quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Uma sequência de atos

Na capa de um dos livros mais famosos da autora, persiste a dúvida em um retrato ambíguo: Um menino e uma menina? Ou não?


Por Guacira Lopes Louro*
Da Revista Cult

Uma garota indisciplinada que não seguia regras e costumava contestar os professores. Uma garota-problema, ainda que reconhecida como inteligente. Assim Judith Butler se lembra de ter sido caracterizada na infância. Por matar aulas e desobedecer às ordens, o diretor da escola advertiu seus pais que ela poderia vir a ser uma delinquente. Havia que desviá-la do mau caminho, e o corretivo encontrado foi obrigá-la a ter aulas particulares com o rabino. No entanto, contrariando o que pensavam, o castigo pareceu-lhe “uma coisa formidável”. Ela adorava ouvir o rabino, fazia-lhe as mais incríveis perguntas e, acolhida por ele, discutia temas improváveis para quem estava apenas entrando na adolescência.

O caráter inquieto, um toque de rebeldia, a constante desconfiança em relação ao que é posto como estabelecido e definitivo parecem ter se tornado seus traços mais marcantes. Se a menina gostava de fazer perguntas, a mulher continuou se mostrando uma questionadora incorrigível; a intelectual passou a pôr em xeque “verdades” consagradas; e a escritora… Bem, seus textos tornaram-se mais famosos pelas indagações que propõem do que pelas soluções ou respostas que eventualmente fornecem.

Avessa a palavras de ordem, essa mulher, dita feminista, também não se absteve de pôr em questão algumas das consagradas proclamações do feminismo. Em 1990, ela lançou Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade [Gender Trouble], um livro pleno de questionamentos e provocações que até hoje é, provavelmente, sua obra mais conhecida. Na capa da edição original, da Routledge, uma foto antiga de duas crianças trajando vestidos. Um menino e uma menina? Ou não? Dizem os créditos que se trata do retrato de duas irmãs, uma delas com “jeito” de garoto e a outra com aparência mais “feminina”. A foto perturba o olhar. Perturba a noção de gênero. Sugere gender trouble.

O que é gênero afinal? É algo com que nascemos? Algo que nos é designado definitivamente, de uma vez por todas? Algo que aparentamos, por ações, gestos, comportamentos, moda? Como se faz um gênero? Como alguém se torna um sujeito de gênero? E quando isso acontece? O que sexo tem a ver com gênero?

Judith Butler mergulhou nessas questões e em muitas outras. Ensaiou respostas, mas longe de se mostrar satisfeita, continuou, ao longo de vários livros e incontáveis artigos, entrevistas e palestras, refazendo as perguntas, complicando o jogo, invertendo a lógica.

Claro que ela leu Simone de Beauvoir e, como tantas outras pensadoras, também se remete à clássica afirmação de que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Contudo, sendo uma atravessadora de disciplinas e de áreas, passou a combinar leituras feministas com as de teóricos e teóricas dos mais diversos matizes e é com o aporte desse conjunto heterogêneo que produz suas reflexões, muitas vezes na contracorrente ou até a contrapelo daquilo que leu. É para o “tornar-se mulher”, para o devir que Beauvoir anunciara, que ela volta seu interesse. Entende que esse é um processo contínuo do qual não se pode precisar o fim. Talvez nem mesmo a origem. Mais do que isso, acredita que é um processo do qual nunca se atingiria a meta. E se isso é pensado sobre a mulher, também pode ser pensado sobre o homem. “O gênero”, diz Butler, “é a contínua estilização do corpo, um conjunto de atos repetidos, no interior de um quadro regulatório altamente rígido, que se cristaliza ao longo do tempo para produzir a aparência de uma substância, a aparência de uma maneira natural de ser”.

Tornar-se um sujeito feminino ou masculino não é uma coisa que aconteça num só golpe, de uma vez por todas, mas que implica uma construção que, efetivamente, nunca se completa. Butler complica a noção de “identidade de gênero”. Afirma que gênero não é algo que somos, mas algo que fazemos. Não é algo que se “deduz” de um corpo. Não é natural. Em vez disso, é a própria nomeação de um corpo, sua designação como macho ou como fêmea, como masculino ou feminino, que “faz” esse corpo. O gênero é efeito de discursos. O gênero é performativo.

É com apoio em Austin e Derrida que Butler desenvolve a noção de performatividade de gênero. Em Austin, ela vai buscar inspiração na teoria dos atos de fala (que distingue entre os enunciados constatativos, aqueles que descrevem um fato, uma situação, e os performativos, aqueles que, ao serem proclamados, produzem, isto é, fazem acontecer aquilo que proclamam). De Derrida (que desconstruíra em parte a teoria de Austin), ela toma emprestadas noções como citacionalidade e reiteração. Relê essas teorias de um modo próprio e explora sua potencialidade para pensar o gênero e o sexo.

“Interpelação fundante”

O anúncio “é uma menina” ou “é um menino”, feito por um profissional diante da tela de um aparelho de ultassonografia morfológica, põe em marcha o processo de fazer deste ser um corpo feminino ou masculino, acredita Butler. Esse ato, de caráter performativo, inaugura uma sequência de atos que vai constituir alguém como um sujeito de sexo e de gênero. Para ela, mais do que a descrição de um corpo, tal declaração designa e define o corpo. O anúncio pode ser compreendido como uma espécie de “interpelação fundante”, mas, adverte ela, nada está resolvido de forma absoluta neste momento; a interpelação precisa ser “reiterada por várias autoridades, e ao longo de vários intervalos de tempo, para reforçar ou contestar esse efeito naturalizado”. Um grande investimento vai ser empreendido para confirmar tal nomeação. Ela não está absolutamente garantida. Precisará ser repetida, citada e recitada incontáveis vezes, nas mais distintas circunstâncias. E poderá, igualmente, ser negada e subvertida. O devir pode tomar muitas direções. O terreno do gênero é escorregadio e cheio de ambivalências.

É interessante pensar que o corpo vem a existir através de um discurso – generificado – que se faz sobre ele. Admitindo esse argumento, parece razoável supor que não há corpo que não seja, desde sempre, generificado, isto é, marcado por, ou feito no, gênero. E é por vias como essa que Butler acaba perturbando a distinção sexo/gênero. O sexo, assim como o gênero, é efeito de discursos.

Ela entende que a nomeação de um corpo implica, ao mesmo tempo, o estabelecimento de fronteiras e a repetição de normas de gênero. Impossível esquecer que essa nomeação é feita “no interior de um quadro regulatório altamente rígido”, o da heterossexualidade. Tudo isso, contudo, parece sugerir um determinismo ou uma estabilidade que não combinam com a pensadora dita inquieta e desobediente. Quais as possibilidades de desvio? Como se perturbariam as normas? Onde se encontraria espaço para a subversão? Como ou quando ocorreriam rupturas, repúdios?

Butler discorre sobre esses temas em muitos de seus textos e palestras. Mas talvez seja particularmente expressiva quando conta, num depoimento gravado para a televisão francesa, o quanto e como sua família judia buscava integrar-se à sociedade norte-americana. Na tentativa de incorporar as normas de gênero daquela sociedade, lembra que sua mãe, seu pai e também seus avós buscavam se aproximar mais e mais das referências de masculinidade e de feminilidade então predominantes, aquelas que representavam, na sua percepção ou na percepção da época, o que seria desejável. Hollywood era sua referência. Os astros e as estrelas hollywoodianos pareciam expor ou representar as formas mais acabadas dos dois gêneros. Butler recorda, então, as tentativas e as falhas dos homens e das mulheres de sua família. E, ao narrar esse episódio, ela afirma, com veemência, que o fracasso é sempre possível; na verdade, acentua, “o fracasso talvez seja mais interessante”.

Performativos de gênero são repetidos constantemente. Citados e recitados em contextos e circunstâncias distintas; no âmbito da família, da escola, da medicina; na mídia, em suas mais diversas expressões; nas regulamentações da justiça ou da religião. Não obterão, contudo, exatamente os mesmos resultados. Os efeitos dos performativos são sempre imprevisíveis. A possibilidade de insucesso, que Derrida já demonstrara ao analisar a teoria de Austin, é explorada por Butler em sua reflexão sobre o gênero. A falha, que é intrínseca aos performativos, pode ser produtiva. É na possibilidade do fracasso que reside o espaço para a ressignificação e para a subversão no terreno dos gêneros e da sexualidade.

Mas tudo isso acontece por acaso ou por escolha dos sujeitos? Em outras palavras, alguém se empenha deliberadamente em fracassar? Ou tenta ser bem sucedido e fracassa? Serão os fracassos sempre subversivos? Aqui um dos pontos escorregadios e complexos do pensamento de Butler: a possibilidade de agência dos sujeitos. Ela afirma, em vários de seus textos, que o gênero é uma escolha, mas observa que essa não é uma escolha absolutamente livre. É impossível imaginar alguém que, colocado em algum lugar fora do gênero (onde?), seja capaz de escolher o que deseja “ser”. Uma vez que “alguém já é seu gênero, a escolha do ‘estilo de gênero’ é sempre limitada, desde o início”, como diz Sara Salih em seu livro sobre Butler. A possibilidade de agência é, portanto, sempre restringida. O sujeito pode, sim, interpretar as normas existentes; pode ressignificá-las, dotá-las de um significado distinto; pode, eventualmente, organizá-las de um jeito novo, ainda que isso seja feito de modo constrangido e limitado. Efetivamente, estamos sempre fazendo isso. Todos os sujeitos interpretam, de seu jeito, continuamente, as normas regulatórias de sua cultura, de sua sociedade.

Mas (e a adversativa é importante) aqueles e aquelas que não “fazem” seu gênero “corretamente” são, muitas vezes, punidos. Os desvios, a depender das circunstâncias em que acontecem, a depender de sua extensão ou intensidade, costumam implicar em danos simbólicos e físicos, morais e sociais. As falhas e desvios podem, por outro lado, se constituir em oportunidade para reconstruções subversivas da identidade; podem até mesmo, aposta Butler, se prestar a uma política de ressignificação dos gêneros.

O desprezo e o escárnio usados para nomear quem se desvia das normas de gênero podem ser revertidos. A designação ofensiva pode ser ressignificada. Ainda que os vestígios de um discurso de ódio não sejam completamente apagados, eles podem ser reconfigurados. A nomeação injuriosa pode ser reapropriada de forma afirmativa.

Normas de gênero podem também ser citadas em contextos distintos, exibidas de modo a expor, de forma radical, seu caráter fabricado e construído. É o que faz, por exemplo, uma drag queen. A drag se aproxima do objeto que imita e, ao mesmo tempo, o expõe e o critica. Pelo excesso e pelo exagero, escancara as normas de gênero e demonstra seu caráter artificial. Ela pode ser vista como um exemplo de subversão e também de possibilidade de agência. Mas (e de novo a adversativa) a figura da drag não será sempre, necessariamente, subversiva. Por vezes, as formas paródicas de gênero acabam por provocar, tão somente, o riso inconsequente. De algum modo domesticadas ou colonizadas no interior da matriz heterossexual, elas podem, mais uma vez, por vias outras, reforçar as diferenças e as hierarquias.

As normas de gênero acabam por se impor sempre, inexoravelmente? É possível driblá-las de algum modo? Quais as possibilidades e os limites para a agência? Quando uma reconstrução é efetivamente subversiva? Quando se constitui em renovada dissimulação das normas? A inquietude de Butler contagia.

*Guacira Lopes Louro é doutora em Educação. Autora de, entre outros títulos, Um corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer (Autêntica).

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