sexta-feira, 28 de março de 2014

Anatomia da Escolha



Por Edmundo de Oliveira Gaudêncio

"Caminhava sobre a lâmina da faca
– que,
cortando um naco de pão,
saciava a sua fome;
cortando sua garganta,
saciaria a sua sede.
Mas, em suma, caminhava.
Adiante, sempre adiante, avante!
Como se diz por aí,
se não puder voar, corra;
se não puder correr, ande;
se não puder andar, rasteje,
mas siga adiante, sempre...!
Enquanto caminhava,
perguntava-se,
seguindo em frente, sempre em frente,
rumo a quem sabe,
capital de quem me dera:
Mas, seguir por quê?
Seguir à frente ou simplesmente acompanhar quem segue?
O que significa seguir adiante?
E o que nos espera,
nesse mais adiante?
Será felicidade,
quem sabe,
será abismo?
Em meio à manada que perseguia o ir adiante,
absorto,
bastou um empurrão...!
Caminhando, agora, em sentido contrário,
descobriu:
Dando-se meia-volta,
caminha-se para a frente,
indo-se para trás...!"

Dessa estorinha, o que podemos extrair em função deste ensaio? Simples: Tudo é escolha. Em toda escolha, a Causalidade que nos leva a ter que escolher, sempre, e o Acaso. Como dizia Maquiavel, em tudo, Fortuna – o que a vida nos oferece, em termos de oportunidade – e Virtude, isso de que somos dotados, em termos de qualidades ou defeitos –, fatores a partir dos quais tomamos nossas decisões, escolhemos. E quando falo Causa, Causalidade, não me refiro apenas a uma modalidade disso, a Causa Linear, essa que está ligada direta e visivelmente a um dado resultado. Refiro-me a todas as formas de Causalidades e todos os seus efeitos. Refiro-me à causa que se denomina “gatilho”, aquele pequeno piparote que causa um enorme estrago; ao “efeito dominó”, em que uma causa inicial repercute em cadeia, de proximidade em proximidade, prolongando-se por distâncias impensáveis, numa reação em cadeia de proporções inimagináveis. Falo também da “retroalimentação”, em que o efeito alimenta a causa; o “circulo vicioso”, quando o efeito leva à gradativa extinção da causa e o “círculo virtuoso”, em que o efeito positivo aumenta a causa e sua positividade e vice-versa. Digo, ainda, do “efeito borboleta”, quando uma mudança insignificante produz efeitos desproporcionais, enormes, e refiro, por fim, a “teleologia” da causa: Toda causa é, na verdade, efeito de uma causa inicial, a qual, por sua vez, pode produzir resultados mediatizados, somente perceptíveis muito tempo depois. Ou seja, foi com a escolha de transanteontem que construímos este nosso agora. Em meio a isso tudo, o Acaso, amigo ou inimigo de nossa Sina e de nosso Destino. Aliás, existem o Acaso e o Destino? Ou Destino é o nome que damos ao resultado, ao produto, à soma de nossas escolhas? 

As escolhas que fizemos a partir do dia em que pudemos escolher por conta própria, a partir da escolha de que não participamos, deixar nascer ou não deixar, permitir crescer ou não crescer? Para Corneau, pensador francês, por outro lado, não existe o Acaso. O acaso nada mais é que o cruzamento de ordens causais diferentes. Quando uma telha cai do telhado na cabeça de um transeunte, isso não se deve ao acaso, mas ao entrecruzamento da história social do transeunte que o levou até à rua do acidente e a história natural da telha e daquilo que levou à sua queda. Digo tudo isso apenas para propor uma questão, cujo postulado é este: Kant fez a síntese máxima da Ética. Dizia ele que diante de toda escolha deveríamos nos perguntar: “Quero? Posso? Devo?”. Concluía: “Porque nem tudo que se quer se pode; nem tudo que se pode, deve-se”. O que nos devolve à questão da escolha – porque toda a ética do mundo cabe sempre em nossas escolhas, nas escolhas que fazemos. Como veremos adiante, toda ética cabe na ponta da língua e nas pontas dos dedos! O problema é que não paramos para pensar em nossas escolhas. Não percebemos que toda escolha é única e irrepetível (porque uma escolha jamais se repetirá: quando escolhemos o mesmo uma segunda vez, isso mesmo que escolhemos já não é a mesma coisa, porque não somos mais quem éramos, quando escolhemos da primeira vez); é intransferível (quando transferimos para outra pessoa a responsabilidade por uma escolha que deveria ser nossa, não nos esqueçamos: isso também é uma escolha!); é inadiável (porque ao adiarmos uma escolha, na verdade fazemos uma escolha, a escolha de adiar!); que a cada escolha cabe uma desescolha (ou seja, para toda escolha que façamos restam centenas de outras escolhas que poderiam ter sido feitas – bem entendido: sabendo que somente nos cabe fazer uma única escolha a cada vez!); que toda escolha é um salto no escuro: Não sabemos do amanhã. Não sabemos se a escolha feita hoje foi a mais acertada quando vista a partir do futuro – que se constrói neste agora, vez que ele é feito das escolhas deste instante; que toda escolha tem consequências. De toda escolha resulta sempre alguma coisa. Teleologicamente não avaliamos a escolha de hoje em função de dever e do devir; que não existe escolha banal. A escolha dita banal, de hoje, pode resultar, amanhã, numa tragédia; que nossas escolhas respingam sempre em escolhas alheias (uma escolha feita por nós pode ser causa de alegria ou infelicidade para terceiros); que escolhemos, obrigatoriamente, por ação e/ou omissão; e, por fim, que é de nossa inteira responsabilidade nossas escolhas e suas consequências. Entrementes, expressamos nossas escolhas sobretudo graças à mão e à palavra, as duas maiores ferramentas da Ética ou da falta de Ética. 

Falado e fazendo de outro modo, com que escolhemos? Através de que expressamos nossas escolhas senão através do gesto e da palavra? Dito isso, pensamos nas palavras que dizemos? E naquelas que calamos? Pensamos em nossos gestos? Como dito por Kant, tudo é questão de Querer, Poder, Dever. Isso colocado em relação à palavra, cabe perguntar: Calar? Falar? Silenciar? Quero calar, posso calar, devo calar? Ou, quero falar, posso falar, devo falar? E ainda, quero silenciar, posso silenciar, devo silenciar? Quero, posso, devo fazer um gesto ou não fazê-lo ou permitir  ou não permitir que o façam? Quero? Posso? Devo? Escolher ou não escolher, eis a questão! (E porque o ser humano é livre  – e essa a causa e esse o sentido da escolha! – , cabe a cada um escolher ou não escolher perguntar-se por isso antes de falar ou de fazer...!). Dizendo isso, concluo quase da mesma forma como comecei este ensaio metido a poema:

Prólogo:
Tudo é escolha: Prosseguir ou não seguir adiante?
Caminho da esquerda?
Caminho da direita?
Por qual estrada há que se ir?
Qual encruzilhada não perseguir?
Considerando isso tudo,
tudo na vida é uma encruzilhada sem fim:
Partir?
Ficar?
Voltar?
Tudo é querer, poder, dever.
Querer ficar, partir, voltar?
Poder ficar. Poder partir. Poder voltar.
(O que não é a mesma coisa de dever ficar, dever partir, dever voltar...!)
Opus I:
Triste na vida
é ter que pegar o beco
– sendo o beco sem saída e pior, sem que nunca tenha fim...!
Opus II:
Na avenida,
anonimato...!
(sou muito mais eu meus longos e anônimos becos de mim..!)
Não me reconheço nas ruas, alamedas, avenidas...!
Somente sou no escuro recôndito de mim e de meus tristes becos sem fim...!
Opus III:
Há becos,
lá fora,
recortando
ruas
&
avenidas
(cá dentro, duas artérias cortadas,
única forma de escapar de um beco sem saída).
Epílogo:
Enfim, há becos sem fim...!
Vindo-se ou se indo,
Do nada ao Nada,
a diva da vida é um palíndromo:
Faça o que fizer, escolha o que escolher,
O RUMO É O MURO

terça-feira, 25 de março de 2014

Karim Aïnouz - Por que um dos maiores nomes do cinema nacional foi viver em Berlim?


Foto: Divulgação 
O ator Lázaro Ramos em cena de Madame Satã, que Aïnouz lançou em 2002

Por Nina Lemos
Da Revista Trip

Em Praia do futuro, novo filme de Karim Aïnouz, um rapaz cearense se muda para Berlim. A sinopse é a mesma da vida do diretor, que saiu moleque de Fortaleza, perambulou pelo mundo e, há cinco anos, vive feliz na cidade alemã, de onde não pretende sair mais – pelo menos por enquanto

No novo filme do diretor Karim Aïnouz, Praia do Futuro, um menino olha para o infinito do mar por minutos. Esse menino poderia ser Karim, cearense e viajante de alma. Praia do Futuro, que se passa em Fortaleza (cidade onde nasceu) e Berlim (cidade onde mora há cinco anos), conta a história de um salva-vidas (papel de Wagner Moura) que vive uma paixão intensa com um alemão, viaja para vê-lo e nunca mais volta. Anos depois, seu irmão mais novo vai ao seu encontro na mesma Berlim.

Tudo a ver com a história de Karim. “É, eu sei que é totalmente autobiográfico, mas eu finjo para mim mesmo que não é, para não ser muito egoico”, ele ri, em um café próximo à casa onde mora com o namorado, Mario Brandão, companheiro de viagem há dez anos.

A sinopse parece, sim, a vida de Karim, o menino filho de uma bióloga cearense com um engenheiro argelino. Os dois se conheceram quando a mãe do cineasta fazia pós-graduação nos Estados Unidos. “Ela voltou para Fortaleza grávida, e o meu pai, que estava fugindo da Guerra da Argélia, logo voltou para lá porque a situação se normalizou.” O menino do filme que olha para o mar quer conhecer o mundo e encontrar o irmão mais velho. “Eu sei, é igual à minha história com meu pai. Afinal, ele foi embora, nunca mais voltou, e só fui conhecê-lo de novo em Paris, quando eu tinha 18 anos”, ele diz.

Karim, que foi criado pela mãe e pela avó, recebia cartões-postais do pai mandados de vários lugares do mundo. E, segundo ele, nasceu para botar o pé na estrada, coisa que fez com 16 anos e nunca mais voltou. “Acho que quando a gente sai da cidade natal é uma ruptura. É muito difícil voltar.” Karim morou em Brasília, Paris, Nova York, Rio de Janeiro e São Paulo. “Agora acho que estou na minha última parada”, ele diz.

“Adoro perder avião”

Quer dizer, mais ou menos. Apesar de amar Berlim loucamente, Karim não para na cidade. O cinema de Aïnouz é um cinema de viagem. Ele é autor de O Céu de Suely e Viajo porque preciso, volto porque te amo. Os dois se passam nas estradas do Nordeste. “Eu tenho, sim, essa coisa com viagem e ruptura. Inclusive porque eu amo viajar, amo um aeroporto, amo avião. Sabe o que eu mais gosto? Quando o táxi que vai me levar para o aeroporto chega na minha casa. Amo aeroporto, conexão longa, tudo. Esse é um momento bom da vida, porque a gente não tem que controlar nada. Se o avião atrasar, não é culpa nossa, se tiver trânsito, também não, pega outro.” Sim. Eis o primeiro homem na Terra que gosta de perder conexão e é capaz de escolher voos com várias conexões. “Esses são os mais gostosos.”

Ele consegue ficar, no máximo, três semanas sem viajar. No dia seguinte à entrevista, daria uma palestra em uma cidade do interior da França. “Eu até podia não ir, mas, sabe, acabo falando sim, porque vai ser legal, tem que pegar um avião para Paris, depois um trem que dura 4 horas, e eu adoro tudo isso.”

Um diretor de cinema controla muita coisa, por isso, Karim acha bom perder o controle de vez em quando. “Eu gosto de mandar, claro que gosto, senão, não seria diretor de cinema.” E ele é centralizador. Gosta de ter a ideia, sempre muito pessoal, de escrever o roteiro junto com colegas, filmar. Mas o que ele gosta mais é de editar. Esse é um momento de introspecção. É como um artista pintando. Ele edita em Berlim, perto da sua casa.

Mas continua, sim, com os dois pés no Brasil. De dois em dois meses, viaja para Fortaleza para coordenar uma oficina de roteiro e visitar a mãe, de 82 anos. “Adoro, fico com ela, cuido, gosto de trabalhar no Brasil.” Em Praia do Futuro, Karim conseguiu o inimaginável. Juntou uma equipe alemã e brasileira. Deu certo.

O diretor é premiadíssimo: já ganhou mais de 30 prêmios internacionais e hoje desfila com tranquilidade no tapete do Festival de Berlim, com amigos na cidade como o cineasta Wim Wenders, que o convidou para o projeto Catedrais do futuro, coordenado por ele. Em uma exibição de Viajo porque preciso, volto porque te amo, em Berlim, Karim foi aplaudido de pé e teve o filme elogiado publicamente pelo cineasta de Asas do desejo. Era 2010. “Nossa relação começou ali.”

A voz do metrô

Karim se apaixonou pela Berlim de Asas do desejo em 2004, quando morou na cidade após ganhar uma bolsa de estudos do Estado alemão e viver na cidade por um ano. Quatro anos depois estava de volta, com dois gatos e tudo mais que tinha em São Paulo. “Eu queria demais morar aqui. Mas na hora em que estava tudo empacotado em casa em São Paulo eu olhei para o Mario e comecei a falar: “Meu Deus, o que estamos fazendo? Estava tudo bem aqui, tínhamos uma casa, tudo direito... Por que a gente está indo?”, ri. Hoje, não se arrepende nem por um momento da escolha que fez.

“Estou numa fase muito boa. Tenho 48 anos e moro em uma cidade onde você pode ser jovem com qualquer idade. Aqui é como uma cidade do interior. Compro meu bilhete de um ano de metrô, ando a pé. Em São Paulo estava ficando doente, engordando, porque tudo o que fazia era ir a restaurante.” A relação de Karim com a cidade é daquelas apaixonadas. “Lembro que, depois de ter morado aqui, vim para ficar só uns quatro dias e na hora de ir embora não parava de chorar, de tão desesperado que estava por estar indo embora.” Ele diz que para fazer um filme precisa sentir tesão pela cidade. E é isso o que ele sente por Berlim. Principalmente pelos terrenos abandonados (reflexos da guerra e da queda do muro de Berlim). “Esta é uma cidade que ainda está sendo construída. Isso é muito maravilhoso.” Se sente esse tesão por Fortaleza, onde filmou e nasceu? “Sinto especialmente pela Praia do Futuro, esse lugar que está acabando porque o mar está destruindo as dunas.” Terrenos baldios, dunas, essas são as paisagens de que Karim mais gosta.

Uma vez, em São Paulo, o encontrei na padaria do bairro de Pinheiros, onde ele morava. “Estou com uma saudade de Berlim”, ele disse. “De quê?” “Daquela voz que fala no metrô.” A voz é uma gravação de uma mulher que fala em alemão algo como “Saia de perto da porta”. “Pois é. Claro que eu botei a voz no filme, né?”, ele diz. “São esses detalhes todos que fazem a gente amar uma cidade.”

Praia do Futuro, afinal, é ou não é autobiográfico? O personagem principal, assim como você, é de Fortaleza e se muda para Berlim... A coisa mais autobiográfica de todas é essa de sair de casa e ir para o mundo. Claro que o filme é sobre a minha casa e sobre a casa onde eu decidi viver. Mas é mais amplo. É sobre quando você sai de casa. Acho que, quando você sai, não pode mais voltar. E eu saí de casa muito cedo. Fui para Brasília, Nova York, Paris. Agora estou em Berlim. Eu fui inventando essas casas na vida. Uma amiga dizia que alguém tem que morar em muita casas para não ter uma vida chata. E eu acho que é verdade. A coisa central do filme é sair de casa e se reinventar.

No filme, o personagem desaparece e inventa uma nova vida. Essa é uma fantasia sua? Eu sempre tive vontade de sumir. Essa é uma fantasia. Começar sem passado. Isso é impossível, o passado sempre volta e te assombra. Eu queria, precisava, filmar Berlim. Esse filme só podia ser aqui. Esta cidade é nova. Filmei por amor. Filmar, para mim, é foder o lugar. Tenho que ter tesão. E precisava fazer isso com Berlim.

O que faz você se apaixonar por uma cidade? Coisas pequenas. A voz do metrô, por exemplo. Eu coloquei no meu filme duas vezes. É tão lindo... Queria também filmar meu bairro. E os terrenos baldios, que eu adoro. Berlim está sendo construída ainda. Tem a coisa das bombas... Hoje eu estava voltando do médico, andando por uma rua que conheço. Olhei para dentro de um portal e era um lugar que provavelmente foi bombardeado. Olha isso! Quando morei aqui em 2004, escrevi o roteiro de O Céu de Suely, mas fotografei muito a cidade. Tenho centenas de fotos. Esse filme foi como voltar para essas fotos. Eu gosto dos sons, dos não lugares. Falar que é um hino de amor à cidade é muito pretensioso. Mas digamos que eu escrevi uma carta.

E é uma carta de amor a Fortaleza também? Não para Fortaleza. Mas para a Praia do Futuro. Esse era um lugar muito importante na minha infância, e é uma praia que está acabando. O filme começa com um cara olhando para o horizonte. Ele é salva-vidas, mas a praia é vazia.

Você era tipo esse menino quando morava em Fortaleza?
Outro dia achei uma coisa interessante na casa da minha mãe. Ela vinha para a Europa todo ano, porque é pesquisadora de bioquímica. Achei um livro que eu fiz assim que comecei a escrever, com 6 ou 7 anos. Ela ficava tipo dois meses fora e me mandava muito cartão-postal. O primeiro livrinho que eu fiz para a escola foi com os lugares que eu queria ir. Eu ficava com a minha avó. E morria de inveja [risos]. Tinha a coisa do meu pai também...

Qual é a história do seu pai? É uma história muito louca! Meu pai é de uma tribo da Argélia. Ele largou a gente e foi para a Argélia, depois para a França. E ficava me mandando cartão do mundo todo. Ele era engenheiro, ia para Tóquio, Arábia Saudita, só esses lugares sensacionais. Na verdade ele queria que eu fosse encontrar com ele. Mas minha mãe não deixava, tinha medo de eu ir e não voltar. Eu tinha esse imaginário do mundo, sempre esteve muito presente em mim. E, uma hora, eu comecei a rasgar essas cartas do meu pai [risos]. Teve um dia, com 8 anos, que eu rasguei várias. Tipo assim: “O que esse cara pensa? Isso é uma tortura! Fica me mandando essas cartas e não vem aqui”. Eu já queria ir, mas não podia...

Onde seus pais se conheceram? Meu pai conheceu minha mãe nos Estados Unidos. Minha mãe fazia doutorado e ele, mestrado. Isso foi nos anos 60, logo depois da Guerra da Argélia. Na verdade, meu pai foi condenado à morte e meu avô também, pelos franceses. Meu avô mandou meu pai para os Estados Unidos para ele estudar e ficar protegido. Eles casaram lá, namoraram por dois anos e foram morar no Colorado. Ele voltou para a Argélia, porque a situação já estava melhor. E lá ficou. Minha mãe voltou grávida para Fortaleza e eu fiquei com ela. Esse desejo de ir embora está no meu DNA. Fui criado para me largar. E Berlim é a minha ultima parada. Por enquanto, né [risos].

Você pensa em se mudar daqui?
Não acho que saio daqui tão cedo, viu? Tenho uma rotina tão gostosa, estou tão feliz... Mas viajo o tempo todo. Eu falo: “Vou ficar três semanas sem viajar”. Mas não consigo.

Por que não? É esquizofrênico. Estou sempre falando: “Que legal ficar aqui, vou ficar dois meses sem viajar”. Aí de repente aparece uma coisa para fazer, eu aceito e entro no avião [risos]. Tipo amanhã eu vou para Rennes, na Bretanha, para uma retrospectiva. Na verdade, não precisava ir. Mas eu não aguento. Pegar avião é tão gostoso! Estou coordenando também uma oficina em Fortaleza, então vou para o Brasil a cada dois meses. Isso para mim é perfeito, porque tem a parte da ruptura que eu adoro. Aqui eu meio que me escondo. É muito fácil de desaparecer. Estamos no leste, longe. Mas estou muito presente em Fortaleza. Acho que eu nunca fui tanto ao Brasil desde que moro fora. É incrível. E o avião parece que é um trem.

Você não fica cansado de pegar tanto avião? Não. Eu adoro avião! Adoro! Quando chega o táxi para me levar para o aeroporto é o momento de maior felicidade da minha vida. Essa viagem para Rennes, por exemplo, é ótima, porque tenho que pegar um avião, depois um táxi, ir para a estação de trem... Tudo isso em uma viagem que vai demorar só 3 horas.

Então você gosta de viagem que demora? Adoro! Amo conexão. E amo ainda mais perder conexão. Juro [risos]! Eu amo hotel de aeroporto. Minha vontade é ficar um ano entrando e saindo de avião. Tô amando que nessa viagem para a França tenho 4 horas no [aeroporto] Charles de Gaulle. Já estou pensando no que vou escrever lá, planejando. Adoro viagem pingada [risos]. Essas de ir para o Brasil, amo. Faço Berlim, Munique, Lisboa, Fortaleza. Eu amo, amo mesmo.

Você gosta de trocar de avião? De fazer conexão? Sério? Sim, é meio louco. Mas eu adoro. Na volta tem 6 horas de espera no aeroporto. É uma casa para mim o aeroporto de Lisboa. Mas paraíso para mim mesmo é o aeroporto de Frankfurt. Amo o aeroporto de Frankfurt. Amo [gritando]!

E o de Guarulhos? Não gosto. É muito vermelho e marrom. Prefiro ir por Fortaleza para não ficar preso em Guarulhos. Mas eu gosto de voo longo, de tomar café da manhã. Não ligo para classe econômica, nada disso. Eu me preparo. Entro, brinco de casinha. Tenho um kit. Coloco aquele travesseirinho que eu assopro, a máscara e o cinto. Quanto está taxiando, eu já dormi. Adoro! E gosto cada vez mais porque não tem telefone, internet. São os poucos momentos em que a gente consegue desligar. E avião tem outra coisa maravilhosa: a gente não tem que controlar nada! Os outros que controlam. Se atrasar, se cair, não é problema nosso. Estou entregue. Se tiver trânsito e eu perder o avião, é culpa do táxi, não minha. Pego outro. Eu sei que é meio maluco. Mas eu amo [risos]. Imagina, horas sem responder e-mail! Isso é maravilhoso!

Você tem fobia de receber e-mail?
Tenho visto muita gente sofrendo disso hoje em dia. Não gosto de receber e-mail. Você já recebeu um com alguma notícia boa? Falando que você recebeu uma grana, ganhou um prêmio? Nunca. É sempre um pedido, uma cobrança. A carta tinha uma coisa bonita, de contar história. E-mail é sempre cobrança. Coisa que você tem que resolver. Você nunca recebe um e-mail que você se deleita. É muito chato. E isso de ter pessoas com acesso direto é muito louco. Eu não consigo não responder. Sofro com isso. É horrível.

Você disse que gosta de não ser o responsável por controlar as coisas quando viaja. No set você tem que controlar tudo, não? Sim, eu concentro tudo. Sou centralizador. E, quando não estou, parece que dá errado. Estou na ideia, no roteiro. Em todos os processos. Tenho tentado não estar com as duas mãos no processo. Mas é difícil para mim. Preciso fazer teste de elenco. Preciso estar perto. E, por exemplo, eu superencano com o pôster. Por isso eu acho que eu não conseguiria fazer um cinema comercialzão. Meu pôster normalmente não é o mais comercial. Eu fico pirando. Fiz com um cara e ele, de julho a novembro, me mandava coisas. Eu estava no avião, no mais gostosinho, de Lisboa para Frankfurt. E quando cheguei em Frankfurt, como sempre, tive uma epifania! Aqueles corredores de granito, a voz daquela mulher em alemão. Aí pronto. Veio a ideia do pôster. Eu gosto de controlar, gosto, sim, de mandar. Adoro mandar. Eu fiz colégio militar, né?

Como assim?
Fiz colégio militar, vê se pode? E por ideia minha. Imagina, minha mãe era de esquerda e não queria de jeito nenhum. Fiz por vontade própria, para me rebelar, né? Imagina, coitada da minha mãe, dando aula na universidade, tendo que falar que o filho estudava no colégio militar. Imagina que vergonha. Claro, um ano depois eu desisti. E ela não deixou. Falou: agora fica até o final!

E era horrível? Cara, deve ter sido. Mas eu não lembro de ter sido horrível, não. Tenho uma coisa Pollyanna com as memórias e acho que tudo foi meio bom, apesar de que deve ter sido meio ruim [risos]. Mas tinha um lado legal. Aprendi muita disciplina. E isso é fundamental no set. No set você tem que ser militar.

Qual a parte do processo de fazer um filme que você mais gosta? Eu gosto de tudo. Gosto do ofício. Mas acho que o que mais gosto é a montagem. É uma hora de se recolher. Você fica igual a um pintor. Você tem aquele material e pode mudar tudo, se quiser. Eu gosto dessa coisa do controle. E no set você não tem. Tudo pode dar errado. O ator pode cair, pode começar a chover. Em última instância, você não tem controle nenhum.

Quando você decidiu fazer cinema? Quando eu era adolescente nem passava pela minha cabeça fazer cinema. Essa profissão não existia. Então, como queria sair de casa, resolvi fazer arquitetura. Queria ir para São Paulo. Mas eu tinha uma prima em Brasília, por isso fui morar lá. Minha mãe não tinha dinheiro para me bancar em São Paulo. Depois de dois anos em Brasília pensei: “Nem morto, preciso sair daqui!”. E fui continuar a faculdade em Paris, foi quando eu encontrei meu pai. Tive que voltar porque a minha mãe não me deixou ficar, mas fui para Brasília. Para Fortaleza, mesmo, nunca voltei. Acho que a gente só volta para casa para visitar mesmo.

E depois você foi morar em Nova York... Um dia meu pai me deu um presente. Ele me mandou um cheque de US$ 5 mil. Imagina, US$ 5 mil para um adolescente! Eu fui para os Estados Unidos para trocar o cheque, vê se pode! Porque tinha câmbio negro, aquelas coisas. Você acha que eu voltei? Claro que não, né? Eu tinha 21 anos e estava em Nova York com US$ 5 mil na minha mão. Comecei a fazer mestrado em arquitetura e a fazer uns cursos de teoria de cinema. Mas não era para fazer cinema. Nem tinha tanto interesse no assunto! Era mais para estudar psicanálise, arte, outras coisas. Aí fui me encantando, mas pelo viés teórico. Fiz mestrado em cinema e, na hora do doutorado, comecei a encher o saco de tanta teoria. E vi que era possível fazer. Conhecia pessoas que faziam curtas, essas coisas. Imagina, ninguém no Brasil fazia isso. Nem existia cinema no Brasil!

E você começou? Entrei em um projeto de estudo legal e conheci o Todd Haynes [diretor independente americano]. Aquilo me deixou muito encantado. Pensei: “Tem gente fazendo filme com boneco, que legal”. Sabe o que eu fiz? Bati na porta da casa dele e pedi um estágio. Ele aceitou na hora. Fui para limpar lata de lixo, claro. Mas foi maravilhoso. Eram pessoas idealistas, que faziam cinema para mudar o mundo, tinha um projeto coletivo. Eu até hoje acredito nisso, em trabalhar com amigos. Isso foi fundamental para a minha formação. Sempre faço cinema com idealismo. Ele era guerreiro. Fazia filme de US$ 80 mil com efeito especial. Acho que continuo a fazer cinema por causa dessa experiência.

E cinema dá dinheiro? Lembro que esse filme dele deu dinheiro. Custou R$ 80 mil, e deu R$ 300 mil de bilheteria. Comecei a aprender um pouco sobre mercado e vi que o cinema poderia ser uma coisa viável. Aí pensei: “Também posso”. E comecei a fazer meus curtas. Mas não era um projeto de carreira. E não tenho tanto conhecimento de cinema assim. Não tenho vergonha de falar isso.

Você nunca foi um cinéfilo? Não. Quando eu morava em Brasília, o lance era ir ao cineclube. Eu ia, mas não porque eu era cinéfilo. Eu ia para paquerar, porque era sexy. E no meio-tempo, claro, fui me encantando, vendo ciclos de Herzog, um monte de coisa. E quer saber? Até fazer Madame Satã eu não sabia nada de cinema [risos]. Foi um blefe [risos].

Se você não sabia nada de cinema, como conseguiu levantar dinheiro para o filme? Eu “obcequei”. Sou muito teimoso. Comecei a pensar que as pessoas deveriam conhecer a história daquele cara, me apaixonei pelo Madame Satã. Achava que era um absurdo todo mundo saber sobre Chateaubriand, Getúlio Vargas e não saber sobre ele. Eu sou teimoso. Muito teimoso. Encarei isso como uma missão: “Tenho que contar a história desse cara!”. E achei que pelo cinema era a maneira mais glamourosa de contar. Fiquei seis anos tentando, enchendo o saco das pessoas. Uma hora desisti e resolvi estudar business em Nova York. Pensei: “Estou louco, estou há seis anos tentando fazer essa merda. Chega!”. Aí começou a entrar dinheiro...

E por que foi um blefe? Eu trabalhei em uns três filmes em set e era um péssimo assistente de direção. Trabalhei com montagem por muito tempo, era bom, mas era péssimo como assistente. Como montador, comecei a ver muito filme, alugava mesmo, em VHS. Mas nunca tinha feito set. Fiz o dever de casa, muita pesquisa, storyboard. Mas, quando eu cheguei no set no primeiro dia de filmagem, não sabia o que fazer. E, menina, eu tinha mobilizado dezenas de pessoas! Não era um orçamento de R$ 80 mil, era uma produção de R$ 1 milhão! Estava o Walter Carvalho, era uma produção de uma festa, então tinha bicho, umas frutas. Fugiu do meu controle. Eu não conseguia fazer. Sabe quem salvou? O Lázaro Ramos, que fez o Madame. Ele estava fazendo aquilo com tanta verdade que cumpri o dia.

Voltou para casa desesperado? Pensei que tinha jogado tudo no lixo, né? Não tinha experiência. Fiz planos sem foco. Foi ridículo [risos]. No dia seguinte, a gente filmou em uma delegacia de polícia. E aí eu pensei: “Agora eu vou fazer tudo direito”. E fiz. Quando cheguei na linha de montagem e vi como tinha ficado, usei coisas do primeiro dia no filme. Porque podia não ser correto, mas tinha muita verdade. Eu aprendi fazendo o filme. Eu não sabia o que era lente. Pensa que absurdo! E eu devia saber, né? Vamos combinar? Como eu me meti a fazer cinema sem saber isso [risos]?

E agora, você sabe? Fui aprendendo. Tenho um domínio muito maior do cinema do que tinha antes. Nesse filme, acho que já dá para perceber que eu tenho um domínio maior.

Mas você não tinha em O Céu de Suely, seu filme mais premiado? Não, quer dizer, acho que eu tinha bem mais ou menos, né [risos]? Mas aí volto para esse meu começo de pessoas fazendo filme por idealismo. Sei lá, se você faz de verdade, acaba dando certo.

O que você acha da atual situação do Brasil? Acho que não está desesperadora, está melhor do que foi em muito tempo. Quando a gente era criança, tinha aquela coisa: o FMI, a inflação. Mas, ao mesmo tempo, acho que as coisas estão muito estranhas. E não é só no Brasil, é no mundo. Eu fico abismado com essas passeatas na França contra o casamento gay. Gente, o que está acontecendo? E o número de crimes homofóbicos no Brasil, esses Felicianos? Acho que tem uma virada à direita muito grande. Eu realmente não consigo entender o que está acontecendo. Sempre acho que a história anda para a frente, e isso não está acontecendo. O mundo anda muito conservador, esquisito. Não estou entendendo o projeto do Brasil. Existe um plano para o futuro? Existe um projeto para São Paulo? Existe transporte público, arquitetura? Não, deu tudo errado. Então, é isso, está tudo melhor. Mas, ao mesmo tempo, não estou conseguindo decifrar certas coisas. Acho que a gente tem que olhar com cautela. Vai ver é só um momento estranho. O Brasil cresceu no susto. Ninguém imaginava que o país fosse crescer economicamente, nem em sonho.

E nesse filme você fala do amor entre dois homens... Eu faço questão de falar dos temas que me interessam. Acho que as pessoas estão com muito medo e tento mostrar isso. O filme mostra, sim, uma cena de sexo forte entre dois homens. Eles estão tentando se salvar. Mas quis falar sobre homem. O Céu de Suely e Abismo prateado são sobre mulheres. As mulheres são muito importantes na minha vida. Fui criado pela minha mãe e pela minha avó. Mas tive essa vontade de falar sobre o masculino. De mostrar que homem chora, sente, sofre, se ama, se ajuda, se fode. Quis, sim, fazer um filme masculino. Praia do Futuro só tem três personagens. Mas eles passam por experiências que a gente não associa à masculinidade. Fiquei com vontade de mostrar homem marrento, mau, rebelde. Tem homem que é super-herói, homem que é covarde. Sempre quis fazer um herói covarde, acho isso bonito. Pensa, peguei um salva-vidas, um clichê de um super-herói, e fiz esse salva-vidas fazer bobagem.

Em todos os seus filmes você fala sobre viagem...
Todos os meus filmes falam sobre a mesma coisa: viagem e abandono. Esse resolvi contar de outra maneira. Agora, meu sonho é fazer um “Estou em um momento da vida em que me sinto mais livre para experimentar”. Antes eu pensava que tinha que fazer um cinema com olhar crítico sobre o mundo, ainda acho isso. Mas agora acho que estou mais livre.

Você é filho único? Eu sou filho único, mas tenho uma irmã. Minha mãe tem o maior problema com isso. Ela viajou uma vez para Paris e descobriu que o meu pai tinha se casado de novo e tinha uma filha. Ou seja, meu pai é bígamo, porque nunca se separou da minha mãe. Eu tenho uma boa relação com meu pai. Quando vou a Paris, janto com ele. Mas é uma relação meio distante.

Você é muito próximo da sua mãe? Totalmente. Muito mesmo. Ela está velhinha agora e doente. E, como sou filho único, tomo conta de tudo. Filho único é tão difícil, né? Às vezes, acho que devia ser proibido por lei. Essa é uma das razões de eu fazer esse trabalho em Fortaleza. De dois em dois meses, vou ver a minha mãe, fico na casa dela, levo no médico, tomo todas as decisões. Estou aqui em Berlim, mas, se ela precisar de mim, vou para Fortaleza correndo.

Você está casado com o Mario (Brandão, artista plástico) há muito tempo. Isso te dá segurança? Totalmente! Imagina, estamos juntos há dez anos. Nos conhecemos em Nova York. Tenho para onde voltar nesta minha vida louca de viajar o tempo todo, isso é muito, muito importante para mim.

Às vezes você se arrepende de morar fora do Brasil? Olha, vou te contar uma história. Eu fiquei quatro anos obcecado, querendo voltar para Berlim. Convenci o Mario, que não estava assim tão certo. A gente estava morando em São Paulo e eu estava com um trabalho estável [fazendo a minissérie Alice, para a HBO]. Mas desalugamos o apartamento e empacotamos tudo. Tive um ataque. Olhava aquele apartamento todo empacotado e falava para o Mario: “Meu Deus, por que a gente está fazendo isso? Estamos loucos, estava tudo bem aqui. Por que estamos indo?” [risos]. Mas, assim que eu cheguei, vi que tinha feito a escolha certa, e não penso em ir embora tão cedo. Hoje estou muito feliz, fui ao médico e ele disse que estou com a saúde ótima, que posso viver mais 50 anos. Aí vim no metrô pensando: “Que ótimo, eu posso viver mais 50 anos em Berlim” [risos].

segunda-feira, 24 de março de 2014

Tipos intelectuais, 2014


Por Michel Laub
Da Folha de São Paulo
 

— Destaque DAS humanidades ou da ciência que vira um idiota quando o assunto é política.

— Crítico literário que, ditando todo tipo de regra sobre como a prosa alheia deve ser, escreve em prosa ilegível.

— Autor de best-seller de crítica: irmão torto do best-seller de público, usa uma fórmula certeira para agradar a universidade.

— Humanista que, 50 anos depois do Golpe de 1964, sem ter parentes ou amigos na linha dura, acha que identificar crimes do passado possa ser ruim para o Exército ou para o país.

— Humanista que chama o Brasil atual de "suposta democracia".

— Sócio de consultoria econômica que faz previsões sobre os mercados onde seus clientes atuam.

— Ex-jornalista notório (em vários sentidos) que abre blog para comentar a imprensa.

— Tuiteiro que faz piadinha (do tipo #classemediasofre) com vítimas de telefônicas, bancos, companhias aéreas e operadoras de TV, a quem não resta nada a não ser reclamar —de forma algo ridícula, reconheço— nas redes sociais.

— Escritor iniciante que procura escritor mais velho e, não tendo o próprio livro lido e elogiado num prazo que varia de poucos minutos a algumas décadas, passa a atacar este verme decadente.

— Escritor mais velho que só elogia livro ruim em privado, nunca por escrito, porque é verme decadente e hipócrita, mas não é burro.

— Desavisado que resolve entrar em debate sobre um dos Grandes Temas Proibidos (feminismo, por exemplo) e, antes de ser chicoteado, apedrejado e ter as feridas cobertas de sal (com razão: quem mandou?), lembra que nem toda generalização é justa, há pessoas boas no mundo e, além disso, é a favor dos direitos de grupos historicamente oprimidos —"inclusive pertenço a um deles"— e também da cura do câncer.

— (O colunista gostaria de declarar que se enquadra em vários itens desta lista. Ele sabe —não precisam ficar nervosos, amigos— que tem defeitos e um dia acabará debaixo da terra e não será lembrado por ninguém).

— Formado em geografia ou letras, mas convicto ao falar de nuances do direito constitucional.

— O contrário disso: técnico de qualquer área —finanças, urbanismo, administração pública— que só consegue enxergar a dimensão técnica da vida.

— Cronista de costumes que fala das "relações voláteis de hoje" ou variação do conceito, que parece ter a ver com a dificuldade de amar ou fazer amigos verdadeiros na solidão das grandes cidades (tecnologia desumanizante, trabalho que aliena, comida congelada).

— (O item anterior atualiza o tipo descrito numa crônica de Nelson Rodrigues, 1967: "Um sociólogo que liga tudo à epopeia industrial. Se a galinha pula a cerca do vizinho, se o caçula tem coqueluche, se usamos cabeleira à Buffalo Bill —está explicado. As coisas acontecem, e só acontecem, porque o Brasil se industrializa".)

— Juiz seletivo de humor: só é engraçado quando concorda com o que pensamos.

— Juiz seletivo de vaidade: por mais que passe o dia discutindo obsessivamente com adversários reais e imaginários, são os outros que se levam a sério demais.

— Os que usam "eminentemente político" em vez de "político", ou "lógica do capitalismo" em vez de "capitalismo".

— Os que gostam de transformar substantivos em verbos ("a obra problematiza a questão") e verbos em substantivos ("a obra trata do próprio fazer artístico").

— Plateia que, em transmissão de Oscar sem legenda, ri para mostrar que entende a língua.

— Plateia que, na estreia da peça de ator amigo, ri alto para dar uma força.

— Teórico de restaurantezinho.

— Nostálgico de algo que nunca houve: respeito pela coisa pública, arte elevada que já nasce elevada, Rio de Janeiro cordial e lírico.

— Integrante eterno de centro acadêmico.

— Vanguarda de combate às regras de interpretação de texto.

— Poeta corajoso: "Não participo de panelas".

— Poeta, romancista, músico, dramaturgo, cineasta, fotógrafo, dançarino ou artista plástico que leva a coragem ao limite do permitido em nosso tempo, doa a quem doer, ao revelar: "Também não faço o jogo da mídia e dos poderosos".


quinta-feira, 20 de março de 2014

As loucuras de Carlos Sussekind

 
Ilustração de Carlos Sussekind para o livro "Ombros altos" 

Por Alexandre Gaioto
Da Revista Cult

Carlos Sussekind de Mendonça Filho não se importou com as reclamações dos banhistas. Houve quem lhe jogasse areia e gritasse ofensas, enquanto mães assustadas corriam para tampar os olhos das crianças. Peladão na praia do Leme, decidiu que, tal como um Jesus nudista, iria perambular sobre as águas do mar, numa andança longa, poética e sacana, sem medo de se afogar. Atendendo as ligações dos banhistas, a radiopatrulha mostrou eficiência e chegou rapidamente ao local para dar um jeito no peladão. Em meio ao surto, aos 21 anos, Carlos foi encaminhado à delegacia e, por lá, achou que tinha a obrigação de passar uma temporada metido num sanatório. A internação durou um mês e meio.

“Foi tudo muito divertido. Os loucos eram ótimos, bons parceiros para conversar e fazer loucura. A única coisa ruim eram os eletrochoques. Nunca mais tive outro surto daquele”, recorda Carlos, hoje aos 80 anos de idade, dando uma boa risada.

Sentado no sofá de seu apartamento em Copacabana, onde mora junto com duas filhas e três gatos de estimação, o escritor, tradutor e desenhista carioca topa falar numa boa sobre a experiência no sanatório. Sem embaraços nem arrependimentos, ele não economiza detalhes para lembrar aqueles dias malucos, levados para as páginas de seus quatro romances: Ombros altos (1960), Armadilha para Lamartine (1975), que une a narrativa de Carlos com excertos dos diários de seu pai, o jurista Carlos Sussekind – daí o estranhamento na capa da obra, assinada pela dupla Carlos& Carlos Sussekind – ,Que pensam vocês que ele fez (1994) e O autor mente muito (2001), escrito em coautoria com o psicanalista Franciso Daudt.

Carlos fala sobre loucos e loucuras, mas evita discorrer sobre sua própria literatura. E nada diz sobre o processo de sua escrita, a técnica do romance ou o caminho trilhado para atingir a voz própria. “Você me desculpe, mas eu não lembro mesmo de nenhuma história para te contar. Até queria te ajudar. Faz tanto tempo que não falo sobre isso, que até já esqueci as coisas. Sobre o que mesmo fala o Que pensam vocês que ele fez? O título é ótimo, mas nem lembro sobre o que é”, revela Carlos.

Na década de 1970, sua Armadilha para Lamartine estava sempre em discussão no universo literário e seu nome era constantemente citado nos cadernos de cultura dos principais jornais do País. Mesmo com a publicação de novas obras, Carlos caiu num ostracismo tremendo. “Eu não sei o que aconteceu. Todos escreviam sobre mim. De repente, teve uma mudança brusca. Achei estranho”, diz, antes de perguntar: “Qual livro meu você mais gosta?”

Digo que gosto de todos, mas prefiro Ombros altos. Um romance delicado, lírico, com um final perturbador e insano: uma das melhores obras da literatura brasileira contemporânea – e, infelizmente, pouco lembrada. Como não se apaixonar por Paula, a musa mitificada pelo narrador? Como não se apaixonar por aquela escrita, falsamente simples? Num romance conciso, de umas cento e poucas páginas, há trechos fabulosos, como a íntegra do capítulo “VI”:

“Sonhei com você. Conheci que era você por causa da orelha tão pequena. Você repartia o cabelo em duas metades, olhando mansamente para mim. As duas metades eram para dizer que me aceitava. De repente riu e disse:

‘Deixa de ser bobo. Você está sonhando. Você deve ter lido que as japonesas se dão a conhecer pelos penteados’.

Desapontei. Eu nada sabia sobre as japonesas e seus penteados. Mas você é assim mesmo”, escreve Carlos, em Ombros altos.

O autor fica feliz com o elogio. Também está feliz com a nova edição de Ombros altos que a 7Letras soltou no ano passado. E, sobre esse livro, ele até topa falar alguma coisa.

“Você sabe que é uma história verdadeira?”

Confesso que desconfiava, mas, naturalmente, estou surpreso.

“Paula era o amor platônico do papai”, comenta, rindo, Adriana Sussekind, chegando à sala com um cafezinho caprichado. “E, depois de 50 anos da publicação, ele realizou, quer dizer, não sei se posso falar… Posso, pai?”

“Não é bom falar, não”, interrompe Carlos, sorrindo. “Tem outra coisa interessante. Na edição da 7Letras, pedi para colocarem logo em uma das primeiras páginas a foto da Teresa, de quando ela era criança. Da Teresa, não, né, da Paula”, comenta o escritor, rindo, dando com a língua nos dentes.

A Paula de Ombros altos, então, na vida real, é a tal Teresa. Com olhar firme e trancinhas no cabelo, a musa surge em preto e branco, no início da obra, sem esboçar sorriso algum. Quase a contragosto. Bem típico da personagem mesmo.

Antes de tomar o café, Carlos pede um segundo e diz que vai buscar um presente para mim, lá dentro do apartamento.

Herança literária

Ao escrever Armadilha para Lamartine, Carlos se apropriou dos diários do pai, adulterando, com mão de ficcionista, o conteúdo original dos textos. Redigidos de 1938 a 1963, os diários revelam hábitos e costumes da burguesia carioca e trazem diversas opiniões, escritas no calor da hora, sobre períodos políticos, como o Estado Novo de Getúlio Vargas e a Segunda Guerra Mundial. Os diários renderam 80 cadernos, resultado de uma escrita obsessiva. Carlos Sussekind (pai) começava a escrever pela manhã, comentando as expectativas do dia que teria pela frente. Voltava aos diários à tarde, redigindo mais um pouco, e, à noite, dava uma geral nas coisas que havia feito e pensado. Uma parte deste conteúdo, até a década de cinquenta,foi digitalizada e está disponível no Instituto Moreira Salles.

À Adriana, coube o papel de levar os diários à academia. No Mestrado em Memória Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO), sua dissertação abordou a vida cultural no Rio de Janeiro durante a Segunda Guerra Mundial, por meio dos relatos do avô.

“Ninguém mais da família se importa com os diários. Só a gente”, lamenta Adriana, apontando para a estante de livros – boa parte dedicada somente à acomodação dos diários. “50% do Armadilha para Lamartine foi tirada deles”, diz Adriana.

“Armadilha para Lamartine é o livro que eu mais gosto. Acho que escrevi com mais prazer”, observa o autor, enquanto volta para a sala, sinalizando que a memória não está tão ruim assim. Nas mãos, a raríssima primeira edição de Ombros altos – na época batizada de Os ombros altos –, de 1960. “Essa é para você”, avisa Carlos, estendendo o livro.

O escritor traz uma grande pasta e, sentado no sofá, vai tirando dezenas de desenhos lá de dentro. São desenhos grandes, todos em preto e branco, feitos com lápis ou com caneta preta.

“Isso é o que eu mais gostava de fazer. Até mais do que literatura.”

Sombras claras e fortes se alternam no primeiro desenho impressionista, intitulado Tudo passa. Duas garotas praticando sexo oral uma na outra também surgem nos traços de Carlos, compondo o erotismo da série As irmãs apaixonadas. Numa das imagens da sequência Escritório, o autor se retratou no centro de uma sala claustrofóbica, com algumas pessoas ao seu lado, sentado em frente à máquina de escrever. Com um olhar furioso, Carlos está prestes a explodir dentro da sala. A escrita, ali, não parece uma atividade muito prazerosa, não.

O escritor dá risada. Concorda que a escrita é um trabalho árduo. E digo que ele deveria preparar uma exposição, reunir esses quadros todos seria algo fantástico. Ele escuta, mas não parece muito empolgado.

“Seria bom mesmo”, responde a filha. “Só que é tudo tão difícil de organizar, arranjar patrocínio… Além do mais, ele deu muitos desenhos para os amigos.”

Carlos continua mostrando os seus desenhos, agora, apontando-os na parede. Pendurados na sala, cerca de quinze imagens trazem mais traços impressionistas. Exibe, com um sorriso nos lábios, o retrato emoldurado de Paula, a musa de Ombros altos. Quase todos os desenhos foram feitos em 1959.

“Foi mesmo um ano bem criativo”, reconhece Carlos. Hoje, ele diz que não guarda nenhum material inédito na gaveta e não dá sinais de que voltará à literatura – nem mesmo às artes plásticas. “Não sei o que aconteceu. De repente, escrever e desenhar tornou-se tão cansativo. Deve ser a idade”.

Sem reclamar

Em sua trajetória, Carlos nunca foi contemplado com prêmios literários, porém caiu nas graças de alguns críticos e escritores. Arnaldo Jabor afirmou que Armadilha para Lamartine é “uma obra-prima”. Leyla Perrone-Moisés notou a voz própria do romancista, dizendo que “sua particularidade é de parecer simples e transparente, mas de ir destilando, nas entrelinhas, uma ironia finíssima e corrosiva”. Ana Cristina Cesar, por sua vez, acrescentou que Armadilha para Lamartine é “um livro único na ficção brasileira”, com “a qualidade de nos virar a cabeça silenciosamente, com discreta malícia e humor, com impecável mansidão, e nos lançar num poço sem fundo de associações”. Digo a ele que é uma injustiça tremenda, a ausência de prêmios. Ele não diz nada. Nem reclama. Limita-se a balbuciar alguma coisa.

Peço, então, uma dedicatória nos seus três romances e, a pedido dele, vamos até a mesa da sala. Carlos pega o Que pensam vocês que ele fez e abre o livro na epígrafe. Começa a ler os próprios versos em voz alta:

“Era uma vez três
Dois polacos e um francês
Os polacos deram deram no francês
O francês por sua vez
Puxou a espada com rapidez
Que pensam vocês que ele fez?
Matou? Esfolou? Foi pro xadrez?
Esperem
Vou começar outra vez
Era uma vez três
etc

(Anônimo)”

Ele dá uma boa gargalhada quando termina a leitura. Carlos voltou no tempo. Esbarrou-se consigo mesmo – há quanto tempo não esbarrava consigo mesmo? – nas linhas do livro esquecido. E com os dedos roçando a capa da obra, olha para a sua literatura e dispara: “Que loucura tudo isso, né?”

Me despeço de Carlos com a promessa de mandar alguma lembrança. Talvez um filme, porque Carlos é louco por cinema. Caminho em direção ao mar. Na frente do hotel Copacabana Palace, compreendo tudo. E sinto uma vontade danada de arrancar camiseta, bermuda e cueca, e encarnar o Jesus nudista, caminhando sobre as águas de Copacabana, recebendo nas costas a areia arremessada pelos banhistas, ouvindo o estridente coral das ofensas, me vejo sendo preso pela radiopatrulha, concordando na cadeia em passar um mês e meio no mesmo sanatório em que ele tomava os eletrochoques. Porque foi assim que ele fez. Ou não? Que pensam vocês que ele fez?

*Alexandre Gaioto é jornalista e trabalha no jornal O Diário de Maringá, Paraná. Tem 26 anos e é mestrando em literatura pela UEM

terça-feira, 18 de março de 2014

Notas de um velho safado


Por Patrícia Homsi
Da Revista Cult

“Sempre fui de perna. Foi a primeira coisa que vi quando nasci. Mas então eu tentava sair. Desde então, tenho me virado no sentido contrário, e com um azar dos diabos”, diz o detetive Belane nas primeiras páginas de Pulp (L&PM, 2009), o último livro de Charles Bukowski, publicado pouco antes de sua morte, em 9 de março de 1994, em decorrência de leucemia. Na ocasião, Belane estava distraído com as pernas de Dona Morte, sentada em seu escritório à procura de Céline – sim, Louis-Ferdinand Céline –, escritor que supostamente havia fugido dela. Dona Morte cruzava as pernas, hipnotizando Belane. Assim como o detetive, Charles Bukowski, nascido na Alemanha em 16 de agosto de 1920 e criado num subúrbio de Los Angeles, parecia distrair-se facilmente diante de um par de pernas femininas.
A fama de velho safado, bêbado e masturbador compulsivo, rendeu a Bukowski críticas e acusações de misoginia durante toda a vida. Numa entrevista em 1988, porém, disse irritado: “Eu simplesmente não transo e pulo de cama em cama. Seria bom poder dizer isso e fingir que eu sou durão, mas não sou”. O autor considerava o tratamento dado às suas personagens masculinas muito pior que às femininas. Para ele, o amor era um “cão dos diabos”, como diz um de seus versos. A aflição acompanhava amor e sexo, prendendo-o numa paixão incontrolável, irracional. Como explica Marcelo Ariel, coordenador do projeto Bukowski 20, idealizado por Ivone Fs em homenagem aos 20 anos sem o autor, “na obra de Bukowski, o amor e o sexo são o triunfo do fracasso”.
Para o velho Buk, era a alma marginal que importava; A essência errante e humana que não via presente em personagens como Mickey Mouse, por exemplo. William Packard, que editou alguns de seus textos, chegou a dizer que o objetivo de Bukowski era uma “desdisneyficação” de seus leitores, guiada por amostras de alma e verdade, coisas que Mickey Mouse não ensinava.
Por explorar o erotismo e as fantasias em torno de mulheres, bem como pela exposição da realidade americana contrária ao american dream, Bukowski foi, por muitos anos, subestimado pela crítica norte-americana. Como explica Fernando Koproski, poeta e tradutor de uma antologia de poemas do autor, os críticos da época eram “mais afeitos ao preciosismo”, em detrimento da poética livre e espontânea de Bukowski.

Cru
“Bukowski me chamou a atenção por falar diretamente sobre uma realidade que eu via descortinada exatamente como nos seus textos, isto é, sem firulas e sem frescuras, sem ornamentação desnecessária, artificialismos, psicologismos babacas ou com o ranço de uma linguagem velha e estagnada”, lembra Koproski. Reinaldo Moraes, escritor e tradutor de Mulheres (L&PM, 2011), diz que o interessante na obra do velho Buk é precisamente a demonstração real e suburbana dos fatos que o cercavam, sem que fosse necessário embelezar a suja sarjeta: “Chutar o rabo do bom gosto. Extrair poesia do fundo do poço. Essas merdas”.
Para os tradutores, o ambiente retratado por Bukowski guarda na linguagem desafios para a adaptação ao português. Segundo Fernando Koproski, o objetivo de seu trabalho é “escrever um texto em português que contenha similar coloquialidade, simplicidade, lírica e pegada do texto em inglês, sem ser ‘tosco’”. Reinaldo Moraes também se inspira no estilo “coloquial miúdo, rápido, com pegada de boxer do velho Buk”, e confessa a dificuldade na tradução de gírias: “Quase me enforquei tentando traduzir o sistema de apostas no turfe americano da época, com as gírias dos turfistas pés-de-chinelo, por exemplo”.
Bukowski sofreu com ataques violentos do pai desde a infância, exclusão entre os jovens na adolescência e uma crise de acne que lhe deformava o rosto, tudo isso relatado em Misto quente (L&PM, 2005). Sua literatura foi formada nesse cenário imundo da falência do sonho americano e dos subempregos, somado ao ambiente de uma Los Angeles crua e inevitavelmente depressiva. As influências deram origem a relatos da rotina do autor, cujos temas principais, como relembra Ivone Fs, poeta e organizadora do Bukowski 20, eram a “rotina de bebedeiras e ressacas intermináveis, suas histórias amorosas, rodeado de prostitutas, sua paixão pelas corridas de cavalo, sua vida solitária e completamente desregrada”.
Como afirma Mário Bortolotto, dramaturgo, ator e diretor responsável pela montagem teatral de Mulheres, a vida do velho Buk era a “matéria prima” de seu trabalho. A maioria das obras envolve elementos biográficos e ficção juntos, principalmente naquelas em que Bukowski utiliza Henry Chinaski, seu alter ego, como personagem. Reinaldo Moraes explica que, “em geral, na boa literatura, essas instâncias [real e ficcional] se misturam a ponto de a própria versão sobrepujar o fato”.

A turma de Buk
Devido ao uso de relatos autobiográficos sobre a rotina suburbana preenchida com cerveja, Charles Bukowski costumava ser classificado (palavra insuportável para ele) como beat, ao lado de William Burroughs, Allen Ginsberg e Jack Kerouack. “Tanto nele quanto em alguns beats, como [Carl] Solomon e Kerouack, o cotidiano é retratado como parte de uma patologia com alguns surtos de beleza dentro dela”, diz Marcelo Ariel. Mas o fato é que Buk “era um animal antissocial, não fazia parte de grupos”, destaca Bortolotto.
Reinaldo Moraes lembra um relato do autor sobre a vez em que encontrou Burroughs numa feira literária e não sentiu vontade de ir falar com ele (“Aliás, ele detestava feiras literárias. ‘Muita mosca em cima da mesma merda’, ele dizia”). “Os beats da estirpe de Kerouack, Ginsberg e Burroughs eram classe-média universitária. Buk pegava no pesado. Foi funcionário do correio durante anos. Lutou boxe, foi carregador. Outra enfermaria sócio-cultural. Ele sentia a diferença com a devida dose de ressentimento.”
Após o sucesso como escritor, já com cerca de 50 anos, as companhias mais comuns de Buk eram mulheres. Como explica Ivone Fs, “imagine um homem com essa idade tendo a chance de vivenciar todas as suas fantasias e sonhos de adolescente. Elas agora estavam a sua procura. Elas querem conhecer o grande escritor”.
Mesmo com a frequência feminina em sua cama, Bukowski ainda não se adaptara a angustiantes relacionamentos amorosos. “Às vezes, uma cerveja é melhor que amor e sexo – diz o personagem Hank, de Mulheres, em certas horas sombrias”, reflete Reinaldo Moraes. Para Mário Bortolotto, que interpretou Henry Chinaski, “como Domingos de Oliveira ou como o Detetive Mandrake, do Rubem Fonseca, ele amava todas as mulheres do mundo”. De acordo com o velho Buk: “O amor se esgota, pensei ao caminhar de volta ao banheiro, mais rápido do que um jato de esperma”.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Mais loucos e perversos do que nos imaginamos



Por Clariana Zanuito
Da Revista da Cultura
Foto Rodrigo Braga/3Filmgroup

Foi com seu mestre, o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), que Contardo Calligaris aprendeu que o transtorno mais grave que uma pessoa pode ter é ser, digamos, “normal”. Consequentemente, aprendeu também o pupilo que, para ser saudável, o ser humano necessita ter, ao menos, uma neurosezinha aqui e outra ali. Assuntos como esses fascinam tanto Contardo que, aos 65 anos, o psicanalista italiano, nascido em Milão, mas radicado no Brasil desde os anos 1980, assume continuamente o seu maior gosto: trabalhar. Não é fora do comum, portanto, encontrá-lo em seu consultório durante 12 horas diárias e saber que, no tempo restante, além de poucas horas dedicadas ao sono, ele ainda faz exercícios, lê três livros por semana, produz uma coluna semanal para a Folha de S.Paulo e ainda preserva suas idas a cinema, teatro e restaurante. Quer mais? De um ano para cá, ele vem se dividindo entre os roteiros e as gravações da série Psi, que estreia dia 23 deste mês no canal HBO Brasil – e simultaneamente em mais 22 países da América Latina –, e é baseada em seus livros O conto do amor e A mulher de vermelho e branco. Em foco estão as aventuras de Carlo Antonini (vivido por Emílio de Mello), psicólogo, psiquiatra e psicanalista que tem a vida fora do consultório destrinchada junto com a história de outras personagens que exemplificam diferentes perfis psicológicos.

Membro da Escola Freudiana de Paris há quase quatro décadas, Contardo Calligaris não se importa em chocar seus colegas freudianos e lacanianos ao revelar que gostaria de fazer um ano de pscioterapia junguiana, assim como também não tem problema algum em encarar a sociedade ao expressar que a infância é uma idade totalmente idealizada e que as crianças são seres extremamente cruéis. Completa a descrição dizer que ele é encrenqueiro, intervencionista, gosta de se meter em brigas – claro que não como há 30 anos – e de resolver problemas sobre os quais não foi pedida sua opinião. Enfim, o psicanalista está bem longe de ser a pessoa normal que tanto abomina. Sorte a nossa! Afinal, Lacan não estava errado em dizer que a vida é realmente mais interessante quando há uma neurosezinha aqui e outra acolá.

Por muito tempo você teve oportunidades, mas optou por não adaptar os livros O conto do amor e A mulher de vermelho e branco para o cinema ou TV. O que, dessa vez, fez com que você mudasse de ideia? 
É uma pergunta interessante. Primeiro, porque, claro, é uma mudança de ofício, mas, enquanto romancista, eu sou um contador de histórias. Não sou fascinado por nenhum experimentalismo. Então, um seriado é uma maneira de contar uma boa história e, sobretudo, construída ao redor de personagens que têm de ser sólidos, porque eles têm de durar de alguma forma, pelo menos o personagem principal. Isso, no fundo, não é muito afastado do trabalho do narrador e do romancista. Tem uma grande diferença que é de ser um trabalho coletivo; então, é preciso, realmente, se acostumar a isso, porque o romancista é Deus e todo mundo. Não tem problema, mas o escritor de cinema, sobretudo do Brasil, é inserido em um processo muito mais complexo. Agora, ainda por cima do ponto de vista da televisão brasileira, foi uma coisa relativamente nova. Aliás, na verdade, absolutamente nova como tipo de seriado brasileiro. Acho que nunca foi feito algo parecido. Não tem! Então, nasceu essa ideia, e procurei alguém que escrevesse comigo, porque é uma tarefa hercúlea. O roteiro de uma série de 13 episódios tem 800 páginas, não menos do que isso, em várias versões e andando em companhia. Mas, rapidamente, me encontrei com Thiago Dottori, que é o roteirista com quem, aliás, eu continuo trabalhando a segunda temporada.

O que as pessoas que já conhecem o personagem Carlo Antonini vão encontrar de diferente em Psi? 
Várias coisas. Primeiro, os amores e os amigos são completamente diferentes, porque ele não mora mais em Nova York, voltou para São Paulo. Mas, no fundo, espero que eles encontrem certa permanência que é ele: essa figura um pouco bizarra, um cara que é psiquiatra, psicólogo, psicanalista – geralmente existem casos famosos, mas são poucos. Na maioria das vezes, alguém é ou psiquiatra e psicanalista, ou psicólogo e psicanalista, mas as três coisas são mais raras juntas. E um cara que tem um espírito, pelo menos aventureiro, tanto na sua prática quanto com poucas obediências de qualquer tipo, inclusive, de alguma forma, morais. Não por isso ele seria um devasso – não é nada disso, ao contrário. Mas digo “morais” no sentido em que acha que as escolhas morais são questões próprias, singulares de cada um. E um fascínio com essa profissão. Fascínio no bom sentido, não no sentido de ficar boquiaberto – é um pouco burro –, mas um interesse muito grande pela diferença extrema que, na verdade, é sempre muito menos extrema do que parece. É muito mais próxima, muito mais parecida com a gente. E essa relação com a diversidade da vida acontece na clínica, mas acontece também na sua vida cotidiana, na sua vida amorosa, por exemplo. É um cara que se aventura, faz escolhas amorosas que podem parecer um pouco bizarras.

E você também acompanhou as gravações? 
Totalmente. Mas, em certos momentos, foi complicado... Na segunda temporada, acho que vou ter que levar isso mais a sério porque, fisicamente, a massa de trabalho foi superior, muito superior, ao que eu vagamente imaginava, como número de horas. As noturnas acabam às 4h30, 5h da manhã. Mas, tudo bem, digamos que, às 2h, eu desistisse, mas às 7h30 estava no consultório.

Não podia abandonar nem o consultório e nem as gravações... 
Claro, mas, na segunda temporada, certamente vou, durante a produção propriamente dita, suspender os atendimentos. Não tenha dúvida! Porque, se não, caso eu não suspenda, não tem como. Tem isso. E tem antes e tem depois. Porque você não para de escrever ao longo, sempre tem o “vamos mudar essa cena, vamos fazer aquilo, se muda aquilo tem que mudar o outro e companhia”. Participei muito ativamente de todo o processo de edição. E aí você realmente aprende! E olha que tenho um passado ligado ao cinema, digo, eu fui tudo, até figurante. Fui figurante muito cedo, de Barbarella [filme dirigido por Roger Vadim, em 1968] e de alguns outros horrores cujo título nem me lembro. Já fui gladiador romano, já fui várias coisas quando morava em Roma.

Essa curiosidade do Carlo por situações diferentes, de sair atrás de um problema e tentar resolvê-lo, também existe em você? 
Sim. Ou, então, quando não tem um problema, criá-lo (risos). Que também é outra maneira de ter que sair atrás de um problema. Sim, sou intervencionista, sou encrenqueiro, sou do tipo que, se tem uma briga, me meto. Sou briguento. Paguei a metade da minha faculdade com uma bolsa pelo boxe. Fui campeão suíço universitário. Só para dizer que sou encrenqueiro.

Nada como uma boa confusão então... 
Gosto de uma pequena confusão, sim. Muito menos agora do que há uns 25, 30 ou 40 anos. Mas ainda entro em alguma confusão. Compro briga, sim. Peito!

E você, assim como ele, também tem repulsa pelo que é normal? 
Também. Aprendi isso com o meu mestre, [Jacques] Lacan. Eu segui, durante muitos anos, as apresentações de pacientes que ele fazia a cada sexta-feira, ao meio-dia, no [Centre Hospitalier] Sainte-Anne, em Paris. Uma apresentação de paciente, você sabe o que é? Um paciente que foi internado, o residente que se ocupa desse paciente tem questões, então, ele é apresentado. Lacan apresentava-o para um público limitado, de pessoas convidadas, autorizadas, digamos que eram umas 70 pessoas, mais ou menos. Fiz isso no Hospital Raul Soares, na Clínica Pinel, em Porto Alegre, em Rosário. Existe cada vez menos, e é uma pena, porque é um instrumento pedagógico incrível. E também porque não existem mais hospitais psiquiátricos no sentido tradicional. Cada vez menos existem. Então, uma vez, Lacan disse sobre um paciente: “Qual é o problema dele?”. O residente falou: “Não consigo diagnosticá-lo”. E Lacan disse: “Ele é absolutamente normal”. Todo mundo deu uma risadinha, e Lacan acrescentou, o que deixou uma espécie de frio entre nós: “De todos os diagnósticos, a normalidade é o diagnóstico mais grave, porque ela é sem esperança”.

Então, a “normalidade” é um transtorno como outro qualquer...
Certamente. Não... Na verdade, é mais grave.

E o que é ser “normal”?
Pois é... Será que as pessoas querem ser normais? Normais ou não julgadas? Eu acho que o neurótico médio – que somos todos nós – sonha, idealiza o louco. Ele acha que o louco é “o cara”. E sonha em ser perverso. Ou seja, em ser alguém que realmente não teria todos os impedimentos que a neurose nos coloca, ou seja, os registros de culpa, as inibições. O que é uma pessoa normal? Uma pessoa realmente normal é uma que tem um registro de experiência miserável, extremamente pobre. Pode ser que seja relativamente pouco sofrido, mas é também dramaticamente desinteressante. Às vezes, quem pode ser normal são pessoas que têm ou tiveram uma insuficiência cultural-afetiva muito grande. Então, não conseguem... Não é elaborar a experiência no sentido de falar as suas experiências, mas sabe aquela coisa que você atravessa a vida, vê as coisas e isso não lhe evoca nada? Tudo acontece como está acontecendo e isso não me evoca nenhuma lembrança. Normal é quem não tem nada disso. É quem tem uma experiência miserável, no sentido de pobre. Um registro de experiência extremamente pobre.

Não tem interesse também? 
É a mesma coisa. Interesse muito limitado. Por exemplo, o sexo parece ser fisiológico. Ausência de fantasias sexuais. O sexo é: “23h30 a gente apaga a luz, está na cama, transa”. Está previsto.

E essa normalidade é atribuída ao quê?
De certo ponto de vista, aquilo pode ser considerado um tipo de saúde mental. Porque você, sem dúvida, tem um nível de tormento individual, de angústia, muito menor do que o neurótico médio. Mas, geralmente, aquele tipo de normalidade é construída de maneira extremamente sólida e eficiente em cima de um vulcão adormecido. 

Pensando dessa maneira, uma neurose é sempre interessante. 
Somos todos neuróticos, em tese. Graças a Deus, realmente normais são muito poucos. Somos todos neuróticos. Mais loucos do que nos imaginamos – loucos, digo psicóticos –, e em certo número, somos todos, enquanto neuróticos, capazes de ser perversos de vez em quando. O problema mais interessante não é o de viver tranquilo, é o de ter uma vida interessante. Isso que é importante. Inclusive, a que uma psicanálise se propõe? Se propõe a tornar a vida de alguém mais interessante. Não garanto que os meus pacientes venham, sei lá, a sofrer menos ou a ter uma vida mais tranquila. Aliás, o que eu espero é que tenham uma vida mais interessante.

Existe algo como uma cura ou alta, do ponto de vista da psicanálise, para os pacientes?
Existe, mas é uma transformação. Porque na medicina, em tese, curar significa trazer você ou levar você a uma espécie de volta à situação anterior. Quer dizer, você está com gripe, você quer ficar como antes da gripe. No campo “psi”, isso não existe. Você tem uma depressão, você não vai poder voltar ao que era antes da depressão. Pode se tornar outra coisa, que não é nem a depressão que você tem agora, nem o que você era antes. O processo é transformador. Então, “curar” é sempre um pouco problemático. E, além do mais, a apreciação é subjetiva, porque, afinal, é o paciente quem vai dizer que está melhor ou que está suficientemente bem para poder, por exemplo, parar um tratamento. A apreciação é dele. Posso verificar que você não tem mais febre, que você não tem mais um tumor. Tudo bem: não tem mais, não está lá. É muito diferente.

Quem faz análise geralmente fala que todo mundo tem que fazer. E quem não faz, fala que não é assim. Como é, na verdade? 
Acho que não é verdade que todo mundo tem que fazer. Acho que é um equilíbrio complicado, uma alquimia complexa. Não sei nem se a gente pode dizer que todo mundo pode fazer. “Poder”, do ponto de vista de ter, sei lá, isso a grande maioria pode, tem a possibilidade de fazer uma análise, mas é preciso uma predisposição subjetiva. É um equilíbrio curioso, porque é tempo, é uma complexidade na vida. Não é necessariamente penoso. Pode ser extremamente interessante; e deveria ser. Teve uma época em que estava na moda pensar que uma análise deveria ser necessariamente um processo penoso e angustiante. Que, aliás, se você não se angustiasse, isso demonstraria que você não estava tocando nas questões importantes. Pode ser um processo divertido – divertido, além de interessante, no sentido de que um paciente e um analista podem tranquilamente rir em uma série de circunstâncias. E não é raro que seja um processo em que o cara espera o dia da sua sessão ansiosamente.

Você faz análise?
Neste momento, não. Minha última análise foi nos Estados Unidos. Faz bastante tempo que não me reanaliso. Deveria acontecer daqui a pouco, aliás.

Como funciona com você?
São situações assim, na verdade, na minha idade – não sei se tem muito a ver com idade, mas, enfim – houve pessoas com as quais eu fiquei a fim de fazer uma fatia de análise. Porque eu queria ver, queria ouvir uma coisa diferente do que já tinha ouvido. Pessoas que justamente não eram da minha formação. Hoje, provavelmente – coisa que vai chocar a maioria dos meus colegas –, acho que eu faria um ano de psicoterapia junguiana, me interessaria.

Eles ficariam chocados de que forma?
Ah, porque a maioria dos meus colegas freudianos – lacanianos nem se fala – não iria entender; é como se eu dissesse que vou me confessar com alguém de outra denominação. Tipo: “Vou parar de ir à missa. Agora vou à mesquita no domingo”. Ou, então, começo a frequentar a sinagoga no sábado. Em regra, é bem assim.

Você acredita ser mais flexível do que eles?
Não, não. Não é que acredito, eu sei que sou muito mais flexível. Mas eles não chamam isso de flexível, porque parece uma coisa positiva. Acho que eles consideram que tem uma dívida específica com a disciplina. Acho que eu tenho uma dívida com a psicanálise. Com o desejo, sem dúvida, de Freud muito mais do que com a doutrina de Freud. Me interessa tudo o que saiu do desejo de Freud, inclusive Jung, por exemplo. E mesmo coisas que não saíram do desejo de Freud, porque tem um monte de psicoterapeutas. Fiz psicoterapias rogerianas (método de Carl Ransom Rogers, 1902-1987) e companhia, que não são propriamente pós-freudianas, e achei superinteressante.

Uma, das muitas questões discutidas na série, é que ninguém gosta de ser mudado... 
Isso. A gente passa a vida inteira circundado por pessoas que têm o projeto de nos moldar. Na hora, pode até parecer normal, mas é um saco, né?!  E isso continua. Mas na infância e na adolescência é muito mais, inclusive depois, até no trabalho. Você se lembra daquele filme bonito, Mestre dos mares? É uma história de Russell Crowe, que é comandante, e tem esses dois meninos de 13 ou 14 anos que, na verdade, são oficiais a bordo do navio. É um deles que comanda as baterias de bombardeio do navio. Eles são oficiais da Marinha! Um deles perde um braço e fica lá sem braço. Sobrevive. O espectador médio hoje vê aquilo e não entende. Não processa como sendo normal. Você entrava na escola militar de guerra aos 12, 13 anos, fazia os seus cursos, passava, saía. Valeu. Um aprendiz saía de casa aos 7 anos, na França da Idade Média. Se eu era marceneiro, o meu filho se destinava à marcenaria – naquela época, o que se previa era a reprodução; então, aos 7 anos, o meu filho ia aprender a ser marceneiro. Mas não podia aprender comigo, porque eram inteligentes, eles entendiam que não era com os pais que se aprende. Então, eu tinha que mandá-lo para outro marceneiro dentro da confraria, mas não era na mesma cidade. Era 600 km, 700 km... Eu ia rever meu filho dez anos depois, formado. E ninguém morria. Você vai dizer isso para uma mãe hoje?

Você diz em relação à superproteção extrema, não? 
Nós somos totalmente infantólatras e a infantolatria é um dos grandes traços da contemporaneidade. E dizer que as crianças são capazes de grandes crueldades, isso é uma coisa que hoje é quase um escândalo. A criança pode ser extremamente agressiva. Não tenho uma simpatia, a priori, por crianças. Acho que crianças são seres cruéis, extremamente cruéis, capazes das maiores maldades. Freud dizer em 1905 que as crianças tinham uma sexualidade era um negócio! Como? As pessoas não viam as criancinhas se masturbando em casa?

A grande maioria não quer enxergar isso... 
Não quer, absolutamente. A infância continua sendo uma idade totalmente idealizada. Aliás,  continuamos, cada vez mais, tentando criar uma idade durante a qual as crianças, esses seres, não vão ter preocupações de nenhum tipo. Bom, claro que isso funciona como pode, mas a nossa idealização da criança é muito grande, muito forte.

E quem resolve não seguir por esse caminho recebe muitas críticas... 
Sim, claro. Imediatamente. Mas a gente não pode se queixar tanto assim, no fundo, porque, sobretudo a partir dos anos 1970, progressivamente, a sociedade ocidental criou uma espécie de ideologia positiva da diferença. Tanto que a diferença parece ser ou é apresentada como um valor em si. Por exemplo: é bom que o ambiente de trabalho seja repleto de diferenças étnicas e o caramba, pessoas de todos os tipos, porque essa inclusão vai – e agora tem toda uma justificação positiva – ter um efeito positivo na decision making. Porque, claro, vão participar pessoas que pensam, sentem e veem o mundo de maneiras tão diferentes. Isso é realmente muito novo. Se falasse isso em qualquer empresa nos anos 1950 ou 1960, iam achar que você estava louco. Então, certamente a margem de convivência das diferenças aumentou muito. Hoje não é, pelo menos nas grandes cidades do Ocidente, impossível ser homossexual, não é impossível conviver com um casal homossexual. Até os anos 1980, era tipo aquela política Clinton: “Don’t ask, don’t tell”. Mas você não imaginava chegar ao seu escritório e colocar a fotografia de um namorado ou namorada do mesmo sexo em cima da mesa em um porta-retratos. Não, você não ia fazer isso não.