terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Texto Otimista de Fim de Ano


Por Duanne Ribeiro
Do Digestivo Cultural

Uma efeméride logo desimportante, pois se encerra 2013: No Caminho de Swann, do escritor francês Marcel Proust, completa 100 anos. Não vou falar do livro aqui, mas é melhor aproveitar o festejo do centenário enquanto se pode. Supõe-se no jornalismo que datas fechadas geram pretexto para abordar certos temas - 123, não; 202, não; 100, sim - o tempo jornalístico é assim, ou imediatista (pontual e retilíneo, nos casos mais atraentes) ou frívolo (desenhando extensos círculos). É melhor aproveitar; ou teremos de esperar cinco, dez, cinquenta anos para isso e será muito tempo perdido. Eu quero apenas ressaltar um único trecho do livro, o que deve ser equivalente à relevância que lhe resta nessas semanas derradeiras.

O personagem do título, Charles Swann, está apaixonado. Porém é descaso o que recebe em troca: seu amor avançava e agora apodrece. Decide-se então terminar o relacionamento, cortar o mal pela raiz, como se diz. O narrador nos avisa: podia até ser que cortasse o mal, mas qual raiz é essa que cortaria - quiçá a própria. O erro de Swann era crer que em um estado dado de coisas apenas um elemento se veria retirado; o equilíbrio geral permanecendo o mesmo. No entanto, a exclusão desse único ponto implicaria em uma configuração distinta. Se alcançou uma paz sob o desprezo, não implica que sem fonte de desprezo a paz ainda terá pernas. É o defeito que sustenta o edifício inteiro, como diria Clarice Lispector.

(Aliás, essa frase da Clarice, nessa época em que outro ritual circular ocorre - as listas de metas para o ano novo - ela pode ser curiosa. Uma lista de que defeitos queremos manter. Quais precisamos manter. Quais desejamos ganhar pra nós.)

Se é assim, sugeriríamos a Swann a imobilidade? Que seu amor se tornasse como que uma terceira perna, algo que lhe impedisse andar, mas fizesse de si um tripé estável, conforme escreve Clarice pela boca de GH. Mas não seria essa decisão de maneira similar a inclusão de um fator, também um toque de terremoto? Antes a revolta impotente, agora a resignação, cada qual um equilíbrio, um modo de pôr-se no mundo. A precaução do narrador tem esse aspecto inesperado: aceitar um estado de coisas é também alterar esse estado de coisas, pela alteração de nossa posição relativa. Já que não faz diferença, sugeriríamos a mudança impertinente?

Resta uma conclusão complementar: se o cataclismo vale para cada perda e para cada empate, vale também para cada conquista. Uma vitória não acrescenta uma gota eufórica nas nossas poças de alegria; remaneja o terreno inteiramente, nos põe em uma situação na qual "vitória" pode subverter-se em outro sentido. Para trás e para diante, girando no mesmo lugar, o novo te oprime.

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Uma efeméride desimportante per se: Yes Man, filme dirigido por Peyton Reed e protagonizado por Jim Carrey, completa cinco anos de lançamento. Eu o reassisti há pouco tempo, por acaso, em um quarto de hotel. O jornalismo em geral apaga as circunstâncias em que chega aos produtos culturais que aborda. Não obstante, é fácil apostar que são determinadas por estruturas comerciais. Nesta sexta deste mês é apropriado tratar de uma peça, filme, show, porque acontece agora, depois a próxima sexta, a próxima sexta - a próxima sexta: há algo da felicidade cretina que temos os habitantes do cotidiano na prática jornalística. Assim sendo, eu não poderia tratar de Yes Man; mas vou, no sentido de extrapolar suas premissas até um ponto insustentável, provavelmente imprevisto pelos autores.

O protagonista, Carl, adere a um programa de autoajuda que consiste na abertura a todo tipo de oportunidade. Seja qual for, a atitude é dizer sim. Ir ao trabalho no sábado? Sim! Aulas de violão? Sim! Site de casamento com mulheres árabes? Sim! - a sucessão de aceites leva Carl a lucros insuspeitos, períodos de "vida intensa", perspectivas ampliadas em vários âmbitos. A tradução brasileira perde o sentido do título: "Sim, Senhor" alcança o assertivo, não o existencial: ser um Homem Sim em vez de um Homem Não é o que nos garantiria o sucesso. Raso, né? Tipo Paulo Coelho: "O universo conspira a nosso favor". Mas tem sua eficiência, certamente.

Alguém poderia criticar os procedimentos ideológicos da fábula de Jim Carrey: o tempo está sendo mistificado. Ir ao trabalho e conseguir benefícios imediatos por parte do chefe - a espera foi apagada. Fazer aulas de violão e logo apertar fácil o primeiro acorde, depois, salvar um suicida com uma canção - o esforço sumiu (eu apostaria de três a seis meses para que ele pudesse tocar a música que toca; ou bem mais, já que canta junto). Além disso, as atividades não o sobrecarregam jamais, há espaço para tudo, o esgotamento é impossível. Tais falsidades ocorrem - mas é essa justamente a moral do filme. "Ter de esperar", "quanto esforço isso custará", "estar esgotado" podem ser desculpas fáceis. Escudos, rotinas, saídas de emergência.

A ética de Carl é experimental, ele está em movimento contínuo. Isso nos permite retomar a conclusão final que tivemos a respeito da historieta de Swann. Se uma adição mínima remodela todo o território, isso significa que a desesperança é um sentimento principalmente ingênuo. Seja qual for o seu estado, não descartar um evento besta, não deixar pra lá uma chance de menos, não desanimar uma só vez - as irrelevâncias podem revirar tudo, e você estará em uma nova casa, cidade e país, o mundo no fim das contas girando engraçado. O novo te redime.

Claro que, no filme, o que temos é uma versão domesticada do novo. Os trilhos da narrativa garantem que sejam poucas opções e que estejam em ordem. Em geral, não estamos em enxurrada? Passar na frente de um mural de universidade daria a nós a obrigação de fazer inglês, alemão e francês (com professores nativos), ter aulas de música, alugar um apartamento de república, participar de uma plenária estudantil, participar de uma pesquisa de mestrado. Andar no centro paulistano, teríamos de comprar ouro, comer churrasco grego, assistir a um vídeo dentro de um cinema pornô. Estamos em enxurrada. (Uma experiência curiosa seria anotar todas as oportunidades que você nega diariamente, arbitrariamente.)

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Parece haver uma linha de força singular nas obras recentes de Woody Allen: nós não estamos no controle. A que mais claramente a transmite é Tudo Pode Dar Certo (2009). Nesse caso a tradução também prejudica a compreensão. O original diz tudo: Whatever Works. Não se trata da esperança boba do título brasileiro: não se sabe se alguma coisa vai dar certo ou não, só que alguma coisa terá de ser feita, e o que será feito? O que funcionar. Nem tampouco o desalento e preguiça em "a gente faz o que pode". Somente: a gente faz. O que ficar, ficou, o que der, deu.

A mesma ideia percorre de jeitos diferentes Blue Jasmine (2013), Para Roma com Amor (2012), Meia Noite em Paris (2011) e Você vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos (2010). Considere, por exemplo, o amor romântico, retratado geralmente como uma via de sentido único. Nessas últimas produções de Allen, o amor se vê provido de curvas, rotatórias, elevados, túneis, ciclovias, protestos, ruas fechadas para pedestres. Em Whatever Works, os casais iniciais vivem suas felicidades até que acabam, formam-se outros. Em Para Roma com Amor, a moça recém-casada vive seu desejo por algumas horas. Em Blue Jasmine, um amor se interrompe por outro, que dura pouco, e então se regenera. A frase amorosa sem pausa é enriquecida de vírgulas, parênteses, aspas, pontos finais, elipses, novos parágrafos.

A vida acontece, é isso. As grandes projeções - elas são grandes farsantes. É o que indica Meia Noite em Paris quando problematiza as idealizações do passado (e, por conseguinte, também das do futuro). Blue Jasmine acompanha duas vidas quebradas ao meio, os sonhos ficaram pra trás, terão de fazer outra coisa. Em You Will Meet a Tall Dark Stranger (título original de Você vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos), o alto e escuro estranho é a morte, fim concreto das aspirações com rei na barriga. Nós estamos metidos nisto até o pescoço e nós não estamos no controle.

Carl e Swann, quando falávamos sobre eles ainda havia essa crença subjacente: é da ordem do sujeito decidir o rumo, algum rumo (e talvez ainda seja, mesmo que em medida menor). Mas e se os rumos vierem veloz e violentamente, descendo pela goela, nos arrastando adiante?

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Em alguns momentos, o jornalismo atinge o nível do arquétipo: nas notícias que não são notícias, que apenas confirmam o mundo. Cumprimos o ano e lá estão as pessoas (as mesmas pessoas?) comprando de última hora presentes de Natal (é o mesmo Natal?), se engarrafando para ir à praia no Ano Novo (o velho ano novo?). Se as redações fechassem e vídeos antigos fossem exibidos, ninguém notaria. É um tempo parado. Nada acontece, só o que já aconteceu. A retrospectiva por fim comprime 52 semanas em 60 minutos. Estamos em dia. 2014 está já esquartejado: logo Carnaval, logo Páscoa, logo Copa. Abre-se dessa forma o espaço para textos otimistas de fim de ano.

Este é um texto otimista de fim de ano. Diz: tudo é possível. Mas tudo, tudo mesmo.



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