sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Angeli: Contra a politicagem e o politicamente correto

Foto: foto Nelson Mello
Por Fernando Luna
Crédito da foto: Nelson Mello
Da Revista Trip


Talvez você não saiba. Pode ter se distraído e nem percebeu ou, sei lá, estava mais preocupado com qualquer outra coisa. Mas é certo: você foi zoado pelo Angeli. Todo mundo foi. Empresário? Confere. Motorista de táxi? Confere. Webmaster? Confere. Estilista, designer, publicitário? Confere. Motoboy? Também. Político? Ô.

Arnaldo Angeli Filho, 53 anos, coloca sua prancheta diariamente a serviço da avacalhação ampla, geral e irrestrita. Homem ou mulher, liberal ou conservador, descolado ou careta, não passa nada. Todos ridículos cidadãos da República dos Bananas, um país imaginário, incrivelmente semelhante a uma certa República Federativa do Brasil, formado por incríveis 28 mil charges políticas e tirinhas de comportamento – boa parte reproduzida na Folha de S. Paulo, onde Angeli publica há 37 anos.

No jornal, é o único nome que frequenta regularmente tanto o caderno de política quanto o de cultura. Suas charges, que lhe valeram a reputação de mais contundente chargista político do país, saem quatro vezes por semana no espaço nobre da página 2. Suas tiras, crônicas ilustradas de costumes e maus costumes, ocupam diariamente o topo da seção de quadrinhos. Para Angeli, não tem diferença: “Olho da mesma forma para o comportamento e para a política. Nas charges, penso como crítico de comportamento”. Há tempos é assim.

Ele começou cedo. Emplacou seu primeiro desenho aos 14, na extinta revista Senhor. É autodidata. Cresceu no bairro da Casa Verde, na modesta zona norte de São Paulo. Pai funileiro, mãe costureira, os dois filhos de imigrantes italianos. Anarquistas, graças a Deus? Ao contrário, uma família conservadora, “daquelas que só pensam em cuidar dos filhos e em trabalho, trabalho, trabalho”.

Ele aprendeu a lição (pelo menos essa, já que foi expulso da escola na quinta série, depois de repetir três vezes, e não voltou mais): “Me sinto um funileiro na hora de desenhar, sou um proletário”. Um proletário, diga-se, anterior às conquistas trabalhistas, como a jornada de oito horas. Com a insônia que o acompanha desde a adolescência, dorme apenas quatro horas por dia, e passa praticamente as outras 20 entre pincéis, nanquim e, no momento de colorir, computador.

“Todo mundo na família do meu pai tem mão pra desenho”, conta. “Mas só quem se profissionalizou fomos eu e um primo, que faz painéis pro McDonald’s. Como nossa assinatura é igual, a turma fala ‘Angeli se vendeu!’.” A acusação é recorrente, só o que muda é o comprador. Ora Angeli se vende para a direita, ora para a esquerda: depende de quem está apontando o dedo, de quem está no poder. “Nunca quis servir ninguém”, devolve. “É possível você ter um lado e ser crítico com esse lado também.”

 Quando a ditadura acabou e Angeli já não via tanta graça em debochar da política, desviou seu foco do Planalto Central para as ruas de São Paulo. Criou com o amigo de infância Toninho Mendes a revista bimestral Chiclete com banana – na época, apenas uma canção do repertório de Jackson do Pandeiro, que tropicalistas transformaram em símbolo de miscigenação de ideias, nada a ver com grupo baiano de axé. Em páginas de papel tosco, personagens como Rê Bordosa, Bob Cuspe, Wood & Stock, Walter Ego e Os Skrotinhos protagonizaram, entre 1985 e 90, a insana história da vida privada brasileira.

Angeli seguia um roteiro parecido. Mesmo em meio à loucurinha de sexo, drogas e rock’n’roll, deu um jeito de se casar três vezes. A primeira vez, com uma ex-colega de escola, durou quatro anos. A segunda rendeu 18 anos de união e dois filhos – Pedro, 29, faz parte do coletivo audiovisual Embolex, e Sofia, 25, dá aulas de educação física para crianças. O terceiro, com Carol, está completando 13 anos. Carolina de Carvalho, 33, é formada em arquitetura, trabalha com design gráfico e, como ela mesma diz, “cuida do rapaz”.

No apartamento de dois quartos onde mora e trabalha, no bairro paulistano de Higienópolis, Angeli conversou com a Trip entre cafés, cigarros e, como ninguém tem mais 20 anos, pães de queijo. Pendurado na sala, um pôster reproduz uma tira da série “Angeli em crise”. Lá está o avatar do cartunista, olhando a cidade pela janela. No primeiro quadrinho, ele se gaba: “Carros, edifícios, fumaça... Esta cidade eu conheço muito bem”. No seguinte, a cidade retruca: “Babacão, canalha, bicha, mau-caráter, panaca, tarado!”. E o terceiro conclui: “... e ela a mim, é claro”. Angeli zoa até Angeli.

Seu trabalho mudou a política de alguma maneira?
A política é um pouco mais poderosa, cara. É difícil a visão de um artista, de um crítico ou de um sociólogo mudar isso aí.

E o humor, em geral, muda a política?
O humor muda as pessoas. A política, tenho dúvidas.

Política não é feita por pessoas?
Você chama aquilo de pessoas?!

Você anula o voto?
Já anulei, mas não é uma regra.

Como vai ser nesta eleição?
A seleção?!

A eleição.
[Ri] Realmente não entendo nada de futebol... Mas você perguntou o quê?

Em quem você vai votar na próxima eleição.
Ah, deixa só dizer uma coisa: sou lesado. Minha memória recente não existe. Tem horas em que fico pensando “do que estava falando?!”. Mas você perguntou da eleição...

Em quem vai votar para presidente?
Não sei ainda... O cenário é bom, não tem Maluf no meio, nenhum Sarney. Se bem que o Sarney sempre está em algum lugar...

O que Sarney e Maluf representam?
Sarney ganhou de bandeja o poder, carrega aquela merda toda da ditadura. O Maluf... sou paulistano, qualquer paulistano que pensa tem aversão a ele. É o primeiro dos mauricinhos, perfumado, com corrente de ouro. O movimento da boca dele... [faz uma careta]. Tenho problemas com a anatomia do Maluf.

Já encontrou com eles?
Quando fui homenageado com a ordem do mérito cultural, lá em Brasília, o [senador Eduardo] Suplicy me levou pra conhecer o Senado. De repente, entra na sala do Sarney. Fiquei incomodado. Aí ele levanta e fala, segurando minha mão: “Você é o melhor”. Pra mim foi uma derrota, saí de lá cabisbaixo. Sempre fui cruel nas charges com Sarney, mexi com a família toda, e não funcionou...

E o Maluf?
Também encontrei uma vez, no aniversário de 80 anos da Folha. Fui pego de surpresa, o máximo que consegui foi falar “já fiz muito charge do senhor”. E ele [imitando a voz do Maluf]: “Vai fazeeeendo, vai fazeeeendo!” [risos]. O perfume dele ficou na minha mão... Ele tem alguma distorção mental.
 
O pessoal te chama para esses encontros de candidatos com artistas?
Chama. Não vou. Não me interessa conhecer esses caras. Se o cara é meio legal, você acaba gostando dele. Não quero gostar...

Você é do contra?
[Ri] Hum, acho que sou, sim.

Existe humor a favor?
A publicidade faz, eu não consigo. Quando começou o PT, muitos cartunistas começaram a fazer humor a favor. O próprio Henfil [1944-1988] fez. Isso me incomoda. A função do cartunista é alfinetar, levantar discussão.


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