sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Pronto, falei


Por Jonathan Franzen
Da Revista Piauí

Karl Kraus foi um satirista austríaco, figura de proa na fecunda vida intelectual da Viena fin de siècle. Entre 1899 e 1936, ano de sua morte, editou e publicou a respeitada revista Die Fackel (A Tocha), da qual passou a ser o único colaborador a partir de 1911. Embora provavelmente tivesse odiado os blogs, seu periódico era uma espécie de blog que todos os intelectuais de expressão alemã – de Freud a Kafka e Walter Benjamin – julgavam necessário ler e comentar. Kraus era conhecido sobretudo pelos aforismos (“A psicanálise é aquela doença mental que se julga sua própria cura”, por exemplo) e, no auge de sua popularidade, atraía milhares de espectadores a suas palestras.

O problema é que Kraus é de difícil apreensão numa primeira leitura – e deliberadamente difícil. Era o flagelo do jornalismo descartável; para seus seguidores, que constituíam quase um culto, seu estilo denso e intricadamente codificado se apresentava como uma agradável barreira a ser ultrapassada, e os não iniciados que se retirassem. O próprio Kraus disse do dramaturgo Hermann Bahr, antes de atacá-lo: “Se ele entender uma única frase do meu ensaio, retiro tudo que escrevi.” Quem ler mais de uma vez as frases de Kraus irá descobrir que elas têm muito a nos dizer nesse momento histórico em que vivemos, saturado de meios de comunicação de massa, enlouquecido com a tecnologia, assombrado pelo apocalipse.

Eis aqui, por exemplo, o primeiro parágrafo de seu ensaio “Heine und die Folgen” [Heine e as consequências]:

Duas vertentes da vulgaridade intelectual: a rendição ao conteúdo e a rendição à forma. A primeira percebe apenas o lado material da arte. Tem origem germânica. A outra percebe de maneira artística mesmo o mais grosseiro dos materiais. E tem origem românica [francesa ou italiana]. Para a primeira, a arte é um instrumento; para a outra, a vida é um ornamento. Em qual desses infernos o artista prefere arder? Certamente escolherá viver entre os alemães. Pois embora eles tenham atado a arte ao Leito Maleável de Procusto[1] do seu comércio, também tornaram a vida sóbria, o que é uma bênção: a fantasia prospera, e cada homem pode enquadrar sua luz nas molduras estéreis das janelas. Só me poupem de fitas e adornos! Poupem-me desse bom gosto que lá delicia o olho e irrita a imaginação. Poupem-me dessa melodia da vida a interferir em minha própria música, que só se manifesta em meio ao burburinho do dia útil alemão. Poupem-me desse nível mais alto de refinamento universal a partir do qual é tão fácil observar que o vendedor de jornais em Paris tem mais encanto que um editor prussiano.



Primeira nota de pé de página: a desconfiança com que Kraus encara a “melodia da vida” na França e na Itália ainda tem seu mérito.

O que ele afirma aqui – que qualquer caminhada por uma rua de Paris ou Roma já seja, por si só, uma experiência estética – é confirmado pela atual popularidade da França e da Itália como destinos turísticos, e pelo tom de “podem me invejar” que empregam americanos francófilos e italianófilos ao anunciar seus planos de férias. Se a pessoa diz que vai para a Alemanha e não explica por quê, os outros se perguntam por que não viaja para algum lugar onde a vida seja bela. Ainda hoje, a Alemanha insiste em dar mais valor ao conteúdo do que à forma. Se o conceito de descolado, ou cool, existisse nos tempos de Kraus, ele poderia ter dito que a Alemanha não era nada cool, um lugar nada descolado.

E isso sugere uma versão mais contemporânea da dicotomia de Kraus, a que opõe o Mac ao PC. Afinal, a essência do produto da Apple não é tornar a pessoa cool simplesmente por possuí-lo? Nem interessa saber o que ela estará produzindo no seu MacBook Air. O simples fato de usar um MacBook Air, de usufruir o design elegante de seus hardware e software, configura um prazer em si, como flanar por uma rua parisiense. Já quem trabalha num tosco PC utilitário só pode extrair prazer da qualidade do trabalho em si. Como diz Kraus a respeito da vida germânica, o PC torna “sóbrio” o que você faz; permite-lhe ver sem adorno o que produz. O que era especialmente verdade nos anos dos sistemas operacionais à base de DOS e das primeiras versões do Windows.

Um dos desdobramentos que Kraus fustiga neste ensaio – o atavio vienense da língua e cultura alemãs com elementos decorativos importados das línguas e culturas românicas – encontra correlato nas edições mais recentes do Windows, que recorrem a uma quantidade cada vez maior de características da Apple, mas nem assim conseguem disfarçar sua natureza essencialmente Windows, e portanto nada cool. E o pior: no esforço de adquirir certa elegância Apple, acabam traindo a beleza austera e tradicional da funcionalidade dos PCs. E eles continuam a não funcionar tão bem como os Macs, e são feios, seja pelos padrões de uma elegância cool, seja pelos meramente utilitários.

Ainda assim, fazendo eco a Kraus, prefiro viver cercado de PCs. Se ainda houvesse qualquer possibilidade de eu me bandear para a Apple, ela foi sepultada pela famosa e duradoura série de anúncios destinada a convencer justo pessoas como eu. Os argumentos para a troca são perfeitamente razoáveis, mas apresentados por um Mac personificado (encarnado pelo ator Justin Long), de uma presunção tão intragável que chega a tornar atraentes os piores defeitos do Windows. Ninguém se interessaria por um romance sobre o Mac: o que haveria para contar, além de que tudo ali é tão bacana? Personagens de romances precisam de aspirações concretas, e nos anúncios da Apple o personagem com aspirações era o PC, representado por John Hodgman. Suas tentativas de defesa, outorgando-se por chique e cool, são muitos divertidas, e ele aparece sofrendo, como um ser humano.

Eu estaria sendo relapso se não acrescentasse que o conceito de coolfoi tão cooptado pelas indústrias de tecnologia que uma palavra adjacente em inglês, hip, tornou-se necessária para descrever as vozes virtuais que preferiram a elegância coolde Hodgman [PC] à odiosa figura de Long [Mac]. A volatilidade do que ou de quem é considerado hip nos dias de hoje pode ser um subproduto do que Karl Marx, em texto célebre, identificou como a natureza “inquieta” do capitalismo. Uma das piores características da internet é que ela desperta em cada um a comichão de se transformar em pessoa sofisticada – tomando posição quanto ao que seja ou não hip, e inteirando-se, sob pena de ser considerada nada hip, das posições tomadas por todo mundo a sua volta. Kraus podia não se importar com o caráter intrínseco do que é hip, mas certamente se deleitava em tomar posições e demonstrava um interesse agudo pelas posições alheias. Esse é um dos motivos pelos quais Die Fackel nos lembra um blog. Kraus investia muito tempo em leituras que detestava, para poder detestá-las com plena autoridade.

Acreditem em mim, vocês que têm apreço pela variedade: nas culturas onde todo cretino é dotado de individualidade, a individualidade se converte num troço de cretinos.



Segunda nota de pé de página: ninguém pode dizer coisas assim nos Estados Unidos de hoje, por mais que o bilhão (ou já serão 2 bilhões?) de páginas “individualizadas” do Facebook possa nos encorajar a dizê-las. Em seu tempo, Kraus era conhecido por seus muitos inimigos como o “Rei do Ódio”. Segundo a maioria dos relatos, era doce e generoso na vida particular, com muitos amigos leais. Mas assim que começava a manejar sua retórica polêmica, era capaz de registros de extrema aspereza.

No caso, os “cretinos” individualizados que Kraus tem em mente não pertencem ao povo em geral. Embora pudesse soar elitista, Kraus não se empenhava em ridicularizar as massas ou a cultura popular; a dificuldade deliberada de sua escrita não era uma barricada contra os bárbaros. Falava, ao contrário, das autoridades culturais esclarecidas e brilhantes que adotavam uma individualidade forjada e artificial – pessoas que, na opinião de Kraus, deveriam saber que isso não se faz.

Não sei ao certo se as denúncias estridentes emitidas ex cathedra por Kraus seriam o meio mais eficaz para converter seu público. Mas confesso ter sentido desapontamento semelhante ao seu quando Salman Rushdie, um romancista que a meu ver devia saber que isso não se faz, sucumbiu ao Twitter. Ou quando uma revista que respeito e de posições políticas bem definidas, a n+1, desqualifica as revistas impressas de terminalmente “masculinas”, celebrando a internet como “feminina” e, de algum modo, negligenciando o papel da rede na pauperização acelerada dos autores freelancers. Ou quando bons professores de esquerda que antes resistiam à alienação – criticando o capitalismo pela corrosão incansável de todas as tradições e todas as comunidades que encontra pelo caminho – começam a classificar de “revolucionária” a internet enquanto corporação.

Poupem-me da pitoresca impureza da casca de um velho gorgonzola em detrimento da reconfortante monotonia branca do queijo cremoso! Tanto aqui como lá a vida é dura de digerir. Mas a dieta românica converte em belo o estragado; você engole a isca e emerge boiando de barriga para cima. O regime alemão estraga a beleza e nos põe à prova: como podemos recriá-la? A cultura românica transforma o homem comum em poeta. Lá, a arte é moleza. E o Céu, um inferno.

Submersa nesse parágrafo, encontra-se a ilação de que a Viena de Kraus afigurava-se um caso intermediário – como o Windows Vista. De língua e orientação germânicas, Viena também era a cocapital de um império católico que se espraiava por pontos distantes do sul da Europa; e era apaixonada por sua própria ideia do encanto especial do espírito e do estilo de vida vienenses. (“As ruas de Viena são pavimentadas de cultura”, diz um dos aforismos de Kraus; “as outras cidades usam asfalto”.) Para Kraus, o suposto charme cultural de Viena não passava de um tecido de hipocrisias estendido para acobertar contradições à beira da catástrofe, que com sua sátira ele se empenhava em denunciar. O parágrafo pode ser mais duro com a cultura latina do que com a germânica, mas na verdade Kraus adorava veranear na Itália, onde viveu algumas de suas experiências mais românticas. Para ele, o lugar com uma desconexão realmente perigosa entre forma e conteúdo era a Áustria, que se modernizava rapidamente, mas preservava modelos políticos e sociais datados do início do século xix. Kraus era obcecado pela maneira como os jornais modernos contribuíam para disfarçar as contradições. Como os jornais americanos de William Randolph Hearst, a imprensa burguesa vienense tinha uma gigantesca influência política e financeira, e era notoriamente corrupta. Lucrou horrores com a Primeira Guerra Mundial, e prestou-se a criar e cultivar mitos como o da “morte heroica” ao longo de anos de carnificina mecanizada. A Grande Guerra foi precisamente o apocalipse austríaco que Kraus vinha profetizando, e ele, incansável, satirizou a cumplicidade da imprensa nos acontecimentos.



Viena em 1910 era, portanto, um caso especial. Ainda assim, pode-se afirmar que os Estados Unidos de 2013 são um caso igualmente especial: outro império enfraquecido que acalenta histórias sobre seu caráter excepcional enquanto deriva rumo a algum tipo de apocalipse, fiscal ou epidemiológico, climático-ambiental ou termonuclear. Nossa extrema-esquerda pode odiar a religião e afirmar que somos indulgentes com Israel; nossa extrema-direita pode odiar os imigrantes ilegais e afirmar que somos indulgentes com os negros, e talvez ninguém saiba como a economia deveria funcionar agora que o mercado se tornou global – mas a substância efetiva de nossas vidas cotidianas é pura diversão. Não somos capazes de enfrentar os verdadeiros problemas; gastamos 1 trilhão de dólares no Iraque para não resolver de fato um problema que na verdade nem era um problema; não conseguimos sequer concordar quanto a um meio de impedir que os custos da assistência à saúde devorem nosso PIB. Todos, porém, concordamos em nos entregar aos novos meios de comunicação e às tecnologias descoladas – a Steve Jobs, Mark Zuckerberg e Jeff Bezos – e permitimos que lucrem às nossas custas. Nossa situação parece um pouco com a de Viena em 1910, só que a tecnologia dos jornais foi substituída pela tecnologia digital, e o charme vienense pelo cool americano.

Basta examinar o primeiro parágrafo de um outro ensaio de Kraus, “Nestroy und die Nachwelt” [Nestroy e a Posteridade]. O texto é uma homenagem explícita a Johann Nestroy, figura de destaque da Idade de Ouro do teatro vienense, na primeira metade do século xix. No momento em que Kraus publicou seu ensaio, em 1912, Nestroy era subestimado, incompreendido, e estava basicamente esquecido. E Kraus toma esse fato como sintoma do que havia de errado com a época moderna. Em seu ensaio “Apokalypse”, escrito alguns anos antes, já havia dito: “A cultura não consegue recobrar seu fôlego, e ao final uma humanidade morta jaz ao lado de suas obras, cuja invenção custou tanto de nosso intelecto que dele nada restou para dar algum uso a elas. Alcançamos suficiente complexidade para construir máquinas, mas fomos primitivos demais para fazê-las funcionar a nosso favor.” O que mais me impressiona em Kraus como pensador talvez seja a maneira como reconheceu muito cedo, e com toda a clareza, a divergência entre progresso tecnológico e progresso moral e espiritual. E mais um século de avanços tecnológicos, envolvendo conquistas científicas que pareceriam prodigiosas ainda há pouco, culminou nos vídeos de alta definição, captados com smartphones, em que garotos deixam cair pastilhas mentoladas em garrafas de Pepsi Diet e gritam “Uau!”. Os tecnovisionários da década de 1990 prometeram que a internet iria nos trazer uma era de paz, amor e compreensão, e os executivos do Twitter ainda insistem em martelar os tambores da utopia, reivindicando crédito pelo despertar da Primavera Árabe. A julgar pelo que dizem, não se concebe que a Europa Oriental tenha se libertado dos soviéticos sem recorrer a celulares, ou que um punhado de americanos tenha se revoltado contra os britânicos e produzido a Constituição americana sem uma rede 4G. “Nestroy e a posteridade” começa assim:

Não podemos celebrar sua memória do modo como deveríamos, reconhecendo uma dívida que somos chamados a honrar, e por isso preferimos celebrar sua memória admitindo uma falência que nos desonra – a nós, habitantes de um tempo que perdeu sua condição de posteridade... Como pôde o eterno Arquiteto fracassar em não aprender com as experiências desse século? Pois desde que existem gênios, eles sempre se instalam em seu tempo a título de inquilinos temporários, enquanto o gesso ainda seca nas paredes; depois se retiram e legam as benesses à humanidade. Desde que existem engenheiros, porém, a casa vem ficando cada vez menos habitável. Deus tenha piedade do desenvolvimento! Melhor que Ele impeça o nascimento de artistas do que o consolo de que esse nosso futuro será melhor por eles terem vivido antes de nós. O nosso mundo! Ele que tente dar a impressão de que é uma posteridade, e, à menor insinuação de que deve seu progresso a algum desvio da Mente, responderá com uma risada que parece dizer “Mais dentistas preferem Pepsodent”. Uma risada inspirada por uma ideia de Roosevelt e orquestrada por Bernard Shaw. É a risada que se fartou de tudo e pode fazer o que quiser. Pois os técnicos queimaram as pontes, e o futuro é: o que vier automaticamente.

Hoje em dia, o refrão é “não há como deter as novas tecnologias”. A resistência mais disseminada a elas se limita quase exclusivamente a questões de saúde e segurança, enquanto várias lógicas – da teoria da guerra, da tecnologia, do mercado – continuam a se expandir no automático. Descobrimos que vivemos num mundo dotado de bombas de hidrogênio porque bombas de urânio não dariam conta do recado; descobrimos que empregamos a maior parte de nossas horas de vigília mandando mensagens de texto, enviando e-mails, tuitando e postando em aparelhos com telas coloridas, porque a Lei de Moore[2] decretou que é possível. Dizem-nos que, para continuar economicamente competitivos, precisamos deixar de lado o ensino das humanidades e incutir em nossos filhos a “paixão” pela tecnologia digital, preparando-os para passar o resto da vida numa reeducação permanente, que lhes permita acompanhar as novidades. A lógica diz que, se quisermos comprar na Zappos.com e gravar digitalmente os programas de tevê em casa – e isso quem não quer? –, precisamos dar adeus à estabilidade no emprego, entregando-nos a uma vida de permanente ansiedade, tornando-nos tão inquietos quanto o próprio capitalismo.



Não só não sou adepto do ludismo, como tampouco tenho certeza de que os luditas originais o fossem de fato. (Pode ter-lhes parecido simplesmente adequado inutilizar os teares a vapor que vinham ceifando seus empregos.) Passo o dia inteiro, todo dia, recorrendo a softwares e ao silício, encantado com todos os aspectos do meu ultrabook Lenovo, exceto o nome. (Trabalhar num troço chamado IdeaPad me desencoraja a ter ideias.) Mas algum tempo atrás, quando tive o destempero de declarar em público que o Twitter era “uma estupidez”, a resposta dos adictos em Twitter foi me chamar de ludita. Aqui pra vocês, seus idiotas! Foi como se eu dissesse que fumar cigarros era “uma estupidez”, só que sem provas médicas em meu apoio. Por algum tempo, houve quem se preocupasse com a possibilidade de os celulares provocarem câncer no cérebro, mas ficou demonstrado que a conexão era praticamente inexistente, e agora ninguém mais precisa se preocupar.

Essa velocidade não percebe que sua conquista serve para fugir. Presentes em corpo, repulsivos em espírito, perfeitos exatamente como são, esses nossos tempos têm a esperança de serem ultrapassados pelos tempos vindouros, e que as crianças, geradas pela união do esporte com a máquina e nutridas pelos jornais, venham a ser capazes de rir ainda melhor depois... Não há como meter-lhes medo; se um espírito aparece, a resposta é: já temos tudo de que precisamos. A ciência está a postos para assegurar que seguirão hermeticamente isoladas de qualquer coisa que venha do além. Esta coisa, que dá a si mesma o nome de mundo, por ser capaz de percorrer-se em cinquenta dias, estará acabada assim que for capaz de terminar seus cálculos. Para poder encarar a pergunta “E depois?”, ainda acredita dar conta do que ficar de fora. E o cérebro mal faz ideia de que já raiou
o dia da grande seca. E então o último dos órgãos silencia, mas a última das máquinas continua a zumbir até parar ela também, porque seu operador esqueceu a Palavra. Pois o intelecto não entendeu que, na ausência do espírito, pode até crescer no espaço de sua própria geração, mas perderá a capacidade de se reproduzir. Se duas vezes dois são realmente quatro, como dizem, isso se deve ao fato de Goethe ter escrito o poema “Quietude no oceano”. Mas hoje as pessoas conhecem tão exatamente o produto de dois por dois que, dentro de 100 anos, não serão mais capazes de calcular qual seja. “Alguma coisa que nunca existiu antes deve ter surgido no mundo. Uma máquina infernal da humanidade.”

De todas as citações de Kraus, esta deve ser a que mais significa para mim. Nessa passagem, ele evoca o Aprendiz de Feiticeiro – o desencadeamento involuntário de consequências sobrenaturalmente destrutivas. Embora esteja falando do jornal moderno, sua crítica, na verdade, aplica-se melhor ainda ao tecnoconsumismo contemporâneo. Para Kraus, o que os jornais tinham de infernal era a maneira fraudulenta como associavam os ideais iluministas a uma busca insaciável de lucro e poder. Com o tecnoconsumismo, toda uma retórica humanista que fala em “empoderamento”, “criatividade”, “liberdade”, “conectividade” e “democracia” favorece a monopolização declarada dos titãs da tecnologia; a nova máquina infernal parece cada vez mais obedecer apenas à lógica de seu próprio desenvolvimento, e é muito mais escravizadora e viciante, e mais associada à gratificação de nossos piores impulsos, que os jornais jamais terão sido. Na verdade, o que Kraus diz de Nestroy mais adiante poderia ser dito hoje sobre o próprio Kraus: “Ele ataca seus pequenos arrabaldes com a aspereza digna de uma causa vindoura.” Os lucros e o alcance da imprensa vienense eram ridiculamente pequenos se comparados aos gigantes de hoje nos campos da tecnologia e da comunicação. O mar de dados triviais, falsos ou vazios ficou milhões de vezes maior. Kraus estava fazendo um mero prognóstico quando imaginou o dia em que as pessoas não saberiam mais somar ou subtrair; hoje, é difícil terminar uma refeição com amigos sem que alguém recorra ao respectivo iPhone para se lembrar de algum fato cuja rememoração costumava ser de responsabilidade direta do cérebro. Os adeptos da tecnologia, claro, não enxergam nada de errado nisso. Dizem que os seres humanos sempre delegaram a memória a fontes externas – os poetas, os historiadores, os cônjuges, os livros. Mas sou filho dos anos 60, de maneira que vejo uma diferença considerável entre deixar por
conta de a esposa lembrar a data do aniversário da sobrinha e entregar as funções básicas da memória a um sistema de controle corporativo global.

Uma invenção capaz de espatifar o Koh-i-noor [à época, o maior diamante do mundo]e tornar sua luz acessível a todos que não a possuem. E já faz cinquenta anos que vem funcionando, essa máquina em que a Mente ingressa pela frente para emergir atrás em forma impressa, diluída, distribuída, destruída. Aquele que dá perde, aqueles que recebem se empobrecem, e os intermediários ganham a vida...

Eis uma amostra da prosa krausiana. E a questão sobre a qual quero refletir agora é a seguinte: por que Kraus sentia tanta raiva? Foi filho temporão de uma família próspera de judeus assimilados cujos negócios produziam renda suficiente para assegurar sua independência financeira por toda a vida. E isso, por sua vez, permitia que ele publicasse Die Fackel exatamente como queria, sem qualquer concessão a assinantes ou anunciantes. Tinha um círculo próximo de bons amigos e um círculo bem maior de admiradores, muitos deles fanáticos, alguns famosos. Embora nunca tenha se casado, manteve alguns notáveis casos amorosos, além de uma relação profunda de longa duração. Seu único problema significativo de saúde era um desvio de coluna, o que lhe proporcionou a isenção do serviço militar. Diante disso, como explicar que uma pessoa tão afortunada se tenha transformado no Rei do Ódio?

Eu me pergunto se Kraus não sentia tanta raiva justamente por ser tão privilegiado. Mais adiante, no ensaio sobre Nestroy, o Rei do Ódio defende essa raiva nos seguintes termos: “O ácido quer o brilho; a ferrugem diz que o ácido seria apenas corrosivo.” Kraus odiava a linguagem vulgar porque amava a linguagem refinada – porque dispunha dos dons intelectuais e da largueza financeira que lhe permitiram cultivar esse amor. E o sujeito que tem sorte na vida não consegue deixar de esperar que tudo continue a funcionar do modo como prefere; quando o mundo insiste em tomar um rumo errado, percorrendo os caminhos da corrupção e do mau gosto, sente que o mundo o traiu. Isso o leva a sentir raiva, e essa raiva o isola ainda mais, enfatizando a sensação de ser uma criatura à parte.

Como qualquer artista, Kraus desejava ser um indivíduo. Durante boa parte da vida, cultivou uma atitude desafiadora e antipolítica; parecia formar alianças profissionais só com a intenção de torpedeá-las mais adiante da maneira mais espetacular. Dado que sua peça teatral favorita era o Rei Lear, eu me pergunto se não veria seu próprio destino em Cordélia, a filha temporã predileta que ama o rei e que, justamente por ser a filha preferida, confiante no amor do rei, tem a integridade de se recusar a aviltar sua linguagem e mentir para ele quando o vê senil. Também no caso de Kraus, o privilégio o põe a caminho de se tornar um indivíduo independente, mas o mundo parece obstinar-se em frustrá-lo. O mundo o desaponta, como Lear desaponta Cordélia, e em Kraus isso se transforma num pretexto incontornável para a raiva. Em sua ânsia por um mundo melhor, em que a verdadeira individualidade fosse possível, ele persiste em aplicar o ácido de seu ódio a tudo que é falso.

Deixem-me usar o exemplo da minha vida, já que afinal de contas eu me vejo na história de Kraus.

Fui o filho tardio de uma família amorosa que, embora não rica a ponto de me permitir viver de renda, tinha o suficiente para me botar numa boa escola pública e me mandar para uma faculdade excelente, onde aprendi a amar a literatura e a linguagem. Eu era um americano branco, do sexo masculino e heterossexual, com bons amigos e saúde perfeita. Ainda assim, apesar de todos os privilégios, tornei-me uma pessoa extremamente raivosa. A raiva tomou conta de mim num momento tão próximo da época em que me apaixonei pelos escritos de Kraus que esses dois acontecimentos se tornaram praticamente indistinguíveis.

Não nasci enraivecido. A bem da verdade, o que ocorreu foi o contrário. Pode parecer exagero, mas penso que até os 22 anos nunca havia tomado conhecimento da raiva. Na adolescência, tive meus momentos de irritação e rebeldia contra a autoridade, mas, como Kraus, vivi conflitos mínimos com meu pai, e o mais grave que se pode dizer da relação com minha mãe é que trocávamos alfinetadas como um casal de velhos. A raiva de verdade, a raiva como modo de vida, ela me era estranha até certa tarde de abril de 1982. Eu estava numa plataforma deserta da estação ferroviária de Hanover. Chegara de Munique e esperava o trem para Berlim; fazia um cinzento dia alemão, e comecei a jogar na plataforma um punhado de moedas alemãs que ia tirando do bolso. Havia nisso um elemento de hostilidade antigermânica, porque pouco antes eu tivera uma experiência horrível com uma velha senhora alemã aferrada a cada vintém, e me fez bem imaginar outras velhas senhoras alemãs aferradas a seus vinténs curvando-se para catar aquelas moedas, como eu sabia que haveriam de fazer, agravando desse modo as dores que sentiam nos joelhos e quadris. Meu ato de atirar aquelas moedas, porém, era ditado por uma raiva mais geral. Sentia uma raiva do mundo que nunca tinha me ocorrido antes. A causa imediata era a frustração por não ter conseguido fazer sexo com uma garota incrivelmente linda em Munique; mas não tinha sido um fracasso de fato, e sim uma decisão da minha parte. Algumas horas mais tarde, na plataforma de Hanover, ao descartar as moedas assinalei minha entrada na vida que sucedeu a essa decisão. Em seguida, embarquei num trem e voltei para Berlim, onde vivia graças a uma bolsa do Programa Fulbright, e me matriculei num curso sobre Karl Kraus.



***



Como presente de casamento, três meses depois que voltei de Berlim, meu professor de alemão na faculdade, George Avery, me deu uma edição encadernada de Die Dritte Walpurgisnacht [A Terceira Noite de Walpurgis], a grande crítica do nazismo de autoria de Kraus. George, que tinha aberto meus olhos para a relação entre literatura e vida vivida, vinha se transformando numa espécie de segundo pai para mim, um pai que lia romances e cultivava muitos prazeres. Fui um bom discípulo, e deve ter sido o desejo de me mostrar merecedor, de deixar claro o quanto o amava, que me levou, nos meses subsequentes ao casamento, a tentar traduzir os dois difíceis ensaios de Kraus que trouxera comigo de Berlim.

Trabalhava nessa tradução no final das tardes, depois de passar seis ou sete horas tentando escrever meus contos, no quarto do pequeno apartamento em Somerville que minha mulher e eu alugávamos por 300 dólares mensais. Quando terminei a primeira versão dos dois textos, mandei-os para George. Ele os devolveu algumas semanas mais tarde, com anotações nas margens em sua letra microscópica, além de uma carta em que aplaudia meu esforço, mas também reconhecia que traduzir Kraus podia ser “de uma dificuldade diabólica”. Levando em conta suas sugestões, reli com novos olhos as traduções rascunhadas e me desanimei ao constatar como soavam artificiais e eram praticamente ilegíveis. Quase todas as frases precisavam ser reformuladas, e eu me sentia tão esgotado pelo trabalho já feito que acabei enterrando os textos numa pasta. Mas Kraus me transformou. Quando desisti dos contos e voltei ao meu romance, não conseguia esquecer seu fervor moral, sua fúria satírica, seu ódio aos meios de comunicação de massa, sua preocupação com o apocalipse e sua ousadia como frasista. Decidi expor as contradições americanas da mesma forma como ele havia exposto as austríacas, e resolvi fazê-lo por meio de um romance, gênero popular que Kraus desdenhava, mas eu não. Ainda tinha esperança de conseguir levar a cabo o projeto de traduzir suas obras, depois que meu romance me tornasse famoso e milionário. Em nome dessas expectativas, colecionava recortes do Sunday Times e do Boston Globe diário, que minha mulher e eu assinávamos. Por algum motivo – talvez para me consolar com a ideia de que havia outras pessoas no mundo que se casavam –, eu lia religiosamente as páginas de anúncios matrimoniais, recortando títulos como CYNTHIA PIGOTT CASA-SE COM LOUIS BACON e, minha favorita, MISS LEBOURGEOIS CASA COM ESCRITOR.

Eu lia o Boston Globe com um olhar krausiano e especialmente frio, e o jornal, prestativo, sempre correspondia me enfurecendo com sua trivialidade, seu descaso com a revisão e os trocadilhos idiotas de suas manchetes sobre mudanças climáticas. Fiquei tão indignado com as gracinhas sem razão ou sentido de chamadas como TROMBANDO NA CHUVA – que imaginei nada divertida para a família de alguém que tivesse morrido numa colisão frontal de carro – ou A CALMA OUTONAL – ofensiva para o quanto eu levava a sério o perigo nuclear – que finalmente escrevi uma indignada carta em tom krausiano para o editor. O Globe chegou a publicar na seção dos leitores, mas conseguiu, com seu característico descuido, trocar a expressão que me incomodava por A CALMA AUTOMÁTICA, o que deixava minha reclamação incompreensível. Fiquei tão indignado que mais tarde dedicaria várias páginas do meu segundo romance a zombar do jornal e mostrar o quanto era ordinário. A raiva que eu sentia a essa altura – dirigida não só contra os meios de comunicação, mas contra a cidade de Boston, os motoristas de Boston, as pessoas do laboratório onde eu trabalhava, o computador do laboratório, minha família, a família da minha mulher, Ronald Reagan, George H. W. Bush, os teóricos da literatura, os escritores minimalistas de ficção então na moda e os homens que se divorciavam das mulheres – hoje me é estranha. Devia estar ligada ao isolamento profundo da minha vida de casado e à obstinação implacável com que, em minha pobreza e ambição, eu me negava o direito a qualquer prazer.

Devia haver também, como já disse, algo da raiva que a pessoa privilegiada sente do mundo quando este insiste em decepcioná-la. Se não cheguei a acumular dessa raiva o bastante para que me transformasse num sucessor condigno de Kraus, isso se devia ao gênero que escolhi. Quando um satirista radical conquista alguma popularidade, isso só pode significar que ele não foi entendido por seu público. A falta de público digno do respeito de Kraus era previsível, e assim ele nunca precisou abdicar de sua raiva: podia dedicar-se a ser o Rei do Ódio em sua escrivaninha, depois pousar a pena e se entregar a sua calorosa vida pessoal em companhia dos amigos. Já o romancista, quando este encontra um público, ainda que pequeno, estabelece com seus leitores uma relação diferente, pois se baseia no reconhecimento, e não num mal-entendido. Diante de uma relação assim, diante de um público assim, torna-se simplesmente desonesto continuar cultivando tanta raiva. E a operação mental que a ficção basicamente requer, a de imaginar como seria ser alguém que você não é, concilia-se ainda menos com essa raiva. Quanto mais escrevo romances, menos certeza tenho de estar com a razão e mais me inclino a entender pessoas como os revisores de provas do Boston Globe. Além disso, com a chegada ao poder da internet, disseminando informações tão indignas de confiança quanto fáceis de ler, desenvolvi tamanha gratidão pelo fato de continuarem a existir jornais como o New York Times e o Boston Globe, persistindo em remunerar repórteres razoavelmente responsáveis para escrever suas matérias, que perdi qualquer interesse em destruí-los.



E assim, em algum ponto da década de 90, retirei as más traduções de Kraus das gavetas do meu arquivo ativo e as releguei a uma armazenagem mais profunda. As frases de Kraus não paravam de me passar pela cabeça, mas eu tinha a impressão de tê-lo superado, de que ele podia ser o tipo de escritor certo para um angry young man, mas não, no final das contas, para um romancista. E o que hoje me traz de volta a ele é, em parte, a incômoda sensação de que o apocalipse, depois de parecer ter-se afastado por algum tempo, ainda é uma ameaça presente.

No meu cantinho do mundo, ou seja, a literatura de ficção americana, Jeff Bezos, da Amazon, pode não ser o Anticristo, mas sem dúvida parece um dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. A Amazon deseja um mundo onde os livros serão publicados ou pelo autor ou pela própria Amazon, em que os leitores vão se pautar pelas resenhas da Amazon para escolher suas leituras e os autores serão os responsáveis por sua própria promoção. As obras de fofoqueiros, tuitadores e cascateiros, e de gente com dinheiro para pagar a centenas de outras pessoas para que escrevam resenhas dando-lhes cinco estrelas, é que irão florescer nesse mundo. Mas qual o destino de quem se torna escritor justamente porque a fofoca, a tuitagem e a cascata lhe parecem formas intoleravelmente superficiais de troca social? O que acontecerá com as pessoas que quiserem comunicar-se em profundidade, de indivíduo a indivíduo, no silêncio e na permanência da palavra escrita, e que foram formadas pelo amor aos autores que escreviam quando o mundo editorial ainda supunha algum tipo de controle de qualidade e as reputações literárias não dependiam apenas da decibelagem autopromocional? Ao mesmo tempo que um número cada vez menor de leitores consegue abrir caminho – em meio a todo o ruído, tantos livros decepcionantes e resenhas de araque – até a obra produzida pela nova geração desse tipo de escritor, a Amazon vem atuando cada vez mais em prol de transformar os escritores nos mesmos trabalhadores sem futuro que as empresas que lhe prestam serviços empregam em seus armazéns, e que se esfalfam cada vez mais por uma paga cada vez menor – e sem garantias trabalhistas, porque os depósitos se erguem em locais onde são a única empresa que ainda oferece emprego. E quanto maior é a parcela da população que vive como esses trabalhadores, maior a pressão para reduzir o preço dos livros e maior o sufoco dos livreiros tradicionais, pois quando a pessoa não ganha bem ela quer ser entretida de graça, e quando a vida dela é muito dura, tudo que ela quer é gratificação instantânea (“Entrega gratuita em 24 horas!”).

E assim o livro físico passa a figurar na lista de espécies ameaçadas, os resenhistas criteriosos entram em extinção, as livrarias independentes desaparecem, os romancistas literários ficam restritos à autopromoção ao estilo de Jennifer Weiner, as Seis Grandes Editoras [as chamadas Big Six: Hachette, a Georg von Holtzbrinck/Macmillan, a Penguin, a HarperCollins, a Random House e a Simon & Schuster] se extinguem e são devoradas pela Amazon: o que só lembra um apocalipse se a maioria dos seus amigos for de escritores, editores ou livreiros. Além de ser possível que a história ainda não tenha chegado ao fim.
A experiência das resenhas virtuais de autoria do consumidor pode resultar numa corrupção tão flagrante (dizem que um terço de todas as resenhas publicadas na rede já é forjado) que as pessoas acabarão pedindo o retorno dos resenhistas profissionais. Um número economicamente significativo de leitores pode acabar reconhecendo o custo humano e cultural da hegemonia da Amazon, voltando a procurar as livrarias locais ou pelo menos recorrendo à barnesandnoble.com, que oferece os mesmos livros e um aparelho melhor para a leitura de livros eletrônicos, e cujos proprietários são politicamente progressistas. As pessoas podem ficar tão enjoadas do Twitter quanto enjoaram do cigarro. As últimas versões do Twitter e do Facebook para fazer dinheiro ainda me parecem parte esquema de pirâmide, parte wishful thinking, parte uma repugnante vigilância panóptica.



Eu poderia, é verdade, me estender numa argumentação apocalíptica sobre a lógica da máquina, que hoje se tornou global e vem acelerando a desnaturalização do planeta e a esterilização de seus oceanos. Poderia apontar a transformação das florestas boreais do Canadá num lago tóxico de subprodutos da extração de petróleo da areia betuminosa, a derrubada das florestas asiáticas ainda remanescentes para a produção chinesa de móveis ultrabaratos para a Home Depot, o represamento dos rios amazônicos e o abate irreversível de suas florestas em favor da produção de carne e da extração mineral, toda a mentalidade de “Danem-se as consequências, queremos comprar um monte de porcarias e a preço barato, com entrega gratuita em 24 horas”. E ao mesmo tempo o superaquecimento da atmosfera, o calamitoso abuso de antibióticos pelo agronegócio, a descuidada e difundida intromissão nos núcleos de células vivas, que ainda pode se revelar tão desastrosa quanto a intromissão nos núcleos dos átomos. E, sim, as ogivas termonucleares que continuam em seus silos e submarinos.

Mas o apocalipse não significa necessariamente o fim físico do mundo. Na verdade, a palavra tem o sentido mais direto de julgamento cósmico final. Na crônica que Kraus faz dos crimes contra a verdade e a linguagem em Os Últimos Dias da Humanidade, ele não se refere apenas à destruição física. Com efeito, o título dessa peça seria mais bem traduzido por “os últimos dias da condição humana”: “desumanizar” não significa “despovoar”, e se a Primeira Guerra representou o fim da humanidade na Áustria, não foi porque a população do país tenha sido extinta. Kraus ficou assombrado com a carnificina, mas ele a encarava como o resultado, e não a causa, da extinção da humanidade em pessoas que ficaram vivas. Vivas mas condenadas, sofrendo de uma maldição cósmica.

No entanto, um juízo como esse depende, claro, do que se entende por “humanidade”. Goste eu dele ou não, o mundo que vem sendo criado pela máquina infernal do tecnoconsumismo não deixa de ser um mundo produzido por seres humanos. No momento em que escrevo aqui, tenho a impressão de que metade dos anúncios veiculados nas redes de tevê exibe pessoas debruçadas sobre seus smartphones; um deles, particularmente longo e ofensivo, mostra os convidados de uma festa de casamento, todos na faixa dos 20 e poucos anos, dedicados a fotografar com seus celulares e enviar as fotos uns para os outros. Descrever esse espetáculo desalentador, em termos apocalípticos, como a “desumanização” de um casamento, é defender certa concepção moral da humanidade; e se você for um seguidor de Nietzsche, rejeitando o juízo moral em favor do estético, vê-se imediatamente diante da convincente conexão, feita por Bourdieu, da estética com a classe e o privilégio; em seguida, quando dá por si, está traduzindo Os Últimos Dias da Humanidade como “os últimos dias em que ainda se dá valor às coisas que pessoalmente acho lindas”.

O que talvez nem esteja tão errado. Pode ser que o apocalipse, paradoxalmente, seja sempre individual, sempre pessoal. Tenho um breve direito de permanência na Terra, ladeado por infinitos parênteses de nada, e durante a primeira parte dessa estada me apego a certo conjunto de valores humanos inevitavelmente determinados por minhas circunstâncias sociais. Tivesse eu nascido em 1159, quando o mundo era mais estável, podia com certeza acreditar, aos 53 anos, que a geração seguinte iria ter os mesmos valores que eu e dar valor às mesmas coisas que eu apreciava; nenhum apocalipse me ameaçaria. Mas nasci em 1959, quando a tevê era uma coisa a que só se assistia em horário nobre, as pessoas escreviam cartas e as punham no correio, toda revista ou jornal tinha uma alentada seção sobre livros, editoras veneráveis investiam em longo prazo em jovens escritores, o New Criticism reinava nos departamentos de inglês das universidades e a bacia Amazônica ainda estava intacta, enquanto os antibióticos só eram usados para tratar infecções sérias, e não empurrados goela abaixo a bois e vacas saudáveis. Não era necessariamente um mundo melhor (todos os americanos tinham abrigos antinucleares, e as piscinas do país eram segregadas), mas foi o único mundo que conheci e no qual podia tentar encontrar meu lugar como escritor. E assim, hoje, 53 anos mais tarde, a queixa característica de Kraus – de que o nexo constituído pela tecnologia e os meios de comunicação de massa deixam as pessoas com o foco permanente no presente, negligenciando o passado – não tem como deixar de soar verdadeira aos meus ouvidos. Kraus foi o primeiro grande exemplo de escritor que viveu plenamente o quanto a modernidade – cuja essência é a aceleração constante do ritmo da mudança – cria, por si só, as condições para o apocalipse pessoal. É natural que, sendo o primeiro, essas mudanças lhe parecessem específicas e singulares, mas a verdade é que ele registrava um fenômeno destinado a se tornar uma das características gerais da modernidade. A experiência de cada uma das gerações que se sucedem é tão diferente da anterior que sempre haverá quem julgue ter perdido em definitivo qualquer conexão com os valores essenciais do passado. Enquanto durar a modernidade, todos os dias parecerão a alguém os últimos dias da humanidade. 


[1] Leito de Procusto na mitologia grega refere-se à lenda do bandido Procusto, que oferecia aos visitantes uma cama de ferro de tamanho único. Se o usuário fosse maior do que a cama, Procusto cortava-lhe o que sobrava das pernas. Se fosse menor, ele as esticava com cordas. É um símbolo da imposição de padrões e da supremacia da forma.



[2] Em 1965, Gordon Moore (cofundador da Intel) publicou um artigo em que afirmava que a cada
18 meses a capacidade de processamento dos computadores dobraria em complexidade pelo mesmo custo original. Essa constatação ficou conhecida como Lei de Moore.


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