Stephen King e dizer que se você gosta deste, adorará isto! Holly não leu nada além de histórias seguras de colonos em pradarias pelo resto de sua adolescência e até hoje me dá olhares tortos quando o nome de Stephen King é mencionado).

E a segunda coisa que a ficção faz é construir empatia. Quando você assiste TV ou vê um filme, você está olhando para coisas acontecendo a outras pessoas. Ficção de prosa é algo que você constrói a partir de 26 letras e um punhado de sinais de pontuação, e você, você sozinho, usando a sua imaginação, cria um mundo e o povoa e olha através dos olhos de outros. Você sente coisas, visita lugares e mundos que você jamais conheceria de outro modo. Você aprende que qualquer outra pessoa lá fora é um eu, também. Você está sendo outra pessoa e quando você volta ao seu próprio mundo, você estará levemente transformado.

Empatia é uma ferramenta para tornar pessoas em grupos, que nos permite que funcionemos como mais do que indivíduos obcecados consigo mesmos.

Você também está descobrindo algo enquanto lê que é de vital importância para fazer o seu caminho no mundo. E é isto:

O mundo não precisa ser assim. As coisas podem ser diferentes.

Eu estive na China em 2007 na primeira convenção de ficção científica e fantasia aprovada pelo partido na história da China. E em algum momento eu tomei um alto oficial de lado e perguntei a ele “Por que? A ficção científica foi reprovada por tanto tempo. Por que isso mudou?”. É simples, ele me disse. Os chineses eram brilhantes em fazer coisas se outras pessoas trouxessem os planos para eles. Mas eles não inovavam e não inventavam. Eles não imaginavam. Então eles mandaram uma delegação para os Estados Unidos, para a Apple, para a Microsoft, para o Google e perguntaram às pessoas de lá que estavam inventando seu próprio futuro. E descobriram que todos eles leram ficção científica quando eram meninos e meninas. A ficção pode te mostrar um outro mundo. Pode te levar para um lugar que você nunca esteve. E uma vez que você tenha visitado outros mundos, como aqueles que comeram a fruta da fada, você pode nunca mais ficar completamente satisfeito com o mundo no qual você cresceu.

Descontentamento é uma coisa boa: pessoas descontentes podem modificar e melhorar o mundo, deixá-lo melhor, deixá-lo diferente. E enquanto ainda estamos nesse assunto, eu gostaria de dizer algumas palavras sobre escapismo. Eu ouço o termo utilizado por aí como se fosse uma coisa ruim. Como se ficção “escapista” fosse um ópio barato utilizado pelos confusos, pelos tolos e pelos desiludidos e a única ficção que seja válida, para adultos ou crianças é a ficção mimética, espelhando o pior do mundo em que o leitor ou a leitora se encontra.

Se você estivesse preso em uma situação impossível, em um lugar desagradável, com pessoas que te quisessem mal e alguém te oferecesse um escape temporário, por que você não ia aceitar isso? E ficção escapista é apenas isso: ficção que abre uma porta, mostra o sol lá fora, te dá um lugar para ir onde você esteja no controle, esteja com pessoas com quem você queira estar (e livros são lugares reais, não se enganem sobre isso); e mais importante, durante o seu escape, livros também podem te dar conhecimento sobre o mundo e o seu predicamento, te dar armas, te dar armaduras: coisas reais que você pode levar de volta para a sua prisão. Habilidades, conhecimento e ferramentas que você pode utilizar para escapar de verdade.

Como J. R. R. Tolkien nos lembrou, as únicas pessoas que fazem injúrias contra o escape são prisioneiros.

Outra forma de destruir o amor de uma criança pela leitura, claro, é se assegurar de que não existam livros de nenhum tipo por perto. E não dar a elas nenhum lugar para que leiam estes livros. Eu tive sorte. Eu tive uma biblioteca local excelente enquanto eu cresci. Eu tive o tipo de pais que podiam ser persuadidos a me deixar na biblioteca no caminho do trabalho deles nas férias de verão, e o tipo de bibliotecários que não se importavam que um menino pequeno e desacompanhado ficasse na biblioteca das crianças todas as manhãs e ficasse mexendo no catálogo de cartões, procurando por livros com fantasmas ou mágica ou foguetes neles, procurando por vampiros ou detetives ou bruxas ou fantasias. E quando eu terminei de ler a biblioteca de crianças eu comecei a de adultos.

Eles eram ótimos bibliotecários. Eles gostavam de livros e eles gostavam dos livros que estavam sendo lidos. Eles me ensinaram como pedir livros das outras bibliotecas em empréstimo inter-bibliotecas. Eles não eram arrogantes em relação a nada que eu lesse. Eles pareciam apenas gostar do fato de existir esse menininho de olhos arregalados que amava ler e conversariam comigo sobre os livros que eu estava lendo, achariam pra mim outros livros em uma série deles, eles me ajudariam. Eles me tratavam como outro leitor – nem mais, nem menos – o que significa que eles me tratavam com respeito. Eu não estava acostumado a ser tratado com respeito aos oito anos de idade.

Mas as bibliotecas tem a ver com liberdade. A liberdade de ler, a liberdade de ideias, a liberdade de comunicação. Elas tem a ver com educação (que não é um processo que termina no dia que deixamos a escola ou a universidade), com entretenimento, tem a ver com criar espaços seguros e com o acesso à informação.

Eu me preocupo que no século XXI as pessoas entendam errado o que são bibliotecas e qual é o propósito delas. Se você perceber uma biblioteca como estantes com livros, pode parecer antiquado e datado em um mundo no qual a maioria, mas não todos, os livros impressos existem digitalmente. Mas pensar assim é errar o ponto fundamentalmente.

Eu acho que tem a ver com a natureza da informação. A informação tem valor, e a informação certa tem um enorme valor. Por toda a história humana, nós vivemos em escassez de informação e ter a informação desejada era sempre importante, e sempre valia alguma coisa: quando plantar sementes, onde achar as coisas, mapas e histórias e estórias – eles eram sempre bons para uma refeição e companhia. Informação era uma coisa valorosa, e aqueles que a tinham ou podiam obtê-la podiam cobrar por este serviço.

Nos últimos anos, nos mudamos de uma economia de escassez da informação para uma dirigida por um excesso de informação. De acordo com o Eric Schmidt do Google, a cada dois dias agora a raça humana cria tanta informação quanto criávamos desde o início da civilização até 2003. Isto é cerca de cinco exobytes de dados por dia, para vocês que mantém a contagem. O desafio se torna não encontrar aquela planta escassa crescendo no deserto, mas encontrar uma planta específica crescendo em uma floresta. Precisaremos de ajuda para navegar nesta informação e achar a coisa que precisamos de verdade.

Bibliotecas são lugares que pessoas vão para obter informação. Livros são apenas a ponta do iceberg da informação: eles estão lá, e bibliotecas podem fornecer livros gratuitamente e legalmente. Crianças estão emprestando livros de bibliotecas hoje mais do que nunca – livros de todos os tipos: de papel e digital e em áudio. Mas as bibliotecas também são, por exemplo, lugares onde pessoas que não tem computadores, que podem não ter conexão à internet, podem ficar online sem pagar nada: o que é imensamente importante quando a forma que você procura empregos, se candidata para entrevistas ou aplica para benefícios está cada vez mais migrando para o ambiente exclusivamente online. Bibliotecários podem ajudar estas pessoas a navegar neste mundo.

Eu não acredito que todos os livros irão ou devam migrar para as telas: como Douglas Adams uma vez me falou, mais de 20 anos antes do Kindle aparecer, um livro físico é como um tubarão. Tubarões são velhos: existiam tubarões nos oceanos antes dos dinossauros. E a razão de ainda existirem tubarões é que tubarões são melhores em serem tubarões do que qualquer outra coisa que exista. Livros físicos são durões, difíceis de destruir, resistentes à banhos, operam a luz do sol, ficam bem na sua mão: eles são bons em serem livros, e sempre existirá um lugar para eles. Eles pertencem às bibliotecas, bem como as bibliotecas já se tornaram lugares que você pode ir para ter acesso à ebooks, e audio-livros e DVDs e conteúdo na web.

Uma biblioteca é um lugar que é um repositório de informação e dá a cada cidadão acesso igualitário a ele. Isso inclui informação sobre saúde. E informação sobre saúde mental. É um espaço comunitário. É um lugar de segurança, um refúgio do mundo. É um lugar com bibliotecários. Como as bibliotecas do futuro serão é algo que deveríamos estar imaginando agora.

Alfabetização é mais importante do que nunca, nesse mundo de mensagens e e-mail, um mundo de informação escrita. Precisamos ler e escrever, precisamos de cidadãos globais que possam ler confortavelmente, compreender o que estão lendo, entender as nuances e se fazer entender.

As bibliotecas realmente são os portais para o futuro. É tão lamentável que, ao redor do mundo, nós observemos autoridades locais apropriarem-se da oportunidade de fechar bibliotecas como uma maneira fácil de poupar dinheiro, sem perceber que eles estão roubando do futuro para serem pagos hoje. Eles estão fechando os portões que deveriam ser abertos.

De acordo com um estudo recente feito pela Organisation for Economic Cooperation and Development, a Inglaterra é o “único país onde o grupo de mais idade tem mais proficiência tanto em alfabetização quanto em capacidade de usar ou entender as técnicas numéricas da matemática do que o grupo mais jovem, depois de outros fatores, tais como gênero, perfis sócio-econômicos e tipo de ocupações levados em consideração”.

Colocando de outro modo, nossas crianças e netos são menos alfabetizados e menos capazes de utilizar técnicas de matemática do que nós. Eles são menos capazes de navegar o mundo, de entendê-lo e de resolver problemas. Eles podem ser mais facilmente enganados e iludidos, serão menos capazes de mudar o mundo em que se encontram, ser menos empregáveis. Todas essas coisas. E como um país, a Inglaterra ficará para trás em relação a outras nações desenvolvidas porque faltará mão de obra especializada.

Livros são a forma com a qual nós nos comunicamos com os mortos. A forma que aprendemos lições com aqueles que não estão mais entre nós, que a humanidade se construiu, progrediu, fez com que o conhecimento fosse incremental ao invés de algo que precise ser reaprendido, de novo e de novo. Existem contos que são mais velhos que alguns países, contos que sobreviveram às culturas e aos prédios nos quais eles foram contados pela primeira vez.

Eu acho que nós temos responsabilidades com o futuro. Responsabilidades e obrigações com as crianças, com os adultos que essas crianças se tornarão, com o mundo que eles habitarão. Todos nós – enquanto leitores, escritores, cidadãos – temos obrigações. Pensei em tentar explicitar algumas dessas obrigações aqui.

Eu acredito que temos uma obrigação de ler por prazer, em lugares públicos e privados. Se lermos por prazer, se outros nos verem lendo, então nós aprendemos, exercitamos nossas imaginações. Mostramos aos outros que ler é uma coisa boa.

Temos a obrigação de apoiar bibliotecas. De usar bibliotecas, de encorajar outras pessoas a utilizarem bibliotecas, de protestar contra o fechamento de bibliotecas. Se você não valoriza bibliotecas então você não valoriza informação ou cultura ou sabedoria. Você está silenciando as vozes do passado e você está prejudicando o futuro.

Temos a obrigação de ler em voz alta para nossas crianças. De ler pra elas coisas que elas gostem. De ler pra elas histórias das quais já estamos cansados. Fazer as vozes, fazer com que seja interessante e não parar de ler pra elas apenas porque elas já aprenderam a ler sozinhas. Use o tempo de leitura em voz alta para um momento de aproximação, como um tempo onde não se fique checando o telefone, quando as distrações do mundo são postas de lado.

Temos a obrigação de usar a linguagem. De nos esforçarmos: descobrir o que as palavras significam e como empregá-las, nos comunicarmos claramente, de dizer o que estamos querendo dizer. Não devemos tentar congelar a linguagem, ou fingir que é uma coisa morta que deve ser reverenciada, mas devemos usá-la como algo vivo, que flui, que empresta palavras, que permite que significados e pronúncias mudem com o tempo.

Nós escritores – e especialmente escritores para crianças, mas todos os escritores – temos uma obrigação com nossos leitores: é a obrigação de escrever coisas verdadeiras, especialmente importantes quando estamos criando contos de pessoas que não existem em lugares que nunca existiram – entender que a verdade não está no que acontece mas no que ela nos diz sobre quem somos. A ficção é a mentira que diz a verdade, afinal. Temos a obrigação de não entediar nossos leitores, mas fazê-los sentir a necessidade de virar as páginas. Uma das melhores curas para um leitor relutante, afinal, é uma estória que eles não são capazes de parar de ler. E enquanto nós precisamos contar a nossos leitores coisas verdadeiras e dar a ele armas e dar a eles armaduras e passar a eles qualquer sabedoria que recolhemos em nossa curta estadia nesse mundo verde, nós temos a obrigação de não pregar, não ensinar, não forçar mensagens e morais pré-digeridas goela abaixo em nossos leitores como pássaros adultos alimentando seus bebês com vermes pré-mastigados; e nós temos a obrigação de nunca, em nenhuma circunstância, escrever nada para crianças que nós mesmos não gostaríamos de ler.

Temos a obrigação de entender e reconhecer que enquanto escritores para crianças nós estamos fazendo um trabalho importante, porque se nós estragarmos isso e escrevermos livros chatos que distanciam as crianças da leitura e de livros, nós estaremos menosprezando o nosso próprio futuro e diminuindo o deles.

Todos nós – adultos e crianças, escritores e leitores – temos a obrigação de sonhar acordado. Temos a obrigação de imaginar. É fácil fingir que ninguém pode mudar coisa alguma, que estamos num mundo no qual a sociedade é enorme e que o indivíduo é menos que nada: um átomo numa parede, um grão de arroz num arrozal. Mas a verdade é que indivíduos mudam o seu próprio mundo de novo e de novo, indivíduos fazem o futuro e eles fazem isso porque imaginam que as coisas podem ser diferentes.

Olhe à sua volta: eu falo sério. Pare por um momento e olhe em volta da sala em que você está. Eu vou dizer algo tão óbvio que a tendência é que seja esquecido. É isto: que tudo o que você vê, incluindo as paredes, foi, em algum momento, imaginado. Alguém decidiu que era mais fácil sentar numa cadeira do que no chão e imaginou a cadeira. Alguém tinha que imaginar uma forma que eu pudesse falar com vocês em Londres agora mesmo sem que todos ficássemos tomando uma chuva. Este quarto e as coisas nele, e todas as outras coisas nesse prédio, esta cidade, existem porque, de novo e de novo e de novo as pessoas imaginaram coisas.

Temos a obrigação de fazer com que as coisas sejam belas. Não de deixar o mundo mais feio do que já encontramos, não de esvaziar os oceanos, não de deixar nossos problemas para a próxima geração. Temos a obrigação de limpar tudo o que sujamos, e não deixar nossas crianças com um mundo que nós desarrumamos, vilipendiamos e aleijamos de forma míope.

Temos a obrigação de dizer aos nossos políticos o que queremos, votar contra políticos ou quaisquer partidos que não compreendem o valor da leitura na criação de cidadãos decentes, que não querem agir para preservar e proteger o conhecimento e encorajar a alfabetização. Esta não é uma questão de partidos políticos. Esta é uma questão de humanidade em comum.

Uma vez perguntaram a Albert Einstein como ele poderia tornar nossas crianças inteligentes. A resposta dele foi simples e sábia. “Se você quer que crianças sejam inteligentes”, ele disse, “leiam contos de fadas para elas. Se você quer que elas sejam mais inteligentes, leia mais contos de fadas para elas”. Ele entendeu o valor da leitura e da imaginação. Eu espero que possamos dar às nossas crianças um mundo no qual elas possam ler, e que leiam para elas, e imaginar e compreender.