terça-feira, 5 de novembro de 2013

Tim-tim, Marcel Proust!


Por Mario Sergio Conti
Da Ilustríssima

RESUMO A série Primeiríssima Mão, em que a "Ilustríssima" adianta trechos de lançamentos vindouros, traz o início do primeiro tomo de "À Procura do Tempo Perdido". "Do Lado de Swann", cujo centenário se completa no dia 14, ganha nova tradução para o português, a sair pela Penguin/Companhia das Letras em 2014.

No próximo dia 14, será o centenário da chegada às livrarias parisienses de "Do Lado de Swann", o primeiro dos sete tomos de "À Procura do Tempo Perdido", de Marcel Proust. Multidões não sairão às ruas para, mascaradas com o bigodinho do romancista, fazer vigília no Ritz, onde ele pedia um frango inteiro, cerveja e inúmeras xícaras de café quando escrevia o seu livro.

Apenas alguns, em Londres, no Cairo, em Tóquio ou numa padaria nas Perdizes, brindarão à memória do grande artista. Foi ele quem aclarou as intermitências do coração, a mecânica dupla da memória, a força paralisante do hábito, a engrenagem da sociedade cujo fluido é medo e engano, a matéria dúctil do tempo que se perde e é dado aos seus leitores reencontrar.

Datado? Sem dúvida; vive-se na história. Mas, enquanto a enferrujada geringonça burguesa continuar a ranger e a moer mulheres e homens aos milhões, lá estará "À Procura do Tempo Perdido". Para compreender o que se nos passa nos dias de solidão de amor, o romance entre Swann e Odette.

Para analisar a política ao redor, a reação dos distintos ao caso Dreyfus. Para entrever o que de bom pode vir depois do ciclo do capital, uma sonata no salão da Duquesa de Guermantes. Com conhaque barato num copo ordinário: tim-tim, Marcel!

Quatro editores se recusaram a publicar "Do Lado de Swann". Havia motivos mundanos para tanto. Proust era tido como diletante. Não tinha profissão, nunca trabalhara, vivia em festas, herdara o equivalente a dezenas de milhões de reais com a morte dos pais. Publicara a suas custas um livro ilustrado, crônicas de jantares de grã-finos e traduções do caótico John Ruskin.

RITMO VEGETAL Houve também razões literárias. Ninguém entendeu o livro, a combinação de análise e narração, o desenvolvimento em ritmo vegetal, as mudanças cubistas de assunto de um capítulo para o outro, os hiatos abissais no enredo. Mas Proust sabia o que estava escrevendo. Quer dizer, tinha uma noção incerta do que fazia: imaginava que escrevia um romance em dois livros. Depois viraram três, foram para cinco e acabaram em sete.

O mais famoso dos vetos à publicação foi o de André Gide. Proust sempre se queixou de que a "Nouvelle Revue Française", onde o autor de "O Imoralista" era editor, nem abrira o pacote com o original datilografado de "Swann". Mas Gide leu, sim, trechos do livro e estranhou sobremaneira algumas imagens proustianas, como as "vértebras" que apareciam na testa de uma personagem, a tia Léonie.

Proust acabou pagando para que uma nova editora, a de Bernard Grasset, o publicasse. Lentamente, o livro seguiu seu curso, o de amealhar espanto e admiração até se tornar uma obra-prima do modernismo. Gide veio a ler "Swann" inteiro. Escreveu então uma carta a Proust dizendo que a sua recusa inicial fora um dos maiores erros que cometera na vida. O rascunho da carta será leiloado no próximo dia 26, e a Sotheby's avalia que ele será arrematado por 150 mil euros.

O trecho traduzido a seguir é o comecinho de "Do Lado de Swann".

Nele, o narrador descreve o lusco-fusco entre insônia e sono, entre sono e sonho, entre sonho e realidade. Ao mesmo tempo, vai relembrando diversos dos quartos onde dormiu ao longo dos anos. O passado e o presente se condensam naquilo que ele escreve: "Um homem que dorme mantém em círculo ao seu redor o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos".

Proust comparou "Tempo Perdido" a uma catedral e a uma sinfonia. É útil ter essas metáforas em mente ao iniciar a sua leitura. A estranheza que se experimenta não advém da dificuldade do estilo do escritor, perfeitamente compreensível. É que a leitura da abertura do romance corresponde a ver uma catedral bem de perto. Ou a ouvir apenas os primeiros acordes da protofonia de uma peça musical majestosa.

Só com o recuo em relação à igreja, só com o desenvolvimento da sinfonia --para que se possa contemplá-las na sua inteireza, do começo ao fim-- é possível captar a inteligência do romance em plenitude. O espaço e o tempo precisam agir para que Proust viva.
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Quartos da minha vida
A reviravolta total nos mundos fora de órbita

Por Marcel Proust 
Tradução de Mario Sergio Conti

Por um longo tempo, deitei cedo. Às vezes, mal apagada a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que não tinha tempo de me dizer: "Adormeço." E, uma meia hora depois, o pensamento de que era tempo de procurar dormir me despertava; queria pousar o volume que acreditava ainda ter nas mãos e assoprar a luz; não cessara de fazer reflexões dormindo sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões haviam tomado um rumo um tanto particular; parecia-me que era de mim mesmo que o livro falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade de Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia durante alguns segundos ao meu despertar; ela não chocava a minha razão, mas pesava como escamas sobre meus olhos e os impedia de perceber que a vela não estava mais acesa. Depois ela começava a me parecer ininteligível, como os pensamentos de uma existência anterior depois da metempsicose; o assunto do livro se destacava de mim, eu estava livre para me deter nele ou não; logo recobrava a visão e ficava atônito de estar imerso numa obscuridade, suave e repousante para os meus olhos, mas talvez ainda mais para o meu espírito, ao qual ela aparecia como uma coisa sem causa, incompreensível, como uma coisa verdadeiramente obscura. Eu me perguntava que horas poderiam ser; escutava o silvo dos trens que, marcando as distâncias como o canto mais ou menos afastado de um pássaro na floresta, me descrevia a extensão do campo deserto onde o viajante se apressa em direção à próxima estação; e o pequeno caminho que percorre ficará gravado na sua lembrança pela excitação que ele deve aos lugares novos, aos atos inabituais, às conversas recentes e às despedidas sob a lâmpada estrangeira que ainda o seguem no silêncio da noite, e à doçura próxima do regresso.

Encostava suavemente minhas faces nas belas faces do travesseiro que, cheias e frescas, são como as faces da nossa infância. Riscava um fósforo para olhar meu relógio. Logo meia-noite. É quando o doente que fora obrigado a partir em viagem e a dormir num hotel desconhecido, despertado por uma crise, se alegra ao perceber sob a porta um raio do dia. Que felicidade, já é de manhã! Num instante os criados estarão de pé, poderá tocar a campainha, virão lhe prestar socorro. A esperança de ser aliviado lhe dá coragem para sofrer. Agora mesmo achou que ouvia passos; os passos se aproximam e depois se afastam. E o raio do dia que estava sob a porta desapareceu. É meia-noite; acabam de apagar o gás; o último criado partiu e será preciso passar a noite toda a sofrer sem remédio.

Readormecia, e às vezes só despertava por breves instantes, o tempo de escutar os estalos orgânicos das madeiras, de abrir os olhos para fixar o caleidoscópio da obscuridade e, graças a um brilho momentâneo de consciência, de experimentar o sono no qual estavam mergulhados os móveis, o quarto, o todo do qual eu era apenas uma pequena parte e a cuja insensibilidade voltava rapidamente a me agregar. Ou então, dormindo, havia regressado sem esforço a uma época para sempre passada de minha vida primitiva e reencontrado alguns dos meus terrores infantis, como o de que meu tio-avô me puxasse pelos cachos de cabelo, e que se dissipara no dia -- data para mim de uma nova era -- em que os tinham cortado. Havia esquecido esse acontecimento durante o meu sono, e reencontrava a sua lembrança assim que conseguia acordar para escapar às mãos de meu tio-avô, mas por precaução envolvia completamente a cabeça com meu travesseiro antes de retornar ao mundo dos sonhos.

Às vezes, como Eva nasceu de uma costela de Adão, uma mulher nascia durante o meu sonho de uma falsa posição de minha coxa. Formada pelo prazer que eu estava a ponto de experimentar, imaginava que era ela quem o oferecia. Meu corpo, que sentia no dela o meu próprio calor, tentava juntar-se a ela, e eu acordava. O restante dos humanos me parecia bem distante diante dessa mulher que eu havia abandonado há apenas alguns momentos; minha face ainda estava quente do seu beijo, meu corpo dolorido pelo peso do seu. Se, como acontecia algumas vezes, ela tinha os traços de uma mulher que conhecera na vida, iria me dedicar inteiramente a esse objetivo: reencontrá-la, como aqueles que partem em viagem para ver com os próprios olhos uma cidade desejada e imaginam que se pode experimentar numa realidade o encanto do sonho. Pouco a pouco a lembrança dela se esvanecia, eu esquecia a moça, filha de meu sonho.

Um homem que dorme mantém em círculo ao seu redor o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ele os consulta por instinto ao acordar e neles lê num segundo o ponto da terra que ocupa, o tempo que correu até despertar; mas a sua ordem pode se embaralhar, se romper. Se de madrugada, após uma insônia, o sono o surpreende durante a leitura numa postura demasiado diferente da que dorme habitualmente, basta o seu braço erguido para deter e fazer o sol recuar, e no primeiro minuto do seu despertar ele não saberá mais as horas, achará que acaba de se deitar. Se adormecer numa posição ainda mais insólita e inabitual, por exemplo numa poltrona depois de jantar, então a reviravolta será total nos mundos fora de órbita, a poltrona mágica o fará viajar a toda velocidade no tempo e no espaço, e no momento de abrir as pálpebras achará que está deitado alguns meses antes, noutra região. Mas bastava que, em minha própria cama, meu sono fosse profundo e descontraísse inteiramente o meu espírito para que este perdesse o mapa do lugar onde havia dormido e, quando eu acordava no meio da noite, como ignorasse onde me encontrava, nem sequer soubesse num primeiro instante quem eu era; tinha apenas, na sua simplicidade original, o sentido da existência tal como ele pode fremir no fundo de um animal; estava mais despido que o homem das cavernas; mas então a lembrança -- não ainda do lugar onde estava, mas de alguns onde morara e poderia estar -- vinha a mim como um socorro do alto para me retirar do vácuo de onde não poderia sair sozinho; em um segundo passava por séculos de civilização, e a imagem confusamente entrevista de lâmpadas a querosene, e depois de colarinhos de gola rebatida, recompunha pouco a pouco os traços originais do meu eu.

Talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor nos seja imposta pela nossa certeza de que são mesmo elas, e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento diante delas. O fato é que, quando acordava assim, com meu espírito se agitando para tentar saber, sem conseguir, onde estava eu, tudo girava em torno de mim no escuro, as coisas, as regiões, os anos. Meu corpo, entorpecido demais para se mexer, procurava, segundo a forma do seu cansaço, discernir a posição dos seus membros para daí deduzir a direção da parede, o lugar dos móveis, para reconstruir e nomear a moradia onde se achava. Sua memória, a memória de suas costelas, de seus joelhos, de seus ombros, lhe apresentava sucessivamente vários dos quartos onde havia dormido, enquanto ao seu redor as paredes imóveis, mudando de lugar segundo a forma do cômodo imaginado, turbilhonavam nas trevas. E antes mesmo que o meu pensamento, que hesitava na soleira dos tempos e das formas, tivesse aproximado as circunstâncias e identificado o cômodo, ele --meu corpo-- recordava para cada quarto o tipo de cama, o lugar das portas, o lado para que davam as janelas, a existência de um corredor, e isso junto com o que pensara ao adormecer e que reencontrava ao acordar. O lado anquilosado de meu corpo, procurando adivinhar sua orientação, imaginava-se, por exemplo, estirado ao longo da parede numa grande cama de dossel, e eu logo me dizia: "Ora, acabei dormindo antes que mamãe tenha vindo me dar boa-noite"; eu estava no campo, na casa do meu avô, morto havia muitos anos, e meu corpo, o lado sobre o qual eu repousava, fiéis guardiães de um passado que meu espírito não deveria jamais esquecer, me recordavam a chama da luminária de cristal da Boêmia, em forma de urna, suspendida no teto por pequenas correntes, a lareira de mármore de Siena no meu quarto de dormir em Combray, na casa de meus avós, em dias distantes que naquele momento eu imaginava atuais, sem deles formar uma imagem exata, e voltaria a ver melhor dali a pouco, quando de fato tivesse acordado.

Depois renascia a lembrança de uma nova atitude; a parede fugia noutra direção: eu estava no meu quarto na casa de Madame de Saint-Loup, no campo; meu Deus! são pelo menos dez horas, devem ter terminado de jantar! Devo ter prolongado demais a sesta que faço todos os finais de tarde ao voltar de meu passeio com Madame de Saint-Loup, antes de vestir minha casaca. Pois muitos anos se passaram desde Combray, quando, nos nossos regressos mais atrasados, eram os reflexos vermelhos do poente que eu via nos vitrais de minha janela. É outro tipo de vida que se leva em Tansonville, na casa de Madame de Saint-Loup, outro tipo de prazer que encontro ao sair apenas à noite, percorrendo ao luar esses caminhos onde antigamente brincava ao sol; e o quarto onde terei adormecido em vez de me vestir para o jantar, de longe o vejo ao regressarmos, atravessado pelo fogo da lâmpada, único farol na noite.

Essas evocações rodopiantes e confusas nunca duravam que alguns segundos; muitas vezes, minha breve incerteza do lugar onde me encontrava não distinguia melhor umas das outras as diversas suposições da qual ela era feita, assim como não isolamos, vendo um cavalo correr, as posições sucessivas que nos mostra o cinescópio. Mas eu tinha revisto ora um, ora outro, os quartos que havia habitado na minha vida, e acabava por me recordar de todos eles nos longos devaneios que se seguiam ao meu despertar; quartos de inverno onde, quando se está deitado, aconchega-se a cabeça num ninho que se tece com as coisas mais disparatadas: um canto do travesseiro, a parte de cima do cobertor, uma ponta de xale, a beira da cama e um número do "Débats Roses", que acabamos por cimentar com a técnica dos pássaros, calcando-as indefinidamente; onde num tempo glacial o prazer que se saboreia é o de se sentir separado do exterior (como a andorinha do mar cujo ninho fica ao fundo de um subterrâneo no calor da terra), e onde, com o fogo mantido a noite toda na lareira, se dorme num grande manto de ar quente e esfumaçado, atravessado pelos lampejos de brasas que se reavivam, espécie de alcova impalpável, de caverna cálida escavada no seio do próprio quarto, zona ardente e móvel nos seus contornos térmicos, arejada por sopros que nos refrescam o rosto e provêm dos cantos, de partes vizinhas à janela ou afastadas do fogo, e que esfriaram -- de verão onde se gosta de se estar unido à noite morna, onde o luar apoiado nos postigos entreabertos joga até o pé da cama sua escada encantada, onde se dorme quase ao ar livre como o pássaro embalado pela brisa na ponta de um raio de luz -- às vezes o quarto estilo Luís XVI, tão alegre que nem na primeira noite nele me sentira muito infeliz, e onde as pequenas colunas que sustentavam levemente o teto se afastavam com tanta graça para mostrar e reservar o lugar da cama; às vezes, ao contrário, era um quarto pequeno e de pé-direito tão alto, escavado em forma de uma pirâmide da altura de dois andares e parcialmente revestido de mogno, onde desde o primeiro segundo eu ficara moralmente intoxicado pelo cheiro desconhecido do patchuli, convencido da hostilidade das cortinas roxas e da insolente indiferença do pêndulo tagarelando alto como se eu não estivesse ali -- onde um estranho e impiedoso espelho de pés quadrangulares, barrando obliquamente um dos cantos do cômodo, escavava à força na suave plenitude de meu campo visual de costume um lugar imprevisto; onde meu pensamento, esforçando-se durante horas por se deslocar, por se expandir para o alto, a fim de tomar exatamente a forma do quarto e preencher até em cima o seu gigantesco funil, passava noites bem duras enquanto estava estendido na minha cama, os olhos erguidos, o ouvido ansioso, as narinas desobedientes, o coração palpitante: até que o hábito tivesse mudado a cor das cortinas, calado o pêndulo, ensinado a piedade ao espelho oblíquo e cruel, dissimulado ou expulso totalmente o cheiro de patchuli, e diminuído sensivelmente a altura aparente do teto. O hábito! criada hábil mas vagarosa, que começa por deixar nosso espírito sofrer durante semanas numa instalação provisória; mas o qual, apesar de tudo, é bem feliz de encontrar, pois sem o hábito, e reduzido a seus próprios meios, nosso espírito seria impotente para tornar um aposento habitável.


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