sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Praticamente uma pessoa


Por Juliana Zambelo
Ilustração: Guilherme D'Arezzo
Da Revista Vida Simples

O ser humano sempre teve dificuldade de ver o mundo por um ponto de vista diferente do seu. Fazemos isso como indivíduos, julgando amigos e até quem não conhecemos por meio de nossos valores pessoais. E fazemos isso como espécie, impondo nosso modo de vida e nossas vontades aos outros animais - inclusive aos nossos bichos de estimação. Em meio a todo o amor e conforto que damos para eles, embutimos uma série de cuidados e hábitos que fazem sentido apenas para nós, humanos. Algumas vezes, com a melhor das intenções, provocamos até mal-estar e sérios problemas de saúde e comportamento.

Essa transferência de necessidades e vontades humanas para os animais é chamada antropomorfismo, mas é popularmente conhecida como humanização. Segundo Rúbia Burnier, veterinária e terapeuta comportamental de animais, essa é uma tendência antiga que vem se intensificando rapidamente nos últimos anos. "Das últimas duas décadas para cá, a humanização passou a ser institucionalizada, porque o comércio aposta muito nessas projeções humanas das nossas necessidades para os animais. Há uma pressão do mercado hoje para que cada vez mais a gente humanize o animal", diz.

Essa pressão não é pequena: vem de um mercado que cresceu 16% no Brasil em 2012, faturando R$ 14,2 bilhões, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet). Esses valores incluem produtos como ração, roupas, acessórios, brinquedos, remédios e serviços como banho, tosa, hotel e passeadores. Somos o segundo país que mais gasta com seus bichos de estimação, atrás apenas dos Estados Unidos.

Para Larissa Rüncos, veterinária especialista em comportamento, a humanização tem dois lados. A face positiva é a empatia. "A pessoa vai visualizar sentimentos ou emoções humanas nos animais, e por isso tratar bem." A negativa aparece quando o animal é tratado como um ser humano - muitas vezes como um bebê - e tem seu comportamento instintivo desconsiderado e muitas vezes até repreendido. Quantas vezes não vemos cães impedidos de correr e rolar na grama para que não se sujem?


Menos água e sabão

Entre as atitudes muito comuns hoje em dia, são equívocos os banhos semanais e o colo constante. Larissa afirma que banhos seguidos são prejudiciais para gatos e cachorros. Para ela, a não ser que o animal tenha uma condição médica que exija isso, ele não deve tomar banho toda semana. "Você tira toda a característica de cheiro e oleosidade da pele, que para eles é muito importante. Isso atrapalha o cão do ponto de vista comunicativo, ele se sente descaracterizado como indivíduo, e pode levar a problemas de pele por tirar a proteção natural do pelo", explica a veterinária. Após o banho, o cachorro leva dias para recuperar seu odor próprio, e quando finalmente está conseguindo, vai novamente para o sabão. Não existe uma frequência ideal de banhos para todos os animais; isso vai depender
do tipo de vida que ele leva e do local onde vive. Mas, em geral, a veterinária recomenda um por mês. "Se a gente quer ter cachorro, tem de respeitar que ele tenha um cheiro próprio."

Para os cães, colocar perfume em seu pelo após o banho é um crime. "Eles têm uma capacidade olfativa muito maior do que a nossa, então, para um perfume ser sentido por nós, para o animal ele vai estar muito forte." Com isso, ele fica impedido de farejar coisas e de se guiar pelo olfato, que é uma das grandes vantagens e alegrias de ser um cachorro. Gatos também sofrem com a descaracterização de um banho, em especial se vivem em um ambiente com outros felinos. "O gato que volta do banho não é mais reconhecido como membro do grupo; você quebra totalmente o vínculo entre eles", afirma Larissa.


No chão

Os bichos são fofinhos, lindinhos, dá vontade de pegar no colo e ficar apertando o dia inteiro. Mas, para o bem deles, precisamos aprender a nos conter. Faz mal para todos esses animais, ficar grudado no seu dono ganhando carinho o tempo inteiro.

Entre os problemas de comportamento que podem surgir desse hábito está a agressividade contra outras pessoas e animais. Em alguns, pode gerar também possessividade e ciúme. "Essa humanização cria uma dependência muito grande. Aumenta a ansiedade deles e a falta de função - o animal não tem mais função além de promover afeto. Aí começam a surgir a ansiedade de separação, a síndrome de abandono, comportamentos compulsivos", diz Rúbia Burnier. "Estamos em uma época de muita carência, as relações estão difíceis, as pessoas estão estressadas. O animal promove de forma muito simples e incondicional essa troca afetiva, e aí as pessoas acabam se perdendo."

Também os gatos sofrem com isso. "É muito comum que o gato não goste tanto que o peguem no colo, a característica da espécie é de não gostar de ser pego, mas a primeira coisa que as pessoas fazem quando chegam em casa é pegá-lo. Ele tolera, mas é uma coisa agressiva para ele", diz Larissa.

Alimentação é também um problema apontado pelos especialistas. Temos dó dos bichinhos comendo só ração pela vida e sofremos quando eles choram no pé da mesa, pedindo um pedaço daquela coisa gostosa que estamos comendo. Mas precisamos ser fortes. Segundo Larissa, dar aos animais um pouco da nossa comida pode gerar problemas como obesidade e pancreatite. Gelson Genaro, especialista em comportamento de felinos, acredita que não há problema em alternar a ração com comida - desde que seja preparada especialmente para o animal, como arroz com batata, cenoura e carne, por exemplo. Não devemos, nunca, dar comida temperada ou doces e chocolates.

Assim como buscamos a companhia de outros seres humanos, o contato com outros da mesma espécie é essencial para os animais. A principal maneira de socializar um cão que mora sozinho é levá-lo para passear. Para eles, farejar as fezes e urina dos outros animais na rua já é uma forma de comunicação. Também dá para levá-los à casa de amigos que tenham cães saudáveis e dóceis, por exemplo. O ideal é que essa socialização seja feita quando eles ainda são filhotinhos. Depois disso, pode acabar estressando ainda mais  oanimal. Em geral, é muito difícil para um animal adulto aceitar outros no espaço dele. "O cão que não for socializado na infância pode não aprender a se comunicar com outros cães, temer todos, ser antissocial, e isso gera uma reação em cadeia que pode levar o dono a parar de levar o cão para passear", afirma Larissa.


A vez dos gatos

Até hoje, a população de cães domésticos no Brasil ultrapassa a de gatos, mas essa relação está se invertendo. Em todo o mundo e também por aqui, vem aumentando o número de pessoas que preferem a companhia dos bichanos, seja por eles se adequarem melhor a espaços pequenos, por não exigirem passeios diários ou por lidarem bem com a solidão enquanto os donos estão trabalhando. Por isso, os gatos até esse momento sofreram menos com a humanização. Mas, agora que o número de felinos está crescendo, é preciso ficar mais atento a isso, diz Rúbia. "O cachorro incorpora mais o nosso estilo de vida. 

Já o gato se preserva mais, até porque ele não entende muita coisa do nosso universo social", fala a veterinária. "Por outro lado, ele tem uma parte sensorial muito desenvolvida, que é a capacidade de ter percepções do que pode estar para acontecer. Ele tem uma sensibilidade incrível para mudanças de humor e estresse no ambiente". Estresse que ele pode acabar incorporando. Larissa acredita que os gatos sofrem muitas vezes porque seus donos não conhecem suas necessidades. "As pessoas são mais negligentes com eles. Elas acham que o gato passar o dia inteiro no armário é normal, acham fofo, mas um gato que se esconde o dia inteiro não está bem. Ele pode estar ansioso ou frustrado."


Ambiente rico

Gelson Genaro aponta o confinamento a ambientes pequenos e sem estímulos uma das principais fontes de sofrimento para os bichanos. "O gato tolera melhor morar em um espaço pequeno, até porque ele dorme muitas horas, mas isso não quer dizer que eu possa prendê-lo num espaço minúsculo e que ele não tenha necessidades básicas a ser atendidas." Essa situação pode gerar desconfortos como arrancar
os próprios pelos ou o estresse por lambedura, quando ele fica se lambendo exageradamente.

O gato que vive em apartamento e passa muitas horas sozinho precisa, então, do que Gelson chama de uma rede de novidades ou enriquecimento ambiental: brinquedos e equipamentos para se distrair e se exercitar. Ele também deve ter acesso a diferentes ambientes da casa. Quanto a roupinhas, só vale se for uma necessidade do animal, no frio, por exemplo. Se for apenas algo bonitinho, pode incomodar. Isso vale também para cães.

A regra geral para a convivência com qualquer espécie é o conhecimento de suas características e a observação. Nos mandamentos da posse responsável da Associação Humanitária de Proteção e Bem-Estar Animal (Arca Brasil), respeito é uma palavra importante. "Como as crianças, os animais precisam de contato e observação. O dono deve estar atento e disponível para o outro", aconselha Marco Ciampi, presidente da Arca. "E, para qualquer dúvida, vale uma visita ao veterinário", afirma ele.

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