quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Homenagem ao cadáver desconhecido

Rembrandt - A Lição de Anatomia do Dr. Tulp

Por Edmundo Gaudêncio
(Texto lido no laboratório de Anatomia da Faculdade de Ciências Médicas, em Campina Grande - PB, em julho de 2013 e dedicado à Turma “Maria das Neves Porto de Andrade”)


Introdução:
(Sobre cada carteira, colocar uma vela apagada)
Diz o Gênesis:
“No princípio, era o Verbo. E o Verbo disse ‘Fiat lux’ e a luz se fez”.
Porque fomos criados à imagem e semelhança de Deus e porque Deus é Luz, que seja luz.
(Acender a vela número um)
Mas disse também Sidarta Gautama, o Buda:
“Milhares de velas podem ser acesas de uma única vela e a vida da vela não será encurtada. Felicidade nunca diminui ao ser compartilhada”.
(Acender todas as velas: a partir da primeira, a segunda; a partir da segunda, a terceira e assim por diante)
Exposição:
É a vida de uma pessoa que ilumina a sua morte ou obscurece o seu fim; é a vida de cada um de Vocês que iluminará a eternidade de sua presença e de sua passagem por entre os mortais. Foi a morte dessa pessoa que chamamos de “Cadáver Desconhecido” que alumiou a vida intelectual de cada um de nós, uma vez que somos Médicos.
A Vocês dedico a luz destas velas, a fim de que ela lhes ilumine os caminhos sobre a terra; aos anjos, acendamos este lume, a fim de iluminar a jornada que, na Eternidade, possa levar a Deus a alma do Cadáver Desconhecido a quem aqui rendemos homenagem.
         (E que Deus ilumine também minhas palavras, quando lhes falo sobre a simbologia da vela, sobre vida e morte e sobre transitoriedade e eternizar-se).
Na vela, a cera ou a parafina representa o corpo do homem; o pavio, a sua alma; a chama, a sua fé – a qual o arremessa para o alto, assim como a chama de uma vela queima sempre de baixo para cima.
A vela, ereta, representa o homem; a chama em seu topo, a luz do pensamento humano. A chama simboliza a luz e a luz simboliza o Deus que alumia a nossa alma. Diante de Deus, a vela representa aquele que a acende e se consome em holocausto e em sacrifício à sua própria Fé.
Mas a vela e sua chama são apenas metáforas para a luz, a luz da Fé, do Conhecimento, da Verdade contra as trevas da Descrença, da Ignorância, da Miséria, lembrando que basta apenas um sopro para que ali onde antes havia claridade, seja outra vez escuridão – não colocamos nas mãos dos nossos moribundos uma vela acesa? E não dizemos “a chama da vida” e não falamos “o sopro da morte”? Em todo caso, é bom lembrar: Entre a penumbra da vida terrena e a claridade da vida eterna, a morte é somente uma breve escuridão.
Sobre isso diz o Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, é tudo vaidade. (...) Uma geração vai, e outra geração vem, mas a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar donde nasceu. (...) Tudo tem seu tempo determinado, e há tempo para o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou.”

(***)
Tudo na vida é um aqui entre dois acolás. É um hoje, este agora, entre um ontem e um amanhã. Entre o lá de onde viemos e o lá aonde chegaremos, somente nos resta este cá onde pudemos chegar. Do passado que se foi, do amanhã que inda não é, tudo quanto nos resta é este agora neste aqui, ponte entre a efemeridade e o eternizar-se. Sim, somos efêmeros como a chama de uma vela. Somos todos passageiros de nós mesmos e estamos a todo instante em quase-momento de quase partir. Quem sabe sobre o dia de amanhã que pode jamais vir a existir? Mas foi à luz de velas que Shakespeare, por exemplo, escreveu a obra em que, perguntando-se sobre “o ser ou não ser”, imortalizou-se, tornou-se eterno.
Comentários Finais:
Bem se vê, entre ser efêmero, ser-para-a-morte, eternizar-se, muitas são as lições que a Morte nos ensina. Não é a Morte que nos diz que tudo-tudo um dia passa? Não é a Morte que nos avisa que cedo ou tarde, tudo parte? Não é a morte que nos ensina que certo dia, sem comunicado prévio, o sempre de sempre será nunca mais?
Pois bem. Para mim, o que mais a morte nos ensina é que se podemos morrer a qualquer momento, precisamos viver todos os instantes como se fossem os derradeiros. Chamo a isso de “viver em estado de adeus”. Viver se despedindo das coisas, vez que tudo está na iminência de partir ou de partir-se. Viver como se tudo fosse previamente “nunca mais”. É claro, nem todos aceitam isso, pois isso implica em aceitar a triste ideia de que morreremos todos, mais tarde ou mais cedo. Mas, se assim procedêssemos, vivendo antecipadamente a morte das pessoas, dos entes, das coisas, aprenderíamos a viver de perdas, descobrindo que ninguém pertence a ninguém e todos pertencemos à morte. Mas como, para aquele que se descobre mortal, a morte chega sempre antes que de fato chegue, finda ele por descobrir também que, justo por isso, é necessário amar as pessoas, os entes, as coisas, os lugares, “como se não houvesse amanhã”, como diz o poeta. Ou seja, não deixar o abraço para amanhã, o pedido de desculpas, a concessão de perdão, o beijo para amanhã. Amanhã pode ser muito tarde, tarde demais – mas não para estes que, como nós, através do estudo da Medicina, descobrimos a finitude do ser humano e findamos sabendo que somente contamos com o momento presente.
“Mas não é triste viver assim?”, alguns perguntarão. Não triste, mas trágico, com certeza, pois a tragédia é a condição de todo aquele que, estudando a vida, sabe que todo vivente morre – e sabe também que se a morte concreta é uma tragédia  e  em sentido figurado morte é fim,  na dialética  da morte,  todo fim implica em recomeço, assim como todo começo tem um fim – aliás, não há coisa mais desejada na vida que certos fins: o fim da guerra, o fim da sede, o fim da noite insone, o fim do sofrimento que não tinha fim, o fim do medo de morrer que somente finda quando vem a morte, enfim...
Mas porque tudo finda, minhas palavras também devem findar, fazendo-lhes, antes, um pedido: Quando, como de praxe, aplaudirem minhas palavras, aplaudam, principalmente, como único aplauso que jamais tenha recebido em vida, aplaudam essa pessoa desconhecida a quem chamamos de Cadáver Desconhecido, pelo tanto que aos estudiosos da Medicina ela ensinou.
Enfim, dizia eu, porque tudo está sempre em vias de se despedir, despeço-me. E melhor que minha fala, sobre cada um de Vocês, para cada um de Vocês, que lhes fale a voz de Deus, através de Mateus, o Evangelista: “Vós sois a luz do mundo” – por isso vão e iluminem suas vidas, levando a luz onde quer que seja escuridão.
Que Deus seja a sua Luz e por isso iluminados sejam os caminhos de cada um de Vocês.


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