quinta-feira, 3 de abril de 2014

Um animal que imagina


Do El País
*O Nobel mexicano, Octavio Paz, ditou em 1975 seis dissertações, nunca publicadas, nas quais analisou sua ideia sobre a literatura. Este é um trecho que o Nobel mexicano dedicou à relação entre poesia e progresso 

Estas leituras retrospectivas provocaram em mim emoções e sentimentos contraditórios: simpatia e repulsão, por quem eu fui; aprovação e desgosto, pelo que escrevi. A confirmação e a negação convivem e batalham no meu interior. Assim, não posso nem sequer me julgar. Não me condeno nem tampouco me absolvo. Limito-me a me ver e, para dizer a verdade, a me suportar. Não obstante, na medida em que posso ser objetivo, que é muito pequena, advirto que mudança e continuidade são duas notas constantes nos meus trabalhos poéticos, dois polos, dois extremos contrários que me atraíram desde que comecei a escrever. Sempre me interessou e, mais, me apaixonou, a experimentação e a exploração de formas e territórios poéticos pouco conhecidos, novos. Desse ponto de vista minha poesia se inscreve dentro da tradição da literatura moderna, que é uma literatura de exploração e de invenção.


Procurei definir esta tradição em vários trabalhos críticos, especialmente em Os Filhos do Lodo, um livro que tem como subtítulo ‘Do Romantismo à Vanguarda’. Essa tradição pode ser caracterizada como uma série de rupturas com o passado e uma série de tentativas de criar uma arte nova, distinta e única. A antiga estética se fundava na limitação dos modelos da Antiguidade Clássica, a moderna, desde o século XVIII para cá, na busca de uma nova beleza. Mas talvez estejamos no final deste período e vivemos na decadência da vanguarda. De qualquer maneira, no meu caso, a exploração de formas poéticas, de novas formas, coincidiu sempre com o amor e o cultivo das formas tradicionais, do soneto e o hendecassílabo, o poema breve com métricas curtas. Mas a mudança e a continuidade não só se entrelaçam nas formas poéticas que frequentei mas também nos temas e na própria substância do que escrevi.

Meu primeiro livro, Raiz do Homem, foi, até certo ponto, uma ruptura com a poesia que era escrita naquele tempo no México. Mas o sentido peculiar desta ruptura escapou de mim mesmo. Porém, não escapou de Jorge Cuesta, como se vê na pequena nota que dedicou ao meu livro. Raiz do Homem é um livro lento, cheio de repetições, ingenuidades, faltas de sabor, um livro que me envergonha ter escrito. Mesmo assim é um livro que sinto que é meu, não pelo que diz mas pelo que quer dizer e não chega a dizer. O movimento que impulsiona cada linha não é para fora e sim para dentro. Não é uma busca de novas formas, da novidade, mas uma tentativa fracassada, é verdade, por voltar à fonte original primordial. A palavra sangue aparece em cada poema com uma insistência obsessiva, monótona. Parecia naqueles dias da minha adolescência uma espécie de emblema mágico. O leque de seus significados se resolvia em um: o sangue designava para mim o mundo de origem, o mundo do princípio, a vida elemental, a verdadeira vida, em suma. Era uma verdadeira constelação de significados. Vinha, por uma parte, do novelista inglês D.H. Lawrence, que li muito na minha primeira juventude. Vinha também do poeta alemão Novalis, que para ele o sangue tem um valor, um significado místico, tanto corporal como espiritual. Convergiam com essas ideias as visões do mundo antes de Colón, especialmente a visão asteca com sua crença no sangue como uma substância mágica que colocava em movimento o cosmos e que era o alimento sagrado dos deuses. Por último, a palavra, e suas associações obscuras, vinha de mim, da parte mais profunda do meu ser. Rapidamente abandonei essa palavra como um talismã verbal gasto, mas o subsolo psíquico no qual, como uma verdadeira raiz – raiz do homem - , que se afundava, permaneceu intacto. Era e é o fundo, o sustento da minha poesia, a substância que a alimenta.

Em um de meus primeiros trabalhos críticos Poesia de solidão e poesia de comunhão (1942) volto a este tema mas com uma perspectiva ligeiramente distinta. Comparo o amor com a poesia e digo: “No amor, o casal tenta participar outra vez deste estado no qual a morte e a vida, a necessidade e a satisfação, o sonho e o ato, a palavra e a imagem, o tempo e o espaço, o fruto e os lábios, se confundem em uma só realidade. Os amantes defendem assustados, cada vez mais antigos e desnudos. Resgatam o animal humilhado e o vegetal sonolento, que vivem em cada um de nós. E têm o pressentimento da pura energia que move o universo e da inércia em que transforma a vertigem dessa energia”. Naquela época eu não tinha lido Breton. Mais tarde, vi que ele disse algo parecido, e disse antes de mim, mas esta coincidência foi absolutamente uma coincidência.

Em outra passagem do mesmo texto de 1942: “O amor é nostalgia de nossa origem, movimento obscuro do homem até a sua raiz, até seu nascimento. Em cada homem e em cada mulher – diria hoje – estão todos os mundos e, também, todos os tempos. O amor é a tentativa de voltar à unidade original ou, ao menos, vislumbrá-la”. Poderia multiplicar as citações, mas me limitarei a apontar que alguns anos depois, em O Labirinto da Solidão reaparece esta ideia. Tudo na vida moderna tende a fazer de nós seus rejeitados da vida, mas também tudo no nosso interior nos impulsiona a voltar, a descender ao mundo de onde fomos arrancados. Se pedimos ao amor que sendo desejo, é fome de comunhão, é fome de cair e de morrer tanto como de viver e de nascer, pedimos ao amor que nos dê um pedaço de vida verdadeira, um pedaço de morte verdadeira. E mais tarde, em O Arco e a Lira, talvez com maior clareza, digo: “O impulso de regresso é a força de gravidade do amor, a pessoa amada nos exalta, nos faz sair de nós e, simultaneamente, nos faz voltar a nós, nos faz voltar a ser. A amada – diz o poeta espanhol Antonio Machado – é uma com o amante, não no término do processo erótico, mas no seu princípio, e acerta duplamente. A amada é uma com o amado e a amada com o amado em dois modos simultâneos, como pressentimento e como recordação: o pressentimento da unidade desejada é ao mesmo tempo uma recordação daquela unidade original perdida, verdadeira subversão do tempo linear. O que recordamos é aquilo que pressentimos, na poesia e no amor, também em outras experiências, como as experiências da vida contemplativa, e nestas, talvez com maior força e nitidez, o homem regressa a si mesmo, e esse regresso é uma recuperação da unidade original. Não regressamos a nosso pobre eu, mas ao outro, ou melhor dizendo, a outro”. Em suma, sempre acreditei – confesso que falo de minhas crenças e não de minhas ideias – que a consciência poética é a revelação de nossa condição original, e que essa condição não é somente outra situação, como diria um filósofo moderno, um ser isto ou aquilo, mas um com estar, um ser com alguém e com algo. Esse algo é o que chamamos “o mundo” ou “o cosmos” ou “o universo”: não aquilo em que estamos mas aquilo com o que estamos. A poesia, uma vez mais, nos lança fora de nós mesmo até o desconhecido. É uma exploração e uma busca do novo. Ao mesmo tempo, é uma volta, um recordar, um voltar a ser, um voltar ao ser.

A segunda seção de Ladeira Leste se chama “Até o começo”. O título corresponde às crenças e preocupações que acabo de enunciar. O mesmo acontece com os poemas. Nestes poemas a vida anterior, no sentido que Baudelaire dava a esta expressão, regressa. Ou seja, é a vida do começo. Mas talvez “vida anterior” é uma expressão imperfeita como é “a vida futura”. Ambas expressões são filhas do tempo linear, sucessivo, em que o ontem está antes de hoje e o hoje antes de amanhã. No tempo do amor como no tempo da poesia, certamente, e também e sobretudo, no tempo dos contemplativos, participamos de uma verdadeira conjunção. Ontem, hoje e amanhã se resolvem em uma presença. Durante um instante ou um século esta experiência nos faz ver ou vislumbrar, na mudança a identidade e a permanência no transcorrer. Não me estenderei nesse paradoxo porque creio que é realmente inexpressável, indemonstrável. É um desafio à linguagem e à razão. Só a arte e a poesia, em contadas ocasiões podem expressá-lo, mas todos nós, sem exceção, ainda que quase sempre tenhamos esquecido essa experiência, que geralmente se situa na infância e na adolescência, vivemos por um instante essa conjunção dos tempos. E aqui vale a pena salientar que se trata de uma concepção e uma experiência que contradizem a concepção central da época moderna. Há três séculos, primeiro os povos do Ocidente e agora o planeta inteiro creem na história como um avanço contínuo, salvo alguns grupos marginais dispersos aqui e ali (por exemplo, núcleos de sobreviventes dos chamados “primitivos” e grupos de civilizados dissidentes decepcionados com os espelhismos das sociedades modernas), a imensa maioria de nossos contemporâneos adora o futuro. Para quase todos nós não é o passado mas o futuro que será melhor. Nisso coincidem gregos e troianos, capitalistas e comunistas. O culto ao progresso é a crença básica do homem moderno. Não sei se chamar essa crença de “subreligião” ou superstição se opõe a uma das tendências centrais do homem, tal como a revelam a poesia, o amor e a contemplação. O homem foi definido como um animal ou um ser que fabrica utensílios. Homo faber.

Foi definido como um animal racional, como um animal político, ou bem, como um produto da história cuja consciência está determinada pelas forças sociais de produção. As definições são muitas e quase todas elas são provavelmente certas. Nenhuma delas é também incompatível com a ideia do progresso. Mas o homem, também, é um ser que deseja e, porque deseja, é um ser que imagina. Seu imaginar é o pressentir. É um presságio que é um recordar, que é uma exploração do desconhecido que é, mesmo assim, uma busca da origem. Pois bem, como ser de desejos, como ser que deseja, como ser que fabrica imagens de seu desejo que são um pressentir, que são também um recordar, o homem não é um sujeito de progresso mas de regresso. Não quer ir mais além, mas quer voltar até si mesmo. Por isso, frente ao culto público ao progresso existiu, desde o período romântico, o culto secreto, quase clandestino, e contra a corrente, à poesia. Uma das heterodoxias do mundo moderno, há dois séculos, foi a poesia. A poesia e a arte sucessivamente rejeitadas e, depois, hipocritamente consagradas pelos poderes sociais.

Outra das transgressões das sociedades modernas foi o amor. Ambos, amor e poesia são experiências não produtivas, são antiprodutivas, e foram e são negações do mundo moderno. Apenas necessito esclarecer que o que eu chamo “amor” nada tem a ver com a revolução erótica ou com a revolução sexual. Eu não estou contra a liberdade sexual, mas o amor é outra coisa. O amor não é nem uma curiosidade nem uma política. O amor é um destino, uma vocação, uma paixão, como queiram chamá-lo, mas não é uma pedagogia. Mas tudo mudou. Nos últimos anos ouvimos muitas vozes de alerta que nos anunciam catástrofes iminentes e universais. Alguns denunciam o excessivo crescimento da espécie humana e suas previsíveis consequências, ditaduras, fomes, guerras; outros nos advertem que os recursos naturais são limitados como já se vê na crise das fontes de energia; outros mais falam da contaminação do ar e da água, do aquecimento excessivo da atmosfera ou da ameaça atômica. O mais notável é que todas essas previsões pessimistas vêm das universidades e dos institutos que há apenas alguns anos, ainda, eram as fortalezas intelectuais da crença em um progresso baseado nos avanços da ciência e da técnica. Hoje a crença no progresso contínuo e infinito se balança. Não digo que seja falso, digo que se balança. Seus sacerdotes, os cientistas e os técnicos deixaram de crer nesta divindade abstrata inventada pelos filósofos do século XVIII e do XIX. “Mas se deixamos de crer no progresso, em que vamos crer?”, muitos se perguntam. Aqui os poetas, no sentido mais amplo da palavra poeta, ou seja, os fazedores de formas e de imagens, desde os novelistas e escritores de imaginação até os pintores e os músicos, têm algo que dizer. Foram os guardiães de um culto clandestino e marginal. Agora podem oferecer uma resposta ao progresso, o regresso. (...)

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