quarta-feira, 6 de novembro de 2013

O gato de E.T.A Hoffmann

http://rizzenhas.com/wp-content/uploads/2013/09/gato_murr6-1.jpg 
Ilustração de Maximilian Liebenwein para o livro


Por Taize Odelli
Do rizzenhas.com

Quando imaginamos um clássico da literatura, geralmente pensamos em um livro perfeito em sua técnica, aquele que ditou formas e maneiras de se narrar uma história. A inventividade, nesse caso, é uma característica que demora para vir à mente. O romance pode ter entrado para a história da literatura por quebrar paradigmas, narrar o que antes era inenarrável, desafiar a compreensão do leitor. Tudo isso, de alguma forma, se imprime no imaginário do livro ideal, daquele que, não importa o quanto os anos passarem, continuarão sendo aclamados com os grandes romances definidores do estilo e que, décadas depois, ainda continuam atuais. Reflexões do gato Murr – e uma fragmentada biografia do compositor Johannes Kreisler em folhas dispersas de rascunho, de E.T.A. Hoffmann, parece estar meio esquecido na coleção de clássicos literários, mas agora é resgatado em uma nova edição traduzida por Maria Aparecida Barbosa e publicada pela Estação Liberdade.

A inventividade pode ser o termo definidor desta obra, que expõe críticas aos costumes da sociedade alemã do século XIX de uma maneira pouco convencional. O principal narrador é, como podemos imaginar pelo título, um gato chamado Murr. Isso mesmo, é um gato quem assume a escrita de sua própria história, da juventude aos anos maduros. Mas se isso não bastasse, além das linhas líricas e cheias de pompa de Murr, Hoffmann ainda brinca com as possibilidades da própria literatura ao incluir “acidentalmente” nesta edição o manuscrito de uma biografia sobre um imaginário compositor, Johannes Kreisler, cujas folhas de rascunho Murr usou para escrever sua história. Hoffmann toma o papel de editor desses escritos, e explica como esse imprevisto aconteceu, deixando o livro dividido entre a vida do gato e a do compositor, com um relato interrompendo o outro.

A partir da introdução já é possível entender a personalidade deste felino de modos burgueses e intelectuais. Murr é um gato convencido de sua inteligência superior, considerando ter uma importante missão a cumprir no mundo: espalhar sua sabedoria para os outros gatos. Suas pretensões artísticas são altas, seu ego é constantemente inflado por ele mesmo. É um gato extraordinário e convencido, como todos os gatos – quem tem um em casa percebe toda a altivez por trás do focinho fofo. Seu desprezo pela ignorância só deixa essas características eruditas do animal mais evidentes, e, assim como alguns homens, Murr quer viver todas as experiências possíveis para poder refletir e teorizar sobre o comportamento humano – ou felino.

Hoffmann criou um personagem rabugento e engraçado ao mesmo tempo, e apesar de todas as palavras finas e poemas rimados que compõe, a narração de suas experiências só comprovam a visão limitada que esse gato tem do que significa viver. Como um cachorro amigo, Ponto, e outros gatos sempre lhe lembram: sobra o conhecimento adquirido dos livros e das letras, mas falta-lhe a vivência das ruas. Assim, muitas das aventuras narradas por Murr trazem o relato dessas tentativas de interagir com o mundo, conhecendo a filosofia dos felinos que não pretendem passar os dias dormindo em almofadas confortáveis e rascunhando nos papéis de seus donos. Tudo o que Murr não quer ser é um gato “filisteu”, de “espírito vulgar e estreito”, como Muzius, um felino amigo, sentencia em certo trecho:

    “Acredite no que lhe digo ao pé da letra: o estudo solitário não lhe servirá para nada e lhe será até prejudicial. Porque com isso você segue sendo filisteu burguês, e não tem nada mais insípido e pedante que filisteu erudito!”

A crítica à alta sociedade esclarecida também aparece nas partes do romance dedicadas à biografia de Johannes Kreisler. Esta, narrada provavelmente por Mestre Abraham, dono do gato Murr, se propõe a contar como se passaram os dias do compositor quando viveu sendo mestre de capela em uma corte alemã. Até a metade do livro, o narrador foca nos gracejos que Kreisler faz com toda a vida da corte: como o seu sarcasmo encanta e ao mesmo tempo espanta os nobres alemães, e, apesar disso, como o compositor conquista as altas damas daquele lugar. O encanto do compositor está em sua falta de apego às grandezas da corte, que para ele pouco importa frente à sua música e a coisas mais simples da vida, como amizade, sabedoria e amor. A definição que Mestre Abraham faz de Kreisler ao duque é um ótimo resumo do comportamento da personagem:

    “Veja, Kreisler não possui suas cores, não compreende suas expressões, a posição entre vocês que lhe é oferecida lhe parece pequena demais, estreita; vocês não podem contá-lo como igual, e não se conformam. Ele não quer reconhecer a eternidade das convenções sobre as formas de vida do modo como vocês fecharam; crê que uma loucura maligna se apoderou de vocês, não os deixando enxergar a autenticidade da vida, que a solenidade reinante no império, incompreensível para nós, é digna de riso, e a isso vocês chamam amargura.”

Diferente das reflexões de Murr, focadas somente no ego do gato, o narrador da história de Kreisler constantemente relata acontecimentos que envolvem outras personagens para formar o pano de fundo da história do compositor. No final, esta parte do romance de Hoffmann, além de demonstrar essa falta de importância que o protagonista dá às convenções sociais, é uma intrincada história de amor cheia de intrigas e arranjos que comprometem a felicidade das personagens.

Hoffmann intercalou muito bem essas duas histórias, mostrando como duas narrativas diferentes podem estar presentes no mesmo tempo e espaço – e também na mesma folha de papel. Murr e Kreisler, dois seres de diferentes espécies, estão presentes na mesma época, na mesma cidade, e às vezes também na mesma cena, mas o que cada um tem para deixar no papel é bem diferente. As preocupações de Murr estão no seu conhecimento, na sua produção lírica e em ser visto como um gato sábio e exemplar para a espécie, caindo nos mais diversos grupos e vivendo inúmeras experiências para poder preencher centenas de folhas com o seu saber. Já Johannes Kreisler busca, além da pureza artística em sua música, algo mais simples da vida, que é a felicidade encontrada nas outras pessoas, livres de máscaras e jogos sociais. No final, tanto o gato como o homem denunciam a mediocridade por trás dos seres sábios e nobres, o pedantismo que existe nas pessoas que passam a vida tentando ser ou parecer mais talentosas e mais intelectuais do que realmente são.

Hoffmann escreveu, por trás da curiosa história escrita por um gato, um romance de costumes costurado por intrigas, planos e revelações. Murr é uma brincadeira divertida, um animal irracional que racionaliza a sua condição de felino e seu lugar no mundo, enquanto Kreisler é envolvido nos assuntos obscuros de uma corte cujos costumes ele despreza abertamente. Em momento algum o leitor se perde nessas duas narrativas, e o mais interessante é que ele termina a leitura achando bem plausível que um gato, além de miar, arranhar, comer e dormir, seja capaz de escrever suas próprias memórias.



Nenhum comentário:

Postar um comentário