quinta-feira, 29 de maio de 2014

Nando Reis - Sinceridade à toda prova

Gabriel Rinaldi

Por Marcus Preto
Foto: Gabriel Rinaldi
Da Revista Trip

Deve ser para organizar a narrativa da própria vida que Nando Reis escreve. Suas canções são tão intensamente autobiográficas (num esforço de memória, ele só consegue se lembrar de uma que não tenha sido construída a partir de experiências muito pessoais) que toda conversa com ele parece uma reedição em prosa de hits que o grande público conhece bem, como “Relicário”, “All Star” e “Cegos do castelo”. Nando desenha sua história em público.

Também estão expostos nas canções todos os seus venenos. O ato da composição sempre foi para ele algo intimamente ligado ao álcool e à cocaína. A ponto de ter de parar de compor (e lançar um álbum só de covers, Bailão do ruivão, em 2010) para também tomar distância dos vícios. Nesta entrevista – concedida na casa ampla e cheia de discos e obras de arte em que mora, no Pacaembu, em São Paulo – ele equaciona essas relações tão perigosas com o amor pela vida e o medo da morte. Apesar de tudo o que já experimentou e do tão fundo que foi, não veste a fantasia puída de “roqueiro autodestrutivo”. Já morreu muitas vezes (e foram duas tentativas reais de suicídio), mas só foi até o ponto em que ainda era possível voltar atrás.

Esse personagem, no entanto, apareceu com frequência também no palco. Em muitos dos shows que fez na carreira, estava completamente chapado, expurgando em cena as angústias descritas nas letras. Esse tipo de experiência, ele diz, vem desde os tempos primordiais com os Titãs, banda que fundou em 1982 e com a qual rompeu 20 anos depois para seguir em carreira solo.

E foi no pós-Titãs que sua vida profissional tomou dimensões inimagináveis. Desde a segunda metade da década passada, Nando frequenta, ano a ano, a lista dos maiores arrecadadores de direitos autorais do Brasil. Segundo a tabela oficial do Ecad, o compositor é o oitavo no ranking dos titulares com maior rendimento em shows em 2013. Chico Buarque é o nono; Caetano Veloso, o 11º; Paula Fernandes, a 14ª; e Djavan, o 15º. Os números impressionam mais se levarmos em conta que Sei, seu álbum de inéditas mais recente, foi lançado um ano antes de maneira completamente independente, à parte de uma grande gravadora – as 15 faixas foram lançadas na internet, pelo preço que o comprador achasse justo pagar.

Por que letras tão herméticas ganharam o gosto popular? Não há uma explicação muito segura. Mas alguns fatos certamente ajudaram a construir esse caminho de consagração. Um deles, quando Nando ainda estava nos Titãs, foi a gravação de canções suas por Marisa Monte, então sua namorada, no álbum Mais (1991). “Diariamente”, incluída nesse trabalho, pode ser considerada um clássico do pop brasileiro. Depois veio Cássia Eller (1962 – 2002), cujos álbuns de maior repercussão foram produzidos por ele – Com você... Meu mundo ficaria completo (1999), Acústico MTV (2001) e o póstumo Dez de dezembro (2002). Dali, eclodiriam hits nacionais como “O segundo sol”, “Luz nos olhos”, “Relicário” e “All Star”.

Mas não foram somente as cantoras que serviram de combustível ao compositor popular que Nando se tornaria. Foram determinantes no percurso as inclusões de canções dele nos álbuns dos mineiros do Jota Quest e do Skank. Talvez o público nem se dê conta disso, mas hits absolutos dessas bandas, como “Do seu lado” (Jota) e “Resposta”, “É uma partida de futebol”, “Dois rios” e “Ainda gosto dela” (Skank) são de autoria de Nando Reis.

Hoje, aos 51 anos, José Fernando Gomes dos Reis, um são-paulino apaixonado que já foi colunista de futebol, parece interessado em reescrever sua história com outras tintas. E isso inclui a sobriedade. Ele conta que está “limpo” há um ano e três meses. Retomou o casamento (em casas separadas) com Vânia Reis, a mulher que conheceu ainda na adolescência e com quem tem quatro filhos – Theodoro, 28 anos, Sophia, 25, Sebastião, 19, e Zoe, 14. Ismael, seu quinto filho, tem 8 anos e mora no Rio Grande do Sul com a mãe, Nani (Nando tem também uma neta, Luzia, filha de Theodoro).

Toda essa família nós já conhecemos pelo rádio. Ou pelos discos. “Back in Vânia”, “Sophia/ Meu medo é te ver machucada/ Errei por ter te machucado/ Seu pai é um homem indomável/ Um provável homem doce”, “Tenho cinco filhos, fiz uma família/ Trouxe de Saturno um anel de leão/ Onde, hoje, moram minha mãe Cecília/ Cássia e Marcelo/ Dentro do meu coração”, “Meu mundo não teria razão/ Se não fosse a Zoe”, “O mundo é bão, Sebastião”.

Tudo parece biografia, mas é música. Mesmo que ele quisesse muito, não haveria nada que Nando Reis pudesse esconder.

O que é veneno pra você? E que veneno mais o modificou na vida? Tem muitas definições do que é veneno. Você pode partir do que faz mal, mais do que o que te altera. Parto do princípio de que veneno deve ser isto: aquilo que não circula bem dentro do seu organismo e da sua cabeça. Acho que a coisa que mais me machucou foram as mortes. Há três mortes muito determinantes na minha vida. Primeiro a da minha mãe, que morreu de câncer. Eu tinha 26 anos, a Sophia [sua filha] tinha acabado de nascer e os Titãs tinham estourado, realizado o sonho de ver nossa música popularizada, fazendo turnê pelo Brasil. Fui bem atingido por isso. Eu estava distante, muito deslumbrado, e a morte dela se deu sem que eu tivesse me dado muito conta do próprio processo da doença. Isso deu uma quebra que eu associo, inevitavelmente, à relação com a cocaína, que é uma droga que eu usei muito e que se misturou muito com a minha vida.

Mas não era só você que usava cocaína na banda. Os Titãs usavam drogas, teve o episódio da prisão do Arnaldo [Antunes]… E até um certo tempo eu era amedrontado com isso. Eu era moralista, meio careta, achava que era uma coisa que não devia ser feita. Tinha fumado maconha, mas parei cedo, porque ela começou a despertar em mim uma paranoia. Eu não posso fumar. Engraçado… Recentemente eu tive um sonho em que eu tinha voltado a fumar e isso me fazia bem. Tem esse ranking das coisas que são mais poderosas e deletérias e te agridem mais, como se a maconha fosse inofensiva e a cocaína o demônio. Mas o impacto e a maneira como cada um usa é tão particular. Bem, mas voltando para a resposta original, daquilo que mais me machucou e me intoxicou, no sentido de deixar algo correndo nas minhas veias, raiva, foi a morte da minha mãe e, anos depois, a morte do Marcelo [Fromer] e da Cássia [Eller]. No ano de 2001, acho… sempre confundo.

A Cássia foi em dezembro de 2001. O Marcelo… Foi uns seis meses antes. Isso foi um negócio que teve um impacto violento. Despertou muita raiva também e foi determinante pras minhas reações. A minha reação a essas duas mortes se deu no meu desentendimento com os Titãs, na cristalização da nossa separação, que era um processo. Mas, já que eu falei de drogas: eu me envolvi muito com isso. Usei muita cocaína e álcool. Estou há um ano e dois meses sem beber, porque eu também achei que estava dando muito problema. Essa percepção de quão tóxicos estavam se tornando esses dois elementos na minha vida, que sempre se misturaram com a minha relação de trabalho… Sempre bebi, desde pequeno. Há algo na minha família, essa coisa do glamour… Diferentemente do meu pai e do meu avô, que tomavam seu uísque e tal, eu bebia a trabalho, sabe?

O trabalho era meio uma razão pra fazer isso. Era. E eu sempre fui tímido, o álcool era útil para essa desinibição, que tem a ver com as loucuras, inseguranças e tudo o mais. E um efeito muito prazeroso. A questão das drogas tem a ver com isto: elas sempre me deram prazer. A lícita e a ilícita: o álcool, que é permitido, e a cocaína, que não é. Elas sempre se misturaram na minha relação com o trabalho. A decisão de cortar tem a ver com a idade, com o corpo, com o uso abusivo que eu sempre fiz... e a percepção de que não está funcionando tão bem. Embora fiquem registrados na minha memória os picos de prazer. E, no meu caso, a produção... porque eu sempre fui muito produtivo com cocaína. Sempre usei muito pra compor e tudo o mais. Mas uma hora começou a atrapalhar, fiz shows ruins. Ano passado, percebi que estava tudo ruim e que eu nunca tinha experimentado essa perspectiva que estou tendo agora. Não que eu nunca tivesse feito tentativas. Já fui ao AA, carrego a fichinha do AA na carteira desde que fui pela primeira vez.

Você é alcoólatra? Sou um pouco reticente com essa questão da nomenclatura de alcoólatra, não alcoólatra. A própria literatura é. Resolvi experimentar a abstinência do álcool e me dei conta de que eu vivia uma abstinência de muitas outras coisas que eu não tinha percebido. A abstinência da relação afetiva. A abstinência do próprio prazer físico, das atividades, da lucidez. Estou abstinente de álcool, e de cocaína consequentemente, mas ganhei outras coisas. Estou muito satisfeito com isso. Quando você pergunta se eu sou alcoólatra, acho que essa não é a definição. Bem, pode ser que sim... Mas não faz muita diferença pra mim. Pretendo experimentar voltar a beber. Tenho uma atração por estados alterados. Fico reticente de declarar isso publicamente... não quero a vigilância de ninguém, a não ser a minha. Mas, enfim, estou de férias!

É uma espécie de ano sabático. É, um enorme sabático dessa relação com tudo. Espero que tudo que venha a acontecer se reorganize em outros moldes. Os moldes em que estava já foram suficientemente vividos. Repetir aquelas situações, principalmente de insatisfação, é muito doído. Mas nunca fui adepto de reverter o estágio de cocaína tomando remédio. “Vou tomar um Rivotril pra dormir, um Lexotan pra interromper.” Eu vivia tudo, achava que era importante… loucuras. Tenho 51 anos. Estou bem feliz por não me intoxicar mais, embora não saiba o quanto isso é definitivo.

Você falou de compor com cocaína. Como está a história da composição hoje? Está bem. Compor ou não compor sempre foi uma das coisas que mais me angustiam na vida. A ideia de não fazer uma música, de não gostar da música, sempre esteve presente. E continua. Tem coisas… Este ano eu concluí um trabalho com o Samuel [Rosa]. O Skank deve lançar um disco agora, eu fiz nove músicas. Acho que entraram cinco ou seis no disco. Trabalhei bem. Sóbrio. Fiz músicas interessantes, boas. Mas é difícil, muitas vezes eu tenho vontade de cheirar pra compor. A lembrança do quanto deu certo não se apaga da memória.

Nunca teve aquela história de fazer uma coisa loucão e na hora em que acorda ver que não era tão bom quanto você achava? Mais ou menos. Tenho uma autocrítica ferrenha, às vezes paralisante, e o álcool, a cocaína ou qualquer outra substância que atenue esse impacto sempre foram bons. O disparador, o começo. A coisa chata de fazer muito drogado é que às vezes você não se lembra de como foi e parece que foi uma coisa meio mágica. Mas eu sou um trabalhador. Tenho um lado obsessivo de gostar, de quando eu pego o violão, me debruço sobre uma música, escrevo muito.

Você falou dos shows que estavam ficando ruins. Mas também fez ótimos shows quando estava bem maluco, não? Nesse período de total sobriedade, fiz grandes shows. De mergulhar naquilo que se está fazendo sem deixar outro pensamento te dispersar. A coisa que mais fode um show é você estar cantando e ter um pensamento paralelo. A sobriedade é muito melhor pra cantar e eu, que nunca fui um grande cantor, com recursos técnicos, tinha uma ideia de que só se ficasse doido eu teria interesse pelas coisas. Isso é falso. Durante muito tempo também eu estava tão doido que eu queria acabar o show pra ir pro hotel cheirar. O show às vezes era um martírio. Um show bom pra mim é quando eu me comunico não só com a plateia, mas também com a banda, e quando eu não deixo que a minha armadura se feche nos meus pensamentos e me ponha num lugar onde não estou.

Você é um dos dez maiores arrecadadores do Ecad… Será que ainda estou na lista?

Está. E faz tempo. Não é maluco que o Brasil, em certo ponto tão careta, reacionário, absorva tão bem sua personalidade outsider? Eu nunca fui mesmo sóbrio, convencional. Usar ou não usar drogas, beber ou não beber nunca foi o que me fez ser careta ou louco. Dizem que as músicas que eu faço são o que eu sou… É engraçado, às vezes eu acho que eu tenho um “não lugar” na história da música brasileira. Grande parte do meu repertório, que me coloca nessa lista, é muito popular. Mas parece que aos olhos da produção cultural brasileira isso me descredibiliza, como se eu fosse um artista pop de segunda linha. Não sou o cult, tenho 51 anos, tenho uma carreira de 30 e tantos anos, já fiz músicas de sucesso com os Titãs, muitas músicas minhas fizeram sucesso na rádio. Mas não sou premiado em nada. Nas edições do prêmio do José Maurício Machline [Prêmio da Música Brasileira], que deve comemorar 25 anos, nunca fui indicado. Ano passado acho que fui indicado a melhor capa... Vai tomar no cu! É ridículo.

Você se ressente desse não reconhecimento? Não estou reclamando… Estou fazendo uma observação do lugar estranho em que estou. É como se eu fosse visto, pelo fato de eu ser popular e fazer muitos shows, é como se isso não tivesse um primor de trabalho ou poético ou melódico ou de composição que merecesse qualquer tipo de olhar. Acho estranho, esquisito. Gosto de ser um dos dez mais, mas isso é somatória. Provavelmente tem uma participação grande das pessoas que gravaram as músicas que eu fiz com o Samuel, muitas delas foram hits estrondosos de rádio.

Seu trabalho é muito autobiográfico. Seu último disco é quase completamente dedicado à volta do seu casamento com a Vânia. Queria que você falasse dessa relação. Esse casamento é seu antídoto? Bicho, a monotonia pode ser um puta veneno. E um casamento… Eu acho que nunca me separei da Vânia, mesmo estando afastado dela. Não só por conta dos quatro filhos, mas pelo tempo, pela amizade, pela admiração, pela afinidade de pensamento e pelo cuidado durante a separação, que durou quase oito anos nesse último período. Tive até um filho, o Ismael, com a Nani, que não é fruto de um casamento. Nossas vidas poderiam de fato ter se estruturado para outros casamentos e relações, mas isso não aconteceu. Eu voltei pra ela muito feliz, embora a gente tenha duas casas.

Há quanto tempo vocês estão juntos? Conheço a Vânia desde que eu tinha 15 anos. Atravessei tantas coisas, criei tantas coisas… Ela me dá tranquilidade. É a pessoa que sempre consulto para fazer as coisas e com quem eu, atualmente, estou nessa nova organização que a minha sobriedade trouxe. Não me lembro de ter passado um dia sem ter falado com ela ao telefone, mesmo separado, ou ter deixado de pensar nela, sabe? Fui pra um lugar lindo e pensei na Vânia. Queria comentar as coisas com ela, mesmo estando namorando, envolvido com outra pessoa… E ela identicamente. Fico feliz de estar ao lado de uma pessoa que eu sempre trouxe dentro de mim. É um sentido maior.

Muda muita coisa na relação, depois de tanto tempo? Mudou bastante. Os quatro filhos que tenho com a Vânia cresceram… E é engraçado, ando pensando nisso. No fato de ter tido primeiro o Theodoro e a Sophia, que hoje têm 28 e 26 anos, e depois, num outro momento, o Sebastião, que tem 19, e a Zoé, de 14. Acho que eu tive a crise dos 40 aos 50. Não no sentido de uma mudança externa, na percepção de “ah, estou perdendo cabelo”, mas pensando na finitude das coisas. Fiquei um pouco de saco cheio na minha ideia de sempre estar postergando a felicidade ou criando planos. As músicas que eu escrevo falam muito mais de um ideal. Muito mais daquilo que persigo do que do que vivo. Isso me aborrece um pouco.

Por quê? Eu não quero viver tanto de planos, essa ideia de ficar completamente apaixonado, criando coisas. Quando eu me separei da Vânia, fiquei anos... Namorei a Anna Butler em três períodos diferentes, namorei a Nani, a mãe do Ismael, depois namorei a Adriana. Eu tava sempre imaginando que ia formar uma nova família, casar de novo. E, sempre que essas relações se desenvolviam, uma hora tinha um impedimento meu de que elas se concretizassem. E uma certa desconfiança também, não da legitimidade do afeto que eu tinha por essas mulheres. Uma desconfiança do projeto no qual estava me lançando com elas, então vinham as interrupções.

A coisa destrutiva das drogas também não interferia? Não é porque usei drogas que tenho uma relação destrutiva. Eu sou um ser vital, construí um monte de coisas, não é justo comigo que eu não usufrua dessas coisas. Minha volta com a Vânia, ainda mais depois dessa tarefa de criar os filhos, tem isso. Eu penso muito agora: quero viver! Meu próximo passo é parar de trabalhar tanto. Minha vida custa muito caro, minha estrutura é cara, o que me aborrece. Tenho medo de criar uma relação predatória com meu próprio trabalho. Não tenho mais saco para deslocamentos, por exemplo.

E você ainda viaja muito. Nesta semana tenho que viajar. Cinco shows em cinco estados diferentes. Tenho a sensação de que vivo muito uma coisa e deixo de viver outras. Quero ser mais equilibrado. Então, meu casamento com a Vânia, uso ele quase como um símbolo. Um símbolo de um casamento com a vida, e não só com o trabalho.

Você tem discos pra todas as namoradas. Seu trabalho, por ser autobiográfico, tem relação com o que acontece na sua vida amorosa? Tem. Meu trabalho tem esse lado vital, que eu falo e defendo. É um traço muito antigo meu. A música que eu mais gosto do disco Sei é a “Pré-sal”. Porque ela descreve muitas coisas relacionadas com a minha infância. O título foi dado pela minha irmã. Um dia reuni meus irmãos aqui e mostrei as músicas que eu ia gravar. Minha irmã olhou e falou: “Acho que essa música deveria chamar ‘Pré-sal’, porque ela é tão profunda, é anterior à consciência”.

Como é essa relação com seus irmãos? Tem dois episódios muito determinantes na história da minha família. Eu sou o quarto filho de cinco. Carlito é o mais velho... meu pai e minha mãe se casaram muito jovens, ela tinha 19 anos. Com 21, já tinha três filhos. O Zeco, o terceiro, teve meningite e ficou surdo. Cinco anos depois eu nasci, ruivo. Não há nenhum ruivo na história da família, eu sou um acidente genético. E três anos depois de mim nasceu a Lulu, Maria Luiza. Ela teve meningite também, que degenerou para uma encefalite e deu uma paralisia cerebral. Ela foi superafetada por essa paralisia. O Zeco, apesar de surdo, sempre estudou em escola normal. Minha mãe sempre foi defensora da inserção, da inclusão. Que ele não ficasse restrito ao gueto dos surdos e mudos, da linguagem de sinais. O caso da Lulu era mais grave, então ela ia a uma escola especializada, para pessoas com problemas neurológicos e motores graves. 

Conviver com isso foi marcante na sua vida? Ela tinha surtos de agressividade, uma coisa terrível. Então era um pouco constrangedor pra mim, meus amigos iam lá pra casa e se assustavam com aquilo. Nossa vida familiar foi muito marcada por esses episódios. Somos paulistanos de classe média alta... mas eu sempre fui estranho. Pela ruivice, pela minha família, pela minha história. Essa estranheza, nem facilitadora, nem dificultadora, foi a minha marca particular. Minhas músicas autobiográficas sempre estão em primeira pessoa porque são de fato a minha história. Cada um de nós precisa se haver com aquilo que é. E essa é talvez a força política da minha música, a defesa do indivíduo. Não no individualismo contra o coletivo, pelo contrário: pra você se incluir coletivamente de uma forma saudável, você precisa ser satisfeito com o que é.

Em uma banda de oito, era preciso se colocar... Eu nunca fui bom, eu sempre perdi lá dentro. Tanto que eu tive que fazer muitas coisas fora. O Marcelo [Fromer], ele que me alertou: “Bicho, você faz um monte de coisa. Por que você não compõe?”. A quantidade de músicas que eu apresentava pro Titãs e era gravada era pouca. Eu era um autor minoritário dentro do grupo, não era bom na competição lá dentro. Acho que fui engolido muitas vezes e desenvolvi vinganças. Tem um lado estranho da minha personalidade, da minha relação com os Titãs. E é paradoxal: sou um sujeito que se arrisca muito. Mas meus riscos são meio calculados. Já quase me fodi nessas de saber até onde posso ir.

Por exemplo? Já tentei me matar. Saca? Evidentemente era a infelicidade da vida que eu levava, somada a uma raiva, somada a um foda-se... E, claro, muita droga.

Tentou se matar como? Exagerando na droga? Não, não. Eu tenho uma resistência física absurda. Nunca tive ressaca, sou daqueles caras que cheiravam, cheiravam, e depois iam fazer coisas. Nunca faltei em um show, nunca perdi hora, raramente perdi um voo. É uma característica minha. Tentei me matar foi porque eu estava bebendo muito, minha vida estava desorganizada. Eu tava separado da Vânia e ela falou: “Do jeito que você tá, não vai pegar as crianças”. Isso foi o fim. Tomei duas caixas de Lexotan. Tive uma intoxicação e fui socorrido. Também já cheguei a ficar na beira de um prédio, olhando pra baixo. Já fui salvo, sobrevivi. Nunca bati o carro... Tudo isso pra dizer que, embora eu tenha me arriscado muito, eu sabia que eu ia voltar. Sempre voltei. 

Como é estar exposto assim, diante dos filhos? Tem uma música sobre a Sophia... Essa música é muito explícita sobre essa relação difícil. A Sophia sempre reagiu negativamente, apontando “eu não gosto que você fique muito doido”. Se afastou de mim, nunca se esquivou desse assunto. Nenhum filho gosta de ver pai bêbado, ausente. É deprimente. Ela sempre falou: “Acho uma merda você beber, cheirar”. E a música, eu escrevi muito louco, aliás. Há mensagens subliminares sobre esse assunto em várias outras músicas minhas. “Cegos no castelo” é uma. Todo mundo acha que eu estou falando sobre os Titãs. Mas é muito da minha cegueira, meu isolamento. Castelo é um lugar onde metaforicamente eu me encastelava. Falava de mim e da minha relação com a cocaína.

Está tudo certo entre você e os Titãs hoje? Tá, supercerto. Adoro todos eles, adoro a nossa história, os discos que a gente fez. Era muito apaixonada a minha relação com eles, durante muitos anos. Uma separação é sempre desagradável e claro que vieram à tona coisas que não precisavam ter vindo, a dor de cada um dos lados, a raiva de cada um pela incompreensão. A minha saída tinha a ver com me sentir incompreendido, ver o meu espaço cerceado, naquele momento parecia isso. Depois eu vi que eu tava querendo mais espaço e uma necessidade absoluta de controle, de não ter que dividir tanto. Você só pode estar numa banda se você deseja aquilo, a coisa democrática. Tava ficando chato, eu era sempre a voz dissonante. Mas não há mágoa.

Vocês se veem? Estive com Paulo [Miklos] há dois meses, a morte da Raquel [mulher dele] me tocou profundamente, me fez sentir saudades deles todos. Impossível retornar aos Titãs, mas eu queria muito retornar a amizade, a convivência. Com o Paulo, por exemplo, a gente passou uma noite aqui em casa, 5, 6 horas conversando, bebendo cerveja sem álcool, que eu adoro. É muita afinidade, sabe? Há muitas coisas que eu vivi com eles, da forma de pensar, da maneira de ouvir música, de comentar. Tenho vontade de ligar, sabe? Não tô falando só de nostalgia, tô falando de linguagem. Eu admiro muito a forma, a inteligência de todos eles. O Paulo Miklos é um sujeito brilhante. É um dos caras mais engraçados que eu já vi. No Natal, fomos almoçar eu e ele na casa do Arnaldo, eu adoro. Relações como essa podem se manter mesmo sem contato, que elas estão intactas. Tenho certeza, com todos eles. Com Paulo, Charles, Arnaldo, Brito, Branco, Belotto. Lamentavelmente não posso encontrar o Marcelo.

Você tem medo de morrer? Ando pensando muito na morte, sim. Acho que principalmente… Meu pai tá com 83 anos e a sua saúde sofreu um ligeiro revés. Então olhar pra ele e pra mim, os filhos crescendo… Tenho pensado nisso, sim. Não tem coisas que eu nunca fiz e preciso fazer antes de morrer, sabe? O que incomoda são sinais de mudança no próprio corpo. Eu treino, faço musculação, academia, mas claro que é diferente hoje. Essa percepção do tempo passando e de que não há como reverter, isso aflige, incomoda. Incomoda, não: assusta. A mudança de hábitos, de parar de beber, de ver que cheirar não dá mais, tá relacionada com isso também. De percepções de que passou um tempo. Mas tenho um pouco de raiva de ter que parar. Eu gostava daquela infinita energia e alegria que as drogas e o álcool me traziam, mesmo que ilusória.

E tem a coisa da vaidade? Sim, tenho questões que sempre me acompanharam e que agora exijam talvez mais... Antigamente eu cheirava e ia treinar, sabe? Na academia. O que é bastante estúpido de certa maneira. É uma coisa impensável hoje. Se eu cheirar tenho que ficar dois dias de molho, é um horror. Acho detestável trocar, nesse cálculo racional, bem objetivo e realista, dois dias que eu perderia por uma noite de farra, sabe? Não quero perder as coisas boas em nome de algo que eu já fiz bastante.

Pra parar de beber e cheirar você tem que botar um negócio no lugar, pra segurar a onda? Vou ser bem honesto: eu não bebo porque eu tô tomando um negócio chamado antietanol.

Pra que serve? É um remédio que você toma e para de produzir uma enzima que metaboliza o álcool. Então, se você ingerir álcool, é tão tóxico que você vai parar no hospital. Eu sei que a minha força de vontade não seria suficiente pra eu parar de beber, então eu decidi experimentar esse negócio. Se eu pus coisas no lugar? Acho que comecei a fumar mais cigarro, mas quero controlar. Um dos meus pânicos com a idade é sofrer doença. Não sou um cara que vive bem com dor e com doença. Preciso estar apto, não só porque tenho muita coisa pra fazer, mas porque gosto dessa aptidão, entendeu?

Você começou a tomar esse remédio só pra parar de beber? Fui lá no Rodrigo Bressane, meu psiquiatra, e ele me passou esse remédio. Que se eu beber eu passo mal. Fiquei muito intrigado e pensei: “Pô, não quero ser castigado”. Mas queria parar de beber, experimentar esse outro barato. E é bom. Porque tem uma certa contabilidade pra uma pessoa pra beber como eu bebia, que usou drogas como eu usei e que já tem 51 anos. Percebi uma queda de qualidade em alguns aspectos, nas relações afetivas e tudo o mais. Já não sei por que eu tô falando isso...

Você estava falando do barato de não ter barato. Ah, sim. Teve um resgate com a minha essência, vamos dizer assim. Continuo sendo a mesma pessoa, não tive nenhuma depressão, não fiquei mal-humorado, não fiquei chato, não tive síndromes. Nenhuma. Pelo contrário, fiquei eufórico, comecei a achar graça em um monte de coisas. Resgatei um monte de coisas que estavam de lado. Minha casa voltou a ficar cheia, minhas relações ficaram boas. Por outro lado, a vida normal é um saco, velho. Não é assim essa maravilha... Mas não é nem com drogas, nem sem drogas. Então vamos combinar que é uma escolha. Tô muito satisfeito com essa escolha. Eu tava sofrendo muito com a vida que eu levava.

Você falou das novas músicas que fez com o Samuel Rosa. Você vê diferenças nessas canções, feitas nessa fase de sobriedade? Não... acho que aquilo que dá qualidade ou uma marca às minhas músicas é a forma como eu penso, ou mesmo como eu lapido o trabalho. A droga sempre foi uma ótima despertadora de apetite, mas, a partir do momento em que estou envolvido, tanto faz o processo mental. Nunca fui bobo de achar que uma coisa estaria boa apenas porque eu estava doido. Ou porque tô careta. É muito mais na hora de “tá bom, vamos abrir o violão e pegar essa coisa”. É pra esquentar. Pra responder mais objetivamente: não há diferença de qualidade, de característica. Minha forma de pensar é minha, careta ou louco. Não muda.


segunda-feira, 26 de maio de 2014

Seres sem rumo



Por José de Souza Martins
Do Estadão

O massacre de uma inocente mãe de família, por enfurecida turba de linchadores no bairro pobre de Morrinhos, no Guarujá (SP), causa espanto e horror. É que, mesmo não sendo uma novidade, apresenta traços novos em relação ao já conhecido: uma inocente que é branca, religiosa, duas filhas, benquista pelos vizinhos, adoentada, pacífica. A típica mãe do Dia das Mães. Seu linchamento é como se esta sociedade linchasse um de seus símbolos fundamentais.

De outro lado porque, em se tratando de pessoa comprovadamente inocente, incomoda os que acham que linchamento é um instrumento legítimo de justiça popular, que pune os antissociais, os que supostamente merecem ser castigados violentamente. Ficam sabendo que eles próprios podem ser alcançados pela ira da multidão, da justiça sem juiz nem tribunal de apelação. Não estão a salvo da violência descabida e injusta. Ninguém mais está. Isso é o que perturba.

Enquanto se trata de trucidar os outros, supomos que estamos a salvo. Mas casos como o do Guarujá nos fazem a terrível revelação de que na solidão e no desamparo daquela mulher nós é que somos os linchados. Estamos lá, naquele corpo sendo friamente amarrado para ser arrastado como coisa desprezível pelas ruas da ignorância e da pobreza de espírito. Há poucas semanas, em Joinville (SC), um homem foi linchado, acusado de estupro de criança, que não houve, alertados os vingadores pela própria mãe da menina de que aquilo não ocorrera. Não obstante, foi morto.

Outro traço novo dessa modalidade de comportamento violento é a mediação das redes sociais, o poder da internet para provocar o comportamento irracional da turba. As redes vêm tendo um papel decisivo na mobilização das multidões e na manifestação da loucura que lhes é própria, que se conhece desde o estudo pioneiro de Gustave Le Bon. Há alguns anos, participei de uma conversa com Noam Chomsky aqui em São Paulo. Ele expunha a verdadeira revolução representada pela internet. Agora, dizia, cada um de nós pode fazer seu próprio jornal. Chomsky não levou em conta que a internet pode difundir inverdades, notícias atópicas e atemporais, o que dessas notícias tira a importância crítica do atual, como no caso do Guarujá, imunes ao compromisso com a informação fundamentada e ao risco da distorção e da mentira, da incompetência para informar e debater com responsabilidade e objetividade. A internet está cheia de lixo.

Esses dois linchamentos, em particular o do Guarujá, são reveladores de aspectos muito problemáticos da violência de rua. Seus conteúdos ocultos são expressões de uma sociedade que vem perdendo as referências.

Num recorte de 2 mil casos de linchamentos no Brasil, 7,8% foram de inocentes. É uma proporção muita alta. Nos últimos 60 anos, ao menos um milhão de pessoas participaram de linchamentos ou tentativas de linchamento neste País. O que faz desta sociedade uma sociedade altamente perigosa porque longa e demoradamente motivada a agir fora da lei no que à vida se refere. Os indícios de linchamentos e tentativas vêm crescendo: de quatro por semana antes das manifestações de rua de junho de 2013 para um por dia depois das manifestações e nos últimos dias tendem a se aproximar de dois casos diários. Pode ser conjuntural, mas é indicação de que a sociedade está descontrolada. Expressão de falta de confiança nas instituições, medo e insegurança.

Tem-se dito que os linchamentos incidem de preferência sobre pobres e sobre negros. Os dados acumulados não confirmam essa suposição político-ideológica. O próprio caso do Guarujá a desmente. O maior número de pobres linchados se deve ao fato de que os linchamentos tendem a ocorrer mais nas áreas pobres, onde tendencialmente há mais negros. Ninguém sai dos bairros ricos para linchar pobres nos bairros pobres. O único indício de uma subjacente tensão racial em episódios de linchamento é que, se a vítima for negra, cresce a probabilidade de maior violência. Mas isso vem durante, não antes. Os dados disponíveis mostram que os pobres lincham os pobres, que negros também lincham negros e brancos. Mostram que nos linchamentos ocorridos em favelas, de favelados contra favelados, a violência é maior e mais radical do que na média dos linchamentos. É na classe média que há um número expressivo de ocorrências: 35,8%. Das vítimas de linchamentos e tentativas, 5,1% são pessoas da elite do país, o que inclui políticos e até mesmo um ministro de Corte superior de Justiça. Predominantemente, ocorrem em áreas urbanas ou rurais de povoamento recente, bairros novos ou regiões da frente pioneira. Lugares em que a sociedade procura se consolidar e onde os valores de referência da conduta recíproca ainda não se cristalizaram.

Os dados tampouco confirmam que as multidões linchadoras não são grupos ocasionais. São proporcionalmente poucos os casos de grupos com identidade fechada regidos por uma temporalidade lenta e duradoura. Em quase 68,5% dos casos, o linchamento é imediato ao fator que o motiva. Apenas em 6% dos casos o ódio pode se estender por uma longa demora e motivar a constituição de uma identidade dos linchadores.

Um dos grandes problemas nas análises e nos estudos sobre linchamentos no Brasil é o do pressuposto de que são ações ofensivas, praticadas por grupos intencionalmente motivados pela ideia da violação dos direitos de pessoas estigmatizadas ou objeto de preconceito. Os linchamentos seriam apenas uma variante das outras formas de violência. Os linchamentos brasileiros, ao contrário, são majoritariamente autodefensivos. Diferem do crime comum e da violência comum porque supostamente praticados em defesa da sociedade e não contra ela. No geral, os linchadores são levados à ação pelo medo, um medo social difuso, que se dissipa momentaneamente no ato de linchar porque nele a multidão se sente forte e invencível.

É significativo que muitos linchamentos tenham uma dimensão ritual. Como neste caso do Guarujá, a cabeça da vítima é seu primeiro objetivo e o mais frequente. No caso de acusação de magia negra por parte da vítima, destruir a cabeça e desfigurar a pessoa linchada é, na crença popular, um modo de privá-la daquilo que lhe é propriamente humano, o homem feito à imagem e semelhança de Deus. Linchá-lo é dessemelhá-lo.

Os linchamentos, no mais das vezes, são ocorrências de ocasião, porque o motivo se apresenta junto com a oportunidade. Desenvolvem-se em duas etapas: a da constituição da circunstância a partir de um motivo e a da identificação e estigmatização da vítima. Ou mesmo sua invenção, como no Guarujá. A mulher linchada foi inventada pelo imaginário coletivo e personificou involuntariamente o ente satanizado pelos moradores. É no desencontro desses dois momentos que a vítima escolhida pode ser uma pessoa inocente. Para chegar a ela, basta um boato difundido pela internet, o que é possibilitado por seu uso irresponsável num meio social que chegou aos recursos e equipamentos técnicos do mundo moderno sem que seus usuários tenham sido educados nas regras de uma sociabilidade para a modernidade, as regras da civilidade.

Criada a circunstância do medo e a matéria-prima do estereótipo, a população entra de prontidão para identificar sinais do estigma de bruxa, como se fazia na Idade Média e no Brasil Colônia no tempo da Inquisição - o que sempre terminava com a vítima queimada viva na fogueira punitiva, um modo de destruir-lhe o corpo e também a alma. Pequenos e inadvertidos sinais podem indicar a vítima do rito sacrificial iminente. Sem o saber, a mãe de família do Guarujá tinha os atributos que, reunidos imaginariamente no lugar e na hora errados, a levaram ao sacrifício. Os cabelos ruivos da mulher branquíssima, provavelmente tingidos, destacam-se naquela multidão morenamente brasileira. Depois, foi buscar a Bíblia que emprestara a uma amiga, o livro preto embaixo do braço, a que uma pessoa atribuiu a função de livro de bruxaria. E, por fim, depois de passar por um supermercado e comprar frutas, viu na rua um menino sozinho e ofereceu-lhe uma banana. Foi o que bastou para que a mãe da criança visse nela a bruxa do boato e começasse a gritar. Rapidamente foram mobilizadas cem pessoas, várias delas mulheres e até crianças, dispostas a espancar, amarrar, arrastar e atrair, em seguida, mais de mil curiosos. Preparavam-se para queimá-la viva quando a polícia chegou.

Os linchados são estranhos ao grupo linchador e quando não o são, como no caso do Guarujá, são estranhados por meio do imaginário da satanização, são imaginariamente desidentificados. Morrem sociologicamente antes de morrerem fisicamente, antes mesmo de saberem que são o alvo do medo coletivo. Nesse rito, morremos todos, aos poucos, violentamente, porque nele a sociedade se acaba para ser um aglomerado provisório de seres sem rumo.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Estilhaços de um olho mágico

 O tríptico 'Yesterday, Today, Tomorrow', fotografado em 1924 por Man Ray


Por Junior Bellé
Foto: Corbis
Da Revista da Cultura


 “Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou, pelo menos, não o repugnou tomar sua decisão (o que ele chama decisão!). Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso, continua recém-nascido, e quanto à aprovação de sua consciência moral, admito que lhe é indiferente.”

Foi com tais palavras que o francês André Breton (1896-1966), à época um escritor de tão somente 28 anos, abre o parágrafo inicial do I Manifesto Surrealista, lançado em 15 de outubro de 1924. Apesar de a bebedeira não ser o fator central, o porre que Breton e seus confrades deram ao mundo da arte por meio deste texto foi de tal maneira profundo que presenteou a todos com uma ressaca inesquecível. Quiçá eles desejassem liquefazer no álcool as memórias de uma Europa pós-guerra, ou a crescente intuição de que outra ainda pior se anunciava. O fato é que aqueles jovens tiveram a pachorra de esculhambar os cânones estéticos. Ou talvez isso não seja exatamente verdade. “Ainda há pouco, o grande decano do surrealismo em Portugal, Artur Cruzeiro Seixas, nascido em 1920, dizia que o surrealismo era uma aventura ética, e não um modelo estético”, pondera António Cândido Franco, professor do Departamento de Linguística e Literaturas da Universidade de Évora, em Portugal.

Já Fiona Bradley, no livro Surrealism (Movements in Modern Art), diz que o surrealismo foi, a princípio, um “empenho de caráter literário”. “Não se havia estabelecido nenhuma linha de ação para os artistas visuais do surrealismo até que Breton escreveu O surrealismo e a pintura, em 1925, e não existiu nenhuma exposição específica até que se inaugurou a Galeria Surrealista, em 1926”.

É importante ressaltar que, nesta época também, Freud não estava simplesmente vivo, mas revolucionário. Ele alçara a psicanálise ao protagonismo das investigações sobre as entranhas mais sutis dos seres humanos. O impacto desse avanço do inconsciente nos surrealistas foi irrecuperável. Por meio da arte, eles buscavam o que nomearam de “O Maravilhoso”, ou ao menos uma soleira na qual pudessem escorar-se e admirar este novo mundo, que entendiam estar na comunicação com o irracional, com o ilógico. Pretendiam, assim, orientar o consciente a partir das bases irreconhecíveis do inconsciente. Daí a paixão por temas como o estado de sono, pelos sonhos, pela liquidez do tempo e pelo fantástico. A ideia era que tudo ocorresse de modo natural, nas brechas ainda não impregnadas pela razão, o que os levou a compor obras em torno da infância, da loucura, da insônia, da alucinação e das drogas que levam aos estados alterados de consciência.


O DNA
As preocupações do surrealismo entre 1924 e 1929 – ano de lançamento do II Manifesto Surrealista –, quando ele ainda tateava em busca de reconhecimento, giravam em torno da “função psíquica da arte”. Afinal, “a psicanálise deixou uma marca fortíssima no código genético da nascença do surrealismo e não mais deixou de influir no desenvolvimento da sua vida”.

Não à toa, assim Breton definiu a si mesmo e a seus correligionários no I Manifesto: “Surrealismo. S.m. Automatismo psíquico puro, por meio do qual alguém se propõe a expressar – verbalmente, utilizando a palavra escrita, ou qualquer outra maneira – o verdadeiro funcionamento do pensamento, na ausência do controle exercido pela razão, livre de qualquer preocupação estética ou moral”.

Esta herança antirracionalista é o que alça o surrealismo ao conflito com outras tendências artísticas, como os construtivistas e os formalistas, que floresceram na Europa após a 1ª Grande Guerra. Pela gênese francesa, o surrealismo emparelha-se com similares em proposta, porém não em método e resultado, como o cubismo, fortalecido pela volta dos romantismos francês e alemão. Até compartilhava valores com o simbolismo e a pintura metafísica, mas é especialmente com o viés dessacralizador e emputecido do dadaísmo que sempre conversou mais. António lembra que “o empenho político do surrealismo e dos surrealistas fez-se em torno de questões como a linha antiarte e a tradição revolucionária do movimento dadaísta”. Além do mais, muitos surrealistas se escolaram naquela corrente, inclusive Breton, que rompeu com o dadaísmo apenas em 1922. Ambos promoviam uma crítica severa à racionalidade burguesa e saudavam O Maravilhoso, o universo fantástico e os domínios do onírico.

Para concretizar este anseio em uma obra de arte, pintores surrealistas testavam métodos para criar imagens de maneira automática, testavam colagens e assemblages, assim como os escritores lançavam-se à escrita automática, ao monólogo interior e às demais técnicas experimentais. Nome importante durante essa primeira fase do movimento, o poeta Jacques Prévert (1900-1977) destacou-se pelo uso de construções literárias novas, como os absurdos quebra-cabeças e enigmas descabidos. Todos esses métodos de criação artística, empregados para dar vazão ao inconsciente, são um legado permanente deixado pelos surrealistas, que, apesar de não terem inventado a maioria deles, foram, sem dúvida, os que melhor apropriaram, estudaram e amplificaram seu uso.

De acordo com a pesquisadora em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista, Adriana Rodrigues Simões, que estuda a obra de Prévert, “ele participou do grupo surrealista por cinco anos, de 1925 a 1930. É interessante notar que, durante esse período, ele não publicou quase nada, exceto uma letra de música e outros dois textos. Um deles foi o Mort d’un monsieur, que marcou seu rompimento com o surrealismo e o que ele julgava como autoritarismo de Breton. Os anos que permaneceu no grupo foram de gestação de grande parte dos poemas do livro Paroles, publicado em 1946, também colaborando enormemente para seu estilo e toda a sua obra posterior”.

Adriana aponta que é possível perceber a herança surrealista no estilo satírico e até no humour noir de Prévert, “tanto que, anos depois, após fazerem as pazes, Breton incluiu o primeiro poema de Paroles em sua Anthologie de l’humour noir, por considerá-lo fiel ao espírito surrealista. Em sua linguagem e em seu modo de composição poética são notáveis as influências, como nos estarrecedores jogos de palavras”.

Algumas das técnicas mais interessantes da poesia de Prévert, como colar imagens etimológicas, porém apenas aparentemente desconectadas, é, ou poderia muito bem ser, uma importação que fez de sua atividade como roteirista. Não foi apenas Luis Buñuel (1900-1983), talvez o mais conhecido dos cineastas surrealistas, quem mudou os rumos da sétima arte. Prévert foi o escritor francês que mais diretamente influenciou o cinema entre as décadas de 1930 e 1950, escrevendo roteiros clássicos, a maioria para o diretor Marcel Carné (1906-1996), os quais alicerçaram o que ficou conhecido como o Realismo Poético francês. Essa escola inspirou diretamente o cinema noir norte-americano, decisivo para a criação do neorrealismo italiano e, apesar das divergências, sem ele não haveria a nouvelle vague como a conhecemos.

Esse histórico de influenciações não é despropositado. Cinema e surrealismo admiram um no outro a obsessão pela imagem e pelo sonho. De acordo com a pesquisa de Fernando Mendonça, da Universidade Federal de Pernambuco, intitulada Sonho surrealista no cinema, “se ligarmos a importância da imagem ao fato de o surrealismo ter adotado o processo cubista de colagem, chegaremos rapidamente à conclusão de que o cinema é um dos meios mais eficazes e genuínos para a transmissão da arte surrealista.” Para Mendonça, a imagem é um dos objetos mais funcionais para a antilógica do movimento, e ela foi avançando até mesmo no sacro terreno das palavras: “Um bom exemplo é a escrita automática, que não se importa somente com o sentido que seu texto pretende passar (isso, quando pretende algo), mas se preocupa até em maior escala com a aparência/imagem, ou seja, a forma plástica de suas palavras.” Não bastasse isso, o cinema ainda possuía a “característica peculiar” de poder “imitar a articulação dos sonhos”, ou seja, forjar o tão buscado Maravilhoso. Sussurrar na orelha da psicanálise.

A concepção de Um cão andaluz, maior expoente do cinema surrealista, nasceu de um sonho de Buñuel e outro de Dalí. O primeiro sonhou com uma nuvem cortando a Lua, o último, com uma mão repleta de formigas. Foi no roteiro desse filme que os espanhóis testaram uma técnica nova de automação da escrita, que nada mais era que um jogo de assemblagens. Eles o chamaram de “Cadavre Exquis”, ou algo como “cadáver requintado”. A ideia, segundo Buñuel, era justamente “não aceitar nenhuma ideia, nenhuma imagem que pudesse dar lugar a uma explicação racional, psicológica ou cultural. Abrir todas as portas ao irracional.” A ruptura com o enredo tradicional, a invenção de uma novidade em técnica de construção de trama, e a recusa da linearidade, de tempo ou de espaço, são cicatrizes permanentes que o filme, lançando em 1928, deixou não só para o cinema, mas para toda a arte narrativa.

Um sujeito que, sem a menor dúvida, assistiu a esse filme atende pelo nome de David Lynch. De acordo com Rogério Ferraraz, na tese O veludo selvagem de David Lynch: a estética contemporânea do surrealismo no cinema ou o cinema neo-surrealista, muitas características apresentadas em Um cão andaluz podem ser encontradas no cinema contemporâneo, e a obra de Lynch, que dialoga intimamente com seu tempo, é a prova cabal, a evidência, o corte, o talho. E ele foi feito usando as mesmas facas: a beleza compulsiva que acontece no choque entre duas realidades distintas, o amor louco normalmente representado na mulher, o humor negro e a valorização do mistério, e o acaso objetivo como uma concepção filosófica. E isso não é recente, descende de Eraserhead, seu primeiro longa, de 1972, feito com apenas US$ 20 mil. Segundo o famoso crítico de história de cinema, Claude Beylie, Lynch “provou, desde (...) Eraserhead, pesadelo experimental nascido de um cruzamento de Frankenstein com Um cão andaluz, que deveríamos contar com a sua poesia tenebrosa”.

A parceria entre Buñuel e Dalí ainda renderia outro clássico, L’Âge d’or, que décadas depois emprestaria suas imagens a pintores, seus delírios a poetas e o título a uma célebre canção do Legião Urbana: “Lá vêm os jovens gigantes de mármore / Trazendo anzóis na palma da mão / Não é belo todo e qualquer mistério? / O maior segredo é não haver mistério algum”. Foi durante a produção deste filme que os jovens espanhóis, já gigantes do surrealismo, começaram a se desentender. Mas é importante pontuar que Dalí não abandou o gosto por este método de trabalho quando se dedicava ao cinema. Inesquecível também sua colaboração posterior com Hitchcock – quem esquece a sequência do sonho em Quando fala o coração, no original intitulado Spellbound, de 1945?


II MANIFESTO
De acordo com o professor José Niraldo de Farias, da Universidade Federal de Alagoas, é a partir do segundo manifesto que o surrealismo passa a investigar mais a si mesmo, com o intuito de resolver suas contradições no que concerne à função social da arte: “Essa preocupação percorre o movimento por inteiro, e ele é permeado por incessantes debates, tensões, contradições e até desavenças pessoais. O fato é que Breton não se conformava com uma possível oposição entre a vida interior e o mundo dos fatos. Por isso, foi bastante criticado por Pierre Naville [1903-1993], Sartre [1905-1980] e Camus [1913-1960]. No manifesto de 1924, ele detona com o realismo e atribui valor poético ao materialismo, segundo ele, congruente com a elevação do pensamento”. O movimento passa, a partir de então, a dialogar mais intimamente com a política. Afinal, a Revolução Espanhola batia à porta, assim como faria pouco depois a 2ª Guerra Mundial. Havia uma necessidade imperativa que impelia os surrealistas a se posicionar.

Foi durante esse período, propriamente em 1927, que Breton filiou-se ao Partido Comunista Francês, ao mesmo tempo que proclamava, no manifesto, a libertação da arte em relação a qualquer dogmatismo enclausurante. A poesia seria a única saída para a libertação. É claro que isso lhe rendeu sérios problemas com o PCF, do qual foi expulso em 1933. Sua relação com o marxismo só seria retomada em sua viagem ao México, em 1938, quando conheceu pessoalmente Leon Trotsky (1879-1940).

Apesar da aparente simbiose com o ex-líder bolchevique, sua lua-de-mel não durou muito. O motivo da discórdia tinha nome: Revolta de Kronstadt. Breton escreve, em seu artigo mais enfático no Le Libertaire, periódico da Federação Anarquista Francesa, de 11 de janeiro de 1952, intitulado A clara torre: “(...)O que se pode considerar como triunfo da Revolução Russa e a realização de um Estado operário provocava uma grande mudança de visão. A única sombra do quadro – que se precisaria como mancha indelével – residia no esmagamento da insurreição de Kronstadt, em 18 de março de 1921. Nunca os surrealistas conseguiram passar por cima disso. (...)”

O que Breton chama de “esmagamento da insurreição” foi um ataque incessante, sob ordens de Trotsky, que durou em torno de dez dias e contou com mais de 50 mil homens do Exército Vermelho. O número de mortos jamais foi contado, estima-se em milhares. “A verdade”, segundo José Niraldo, “é que a proposta surrealista sempre foi, desde o início, incompatível com qualquer corrente partidária. A proposta libertária do movimento é muito mais abrangente; o poético buscava englobar o político”.

Talvez essa volatilidade ideológica de Breton tenha um viés mais sensível, afinal ele sabia que tinha sua própria trincheira a defender e domínios a avançar. Para António Cândido, “o surrealismo tem a sua própria revolução a fazer, de tipo ético ou psíquico, e só algo lateralmente, e sempre com alguma decepção, se interessou pela revolução dos outros”. Ele sugere que este foi o caminho que levou o surrealismo a cruzamentos posteriores com o situacionismo e o fluxus. “Mas o cruzamento que me parece mais profícuo e natural é o que diz respeito ao anarquismo. Ainda há pouco, o poeta brasileiro Sérgio Lima, que tanto tem feito desde a década de 1960 pelo movimento surrealista no Brasil, dizia que o surrealismo tinha hoje a anarquia por horizonte.”

De acordo com Breton, no mesmo artigo A clara torre, este era o horizonte desde o início: “Foi no negro espelho do anarquismo que o surrealismo reconheceu-se pela primeira vez, bem antes de definir-se a si mesmo”. De acordo com o pesquisador Pietro Ferrua, em seu prefácio ao livro Surrealismo e anarquismo, a relação entre ambos foi oficializada em 12 outubro de 1951, data da publicação da Declaração Prévia, assinada por Breton e outros 16 surrealistas. Naquele dia, eles inauguraram sua coluna periódica no veículo oficial de uma federação anarquista, colaboração que durou 15 meses. Durante as décadas seguintes, individualmente, os surrealistas seguiram escrevendo para outras publicações. Ferrua sugere que não foi à toa que pichações com slogans surrealistas, como “A imaginação no poder” e “Sonhe o impossível” apareceram nos muros de Paris em maio de 1968.


BEBENDO EM SUAS ÁGUAS
Há uma série de “ismos” que beberam diretamente na fonte surrealista, seja na arte, seja na política. Além dos já mencionados, há, por exemplo, o expressionismo abstrato e a pop arte estadunidense, que por si só se tornaram inspiração para incontáveis movimentos artísticos subsequentes. As técnicas de colagem compartilhadas por elas são semelhanças notáveis, assim como a assanhamento nostálgico com o dadá e o engajamento político travado desde a fronteira artística. Essa proximidade germinou até estéticas mistas, como o setentista lowbrow, ou surrealismo pop, um bem bolado entre ambas somado a outras esquisitices deveras bacanas que o pessoal da Califórnia andava transando naqueles tempos. Um dos catalisadores dessa conversa seguramente foram as obras de Max Ernst e René Magritte.

Este último, nascido no pequeno município de Lessines, na Bélgica, autor de quadros que marcaram, calcificaram e constituíram o mais puro da genética surrealista. Magritte doou ao movimento os contornos por onde se reconhecer e seguir. Entre suas mais notórias obras estão Os amantes, de 1928, O espelho falso e A traição das imagens, ambas de 1929, e A condição humana, de 1933. Com isso, o belga se tornou um dos mais influentes de sua geração, sendo reverberado intensamente na indústria cultural e alcançando assim público e reconhecimento massivo. A canção de Paul Simon, René and Georgette Magritte With Their Dog After the War, não está solitária nestas referências e iluminações. Tampouco Tom Stoppard, quando escreveu a comédia After Magritte.

“Um dos movimentos literários franceses que posso citar é o OuLiPo [Ouvroir de Littérature Potentielle], que em comum com o surrealismo possui a proposta de libertação da literatura, mesmo que sob a forma de rígidas regras, além da fundação e participação do ex-membro do grupo surrealista, Raymond Queneau [1903-1976]”, analisa Adriana. Mas, para ela, o que mais impactou a arte foi “sua aposta no sonho, a abertura para caminhos inexplorados e a renovação de sua linguagem tradicional”.

Pontualmente, é possível ver marcas surrealistas no trabalho de artistas bastante divergentes, como Alberto Giacometti (1901-1966), Alexander Calder (1898-1976), Hans Arp (1886-1966), Henry Spencer Moore (1898-1986), Roberto Matta (1911-2002) e uma infinidade de outros. No Brasil, é notável o eco surreal em Ismael Nery (1900-1934) e Cícero Dias (1907-2003).

Não seria diferente em Portugal, país que conformou corrente surrealista própria. Segundo António, a década de 1960 proporcionou ao surrealismo português suas maiores reverberações, “como o abjeccionismo e o surreal-abjeccionismo, que resultaram da chegada de uma nova geração, mas o mais marcante do trajeto surrealista em Portugal vem das duas décadas anteriores, do período que vai de 1947 a 1953.” Para António, mesmo com o regresso do sentido orientando o horizonte de boa parte da arte contemporânea, “mesmo com a imposição de um rumo preciso”, nós seguiremos carentes de um território virgem, um lugar “onde se inscrevam o sonho e o sem sentido. É essa a atualidade do surrealismo”.


DESEMBARQUE NA AMÉRICA LATINA
José Niraldo conta que é na segunda fase do surrealismo que acontece a internacionalização da poesia de Breton. E a América Latina é parte fundamental desse processo. Um dos fatores primordiais foi a viagem de Breton, em 1938, ao México, como parte de um comitê do governo francês que promovia uma conferência em parceria com a Universidade Nacional Autônoma do México. Lá ele conheceu pessoalmente Trotsky, que o convidou a uma viagem até Erongarícuaro, uma espécie de refúgio de intelectuais, entre os quais estavam Frida Kahlo e Diego Rivera. Foi nesta viagem que o histórico Pour un art révolutionnaire indépendent foi escrito por Breton e Trotsky, ainda que, por questões de segurança, a assinatura do bolchevique tenha sido substituída pela de Diego Rivera.

Além desta proximidade, que venceu a geografia, o surrealismo expandiu-se até os ares latinos através da presença de alguns escritores em Paris. Esse era o caso de Octavio Paz (1914-1998) e Vicente Huidobro (1893-1948). No Brasil, quem mais bebia da efervescência europeia era o poeta alagoano Jorge de Lima (1895-1953), que, em 1930, fincou residência no Rio. Rapidamente, seu ateliê tornou-se ponto de encontro de intelectuais, entre os quais estavam Drummond (1902-1987) e Murilo Mendes (1901-1975), grupo que logo incorporaria outro importante poeta, João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Murilo se tornou grande amigo e parceiro de letras de Jorge, e é notório o impacto que ambos tiveram sobre a produção poética e literária brasileira, seja por suas obras, seja pela influência que exerceram sobre seus pares. Mesmo sendo o anfitrião, Jorge teve seu legado obscurecido pelas seguidas recusas da Academia Brasileira de Letras (ABL) de dar-lhe uma cadeira e pela crítica a seu catolicismo.

Aliás, de acordo com José Niraldo, este era um ponto crucial na diferença entre o surrealismo francês e sua interpretação brasileira, cujo impacto em nossa literatura foi mediado especialmente por Jorge de Lima e Murilo Mendes: “Em ambos, há muitos aspectos que se chocam frontalmente com algumas ideias postas no manifesto. Uma delas é a religiosidade. Mas esse assunto também é problemático em Jorge de Lima. A crítica se equivocou ao estigmatizá-lo como um escritor católico. Evidentemente, como um escritor brasileiro, não há nenhuma prova de que ele tenha percebido o movimento surrealista como uma estética a ser seguida fielmente. Ele é um poeta de múltiplas filiações. Bebeu em muitas fontes, mudando sempre. Na realidade, as alterações são importantes para a manutenção do legado. Somos surrealistas antes do surrealismo”.


REVISTAS DE ARTE
O fato de a primeira fonte na qual beberam os surrealistas ter sido a literatura, explica um pouco o que António Cândido chama de “vocação do surrealismo francês de se fazer através de revistas”. Ainda em 1919, Breton, Soupault e Aragon fundaram a Littérature, que logo se tornou referência e uma espécie de estágio obrigatório para muitos daqueles que depois encamparam o surrealismo. Ela se transformou no veículo certo para o tipo de experimentação que, em 1924, se consolidaria no surrealismo propriamente dito. A revista só morreu com a chegada da La Révolution Surréaliste, o primeiro veículo especifico do movimento.

Existiram ainda, posteriormente, muitos outros títulos. Entre eles estão a SASDLR (Le Surréalisme au Service de la Révolution; 1930-1933); a Minotaure (1933-1938), editada por Albert Skira; VVV (1942-1944), concebida por Breton no exílio em Nova York; e La Main à Plume (1941-1944), lançada pelos dissidentes do surrealismo francês. A vocação a que se refere António não era uma exclusividade de Breton. Depois de sua morte, em 1966, o surrealismo seguiu expondo-se em revistas, como a Supérieur Inconnu, fundada por Sarane Alexandrian (1927-2009), que resistiu até 2011. Existiu também a Phases (1954-1975), fundada por Edouard Jaguer, que fora colaborador do La Main à Plume.

Mesmo o contato efetivo com artistas visuais se deu por mediação literária, e, claro, de uma revista: a primordial Littérature, a qual o artista Max Ernst, então de braços dados com o dadaísmo, lia na Alemanha. Por intermédio de Breton, em 1921, ele promoveu sua primeira exibição em Paris, cidade que em outubro de 1928, no Studio 28, projetaria pela primeira vez Un chien andalou (Um cão andaluz), escrito por ele em parceria com Dalí e Buñuel.

Antes disso, ainda em 1925, a conexão surrealista com outras artes já havia se intensificado, quando Breton comprou um quadro de André Masson (1896-1987) e, poucos meses depois, o conheceu pessoalmente. Foi Masson quem o apresentou a seu então vizinho de estúdio, com o qual a intimidade era tamanha que ambos resolveram abrir um rombo na parede que os dividia, a fim de facilitar a comunicação. Seu vizinho chamava-se Joan Miró.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

True Philosopher

Matthew McConaughey em cena de True Detective


Por Luiz Felipe Pondé
Da Ilustrada

Há uma luta entre a luz e as trevas, diz o detetive Rust Cohle (Matthew McConaughey) na série True Detective, na última cena do último episódio da primeira temporada.

Já disse e repito que as séries americanas são hoje, de longe, o maior experimento dramatúrgico nos EUA, porque o cinema americano quase não existe, derretido pelo medo do politicamente correto, esta praga que em breve terá destruído toda a criatividade ocidental, à semelhança da arte soviética. Qualquer artista que submeta sua arte ao projeto para um mundo melhor é um artista ruim.

A ideia de que há uma luta deste tipo é comum à filosofia, teologia e literatura. Dostoiévski diz algo semelhante nos Irmãos Karamazov: Há uma luta entre Deus e o Diabo e o palco é o coração humano.

Nos Manuscritos do Mar Morto, textos judaicos datados do período em torno do nascimento da era cristã, encontrados em cavernas do mar Morto nos anos 40, afirma-se a mesma luta entre os filhos da luz e os filhos das trevas. Nathan de Gaza, século 17, profeta do falso Messias Sabatai Tzvi, dizia que o mundo, assim como a alma de Tzvi, um melancólico, era dilacerado por forças antagônicas de luz e trevas. Vejo nisso uma poética da agonia como habitat da alma humana.

Rust Cohle é um detetive filósofo típico da tradição que vai de Sam Spade (interpretado por Humphrey Bogart) a Philip Marlowe (interpretado por Elliott Gould e Robert Mitchum). Niilistas, todos eles trazem a marca de uma visão pessimista sobre a humanidade.

Cohle, no primeiro episódio, afirma que é pessimista (e define essa condição como sendo ruim em festas). E afirma sua cosmologia: a consciência humana é um erro da evolução.

Segundo nosso true philosopher, todos pensamos que somos eus, mas somos apenas seres que arrastam essa ilusão em meio a uma programação genética que nos obriga a sobreviver. Um diálogo entre o niilismo nietzschiano e o determinismo darwinista de Richard Dawkins não seria muito diferente.

De onde vem esse pessimismo que dá a esses detetives um tom maior do que meros personagens à procura de criminosos?

No caso especifico de Cohle, esse pessimismo vem de uma família de origem destroçada, de uma filha morta muito jovem, de um casamento destruído devido a esta morte, de muita bebida e muita droga, de quatro anos infiltrado no narcotráfico e de uma longa investigação entre satanistas, pedófilos cristãos e serial killers de mulheres (esta investigação é o conteúdo dramatúrgico dos oito capítulos da primeira temporada).

Entretanto, sua grandeza não é redutível às suas pequenas causas psicológicas. Se assim o fosse, ele seria apenas um deprimido. Sua grandeza como personagem se dá devido ao modo como ele constrói, a partir de sua miséria pessoal, um julgamento preciso da humanidade. Julgamento este que impacta por sua possível consistência.

Há uma questão maior aqui, e que une os grandes detetives nesta concepção niilista de mundo: a experiência com a (sua própria) natureza humana. Sim, natureza humana, este conceito que muitos especialistas teimam em dizer que não existe.

Não vou entrar nesta discussão sem fim, prefiro usar a ideia de natureza humana como licença poética. Há muito que não me importo com debates especializados.

Sabe-se bem, mesmo entre policiais na vida real, que a proximidade com a miséria humana mais pura pode levar alguém à descrença na natureza dos homens.

Ainda que, como bem mostram esses três personagens, isso não impede virtudes como coragem, generosidade, sinceridade, doçura. Muito pelo contrário, muitas vezes é justamente a dureza do desencanto com a natureza humana e o sofrimento psicológico que ela traz no cotidiano (como no caso de Cohle) que possibilita tais virtudes.

A virtude é silenciosa e cresce sempre num terreno que lhe é hostil. Máxima ignorada por todos que, principalmente em épocas do novo puritanismo político que assola o mundo da cultura, cantam seu amor e sua misericórdia pelo mundo e pelos que sofrem. O amor ao mundo deve ser escondido como uma pérola.