sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Pronto, falei


Por Jonathan Franzen
Da Revista Piauí

Karl Kraus foi um satirista austríaco, figura de proa na fecunda vida intelectual da Viena fin de siècle. Entre 1899 e 1936, ano de sua morte, editou e publicou a respeitada revista Die Fackel (A Tocha), da qual passou a ser o único colaborador a partir de 1911. Embora provavelmente tivesse odiado os blogs, seu periódico era uma espécie de blog que todos os intelectuais de expressão alemã – de Freud a Kafka e Walter Benjamin – julgavam necessário ler e comentar. Kraus era conhecido sobretudo pelos aforismos (“A psicanálise é aquela doença mental que se julga sua própria cura”, por exemplo) e, no auge de sua popularidade, atraía milhares de espectadores a suas palestras.

O problema é que Kraus é de difícil apreensão numa primeira leitura – e deliberadamente difícil. Era o flagelo do jornalismo descartável; para seus seguidores, que constituíam quase um culto, seu estilo denso e intricadamente codificado se apresentava como uma agradável barreira a ser ultrapassada, e os não iniciados que se retirassem. O próprio Kraus disse do dramaturgo Hermann Bahr, antes de atacá-lo: “Se ele entender uma única frase do meu ensaio, retiro tudo que escrevi.” Quem ler mais de uma vez as frases de Kraus irá descobrir que elas têm muito a nos dizer nesse momento histórico em que vivemos, saturado de meios de comunicação de massa, enlouquecido com a tecnologia, assombrado pelo apocalipse.

Eis aqui, por exemplo, o primeiro parágrafo de seu ensaio “Heine und die Folgen” [Heine e as consequências]:

Duas vertentes da vulgaridade intelectual: a rendição ao conteúdo e a rendição à forma. A primeira percebe apenas o lado material da arte. Tem origem germânica. A outra percebe de maneira artística mesmo o mais grosseiro dos materiais. E tem origem românica [francesa ou italiana]. Para a primeira, a arte é um instrumento; para a outra, a vida é um ornamento. Em qual desses infernos o artista prefere arder? Certamente escolherá viver entre os alemães. Pois embora eles tenham atado a arte ao Leito Maleável de Procusto[1] do seu comércio, também tornaram a vida sóbria, o que é uma bênção: a fantasia prospera, e cada homem pode enquadrar sua luz nas molduras estéreis das janelas. Só me poupem de fitas e adornos! Poupem-me desse bom gosto que lá delicia o olho e irrita a imaginação. Poupem-me dessa melodia da vida a interferir em minha própria música, que só se manifesta em meio ao burburinho do dia útil alemão. Poupem-me desse nível mais alto de refinamento universal a partir do qual é tão fácil observar que o vendedor de jornais em Paris tem mais encanto que um editor prussiano.



Primeira nota de pé de página: a desconfiança com que Kraus encara a “melodia da vida” na França e na Itália ainda tem seu mérito.

O que ele afirma aqui – que qualquer caminhada por uma rua de Paris ou Roma já seja, por si só, uma experiência estética – é confirmado pela atual popularidade da França e da Itália como destinos turísticos, e pelo tom de “podem me invejar” que empregam americanos francófilos e italianófilos ao anunciar seus planos de férias. Se a pessoa diz que vai para a Alemanha e não explica por quê, os outros se perguntam por que não viaja para algum lugar onde a vida seja bela. Ainda hoje, a Alemanha insiste em dar mais valor ao conteúdo do que à forma. Se o conceito de descolado, ou cool, existisse nos tempos de Kraus, ele poderia ter dito que a Alemanha não era nada cool, um lugar nada descolado.

E isso sugere uma versão mais contemporânea da dicotomia de Kraus, a que opõe o Mac ao PC. Afinal, a essência do produto da Apple não é tornar a pessoa cool simplesmente por possuí-lo? Nem interessa saber o que ela estará produzindo no seu MacBook Air. O simples fato de usar um MacBook Air, de usufruir o design elegante de seus hardware e software, configura um prazer em si, como flanar por uma rua parisiense. Já quem trabalha num tosco PC utilitário só pode extrair prazer da qualidade do trabalho em si. Como diz Kraus a respeito da vida germânica, o PC torna “sóbrio” o que você faz; permite-lhe ver sem adorno o que produz. O que era especialmente verdade nos anos dos sistemas operacionais à base de DOS e das primeiras versões do Windows.

Um dos desdobramentos que Kraus fustiga neste ensaio – o atavio vienense da língua e cultura alemãs com elementos decorativos importados das línguas e culturas românicas – encontra correlato nas edições mais recentes do Windows, que recorrem a uma quantidade cada vez maior de características da Apple, mas nem assim conseguem disfarçar sua natureza essencialmente Windows, e portanto nada cool. E o pior: no esforço de adquirir certa elegância Apple, acabam traindo a beleza austera e tradicional da funcionalidade dos PCs. E eles continuam a não funcionar tão bem como os Macs, e são feios, seja pelos padrões de uma elegância cool, seja pelos meramente utilitários.

Ainda assim, fazendo eco a Kraus, prefiro viver cercado de PCs. Se ainda houvesse qualquer possibilidade de eu me bandear para a Apple, ela foi sepultada pela famosa e duradoura série de anúncios destinada a convencer justo pessoas como eu. Os argumentos para a troca são perfeitamente razoáveis, mas apresentados por um Mac personificado (encarnado pelo ator Justin Long), de uma presunção tão intragável que chega a tornar atraentes os piores defeitos do Windows. Ninguém se interessaria por um romance sobre o Mac: o que haveria para contar, além de que tudo ali é tão bacana? Personagens de romances precisam de aspirações concretas, e nos anúncios da Apple o personagem com aspirações era o PC, representado por John Hodgman. Suas tentativas de defesa, outorgando-se por chique e cool, são muitos divertidas, e ele aparece sofrendo, como um ser humano.

Eu estaria sendo relapso se não acrescentasse que o conceito de coolfoi tão cooptado pelas indústrias de tecnologia que uma palavra adjacente em inglês, hip, tornou-se necessária para descrever as vozes virtuais que preferiram a elegância coolde Hodgman [PC] à odiosa figura de Long [Mac]. A volatilidade do que ou de quem é considerado hip nos dias de hoje pode ser um subproduto do que Karl Marx, em texto célebre, identificou como a natureza “inquieta” do capitalismo. Uma das piores características da internet é que ela desperta em cada um a comichão de se transformar em pessoa sofisticada – tomando posição quanto ao que seja ou não hip, e inteirando-se, sob pena de ser considerada nada hip, das posições tomadas por todo mundo a sua volta. Kraus podia não se importar com o caráter intrínseco do que é hip, mas certamente se deleitava em tomar posições e demonstrava um interesse agudo pelas posições alheias. Esse é um dos motivos pelos quais Die Fackel nos lembra um blog. Kraus investia muito tempo em leituras que detestava, para poder detestá-las com plena autoridade.

Acreditem em mim, vocês que têm apreço pela variedade: nas culturas onde todo cretino é dotado de individualidade, a individualidade se converte num troço de cretinos.



Segunda nota de pé de página: ninguém pode dizer coisas assim nos Estados Unidos de hoje, por mais que o bilhão (ou já serão 2 bilhões?) de páginas “individualizadas” do Facebook possa nos encorajar a dizê-las. Em seu tempo, Kraus era conhecido por seus muitos inimigos como o “Rei do Ódio”. Segundo a maioria dos relatos, era doce e generoso na vida particular, com muitos amigos leais. Mas assim que começava a manejar sua retórica polêmica, era capaz de registros de extrema aspereza.

No caso, os “cretinos” individualizados que Kraus tem em mente não pertencem ao povo em geral. Embora pudesse soar elitista, Kraus não se empenhava em ridicularizar as massas ou a cultura popular; a dificuldade deliberada de sua escrita não era uma barricada contra os bárbaros. Falava, ao contrário, das autoridades culturais esclarecidas e brilhantes que adotavam uma individualidade forjada e artificial – pessoas que, na opinião de Kraus, deveriam saber que isso não se faz.

Não sei ao certo se as denúncias estridentes emitidas ex cathedra por Kraus seriam o meio mais eficaz para converter seu público. Mas confesso ter sentido desapontamento semelhante ao seu quando Salman Rushdie, um romancista que a meu ver devia saber que isso não se faz, sucumbiu ao Twitter. Ou quando uma revista que respeito e de posições políticas bem definidas, a n+1, desqualifica as revistas impressas de terminalmente “masculinas”, celebrando a internet como “feminina” e, de algum modo, negligenciando o papel da rede na pauperização acelerada dos autores freelancers. Ou quando bons professores de esquerda que antes resistiam à alienação – criticando o capitalismo pela corrosão incansável de todas as tradições e todas as comunidades que encontra pelo caminho – começam a classificar de “revolucionária” a internet enquanto corporação.

Poupem-me da pitoresca impureza da casca de um velho gorgonzola em detrimento da reconfortante monotonia branca do queijo cremoso! Tanto aqui como lá a vida é dura de digerir. Mas a dieta românica converte em belo o estragado; você engole a isca e emerge boiando de barriga para cima. O regime alemão estraga a beleza e nos põe à prova: como podemos recriá-la? A cultura românica transforma o homem comum em poeta. Lá, a arte é moleza. E o Céu, um inferno.

Submersa nesse parágrafo, encontra-se a ilação de que a Viena de Kraus afigurava-se um caso intermediário – como o Windows Vista. De língua e orientação germânicas, Viena também era a cocapital de um império católico que se espraiava por pontos distantes do sul da Europa; e era apaixonada por sua própria ideia do encanto especial do espírito e do estilo de vida vienenses. (“As ruas de Viena são pavimentadas de cultura”, diz um dos aforismos de Kraus; “as outras cidades usam asfalto”.) Para Kraus, o suposto charme cultural de Viena não passava de um tecido de hipocrisias estendido para acobertar contradições à beira da catástrofe, que com sua sátira ele se empenhava em denunciar. O parágrafo pode ser mais duro com a cultura latina do que com a germânica, mas na verdade Kraus adorava veranear na Itália, onde viveu algumas de suas experiências mais românticas. Para ele, o lugar com uma desconexão realmente perigosa entre forma e conteúdo era a Áustria, que se modernizava rapidamente, mas preservava modelos políticos e sociais datados do início do século xix. Kraus era obcecado pela maneira como os jornais modernos contribuíam para disfarçar as contradições. Como os jornais americanos de William Randolph Hearst, a imprensa burguesa vienense tinha uma gigantesca influência política e financeira, e era notoriamente corrupta. Lucrou horrores com a Primeira Guerra Mundial, e prestou-se a criar e cultivar mitos como o da “morte heroica” ao longo de anos de carnificina mecanizada. A Grande Guerra foi precisamente o apocalipse austríaco que Kraus vinha profetizando, e ele, incansável, satirizou a cumplicidade da imprensa nos acontecimentos.



Viena em 1910 era, portanto, um caso especial. Ainda assim, pode-se afirmar que os Estados Unidos de 2013 são um caso igualmente especial: outro império enfraquecido que acalenta histórias sobre seu caráter excepcional enquanto deriva rumo a algum tipo de apocalipse, fiscal ou epidemiológico, climático-ambiental ou termonuclear. Nossa extrema-esquerda pode odiar a religião e afirmar que somos indulgentes com Israel; nossa extrema-direita pode odiar os imigrantes ilegais e afirmar que somos indulgentes com os negros, e talvez ninguém saiba como a economia deveria funcionar agora que o mercado se tornou global – mas a substância efetiva de nossas vidas cotidianas é pura diversão. Não somos capazes de enfrentar os verdadeiros problemas; gastamos 1 trilhão de dólares no Iraque para não resolver de fato um problema que na verdade nem era um problema; não conseguimos sequer concordar quanto a um meio de impedir que os custos da assistência à saúde devorem nosso PIB. Todos, porém, concordamos em nos entregar aos novos meios de comunicação e às tecnologias descoladas – a Steve Jobs, Mark Zuckerberg e Jeff Bezos – e permitimos que lucrem às nossas custas. Nossa situação parece um pouco com a de Viena em 1910, só que a tecnologia dos jornais foi substituída pela tecnologia digital, e o charme vienense pelo cool americano.

Basta examinar o primeiro parágrafo de um outro ensaio de Kraus, “Nestroy und die Nachwelt” [Nestroy e a Posteridade]. O texto é uma homenagem explícita a Johann Nestroy, figura de destaque da Idade de Ouro do teatro vienense, na primeira metade do século xix. No momento em que Kraus publicou seu ensaio, em 1912, Nestroy era subestimado, incompreendido, e estava basicamente esquecido. E Kraus toma esse fato como sintoma do que havia de errado com a época moderna. Em seu ensaio “Apokalypse”, escrito alguns anos antes, já havia dito: “A cultura não consegue recobrar seu fôlego, e ao final uma humanidade morta jaz ao lado de suas obras, cuja invenção custou tanto de nosso intelecto que dele nada restou para dar algum uso a elas. Alcançamos suficiente complexidade para construir máquinas, mas fomos primitivos demais para fazê-las funcionar a nosso favor.” O que mais me impressiona em Kraus como pensador talvez seja a maneira como reconheceu muito cedo, e com toda a clareza, a divergência entre progresso tecnológico e progresso moral e espiritual. E mais um século de avanços tecnológicos, envolvendo conquistas científicas que pareceriam prodigiosas ainda há pouco, culminou nos vídeos de alta definição, captados com smartphones, em que garotos deixam cair pastilhas mentoladas em garrafas de Pepsi Diet e gritam “Uau!”. Os tecnovisionários da década de 1990 prometeram que a internet iria nos trazer uma era de paz, amor e compreensão, e os executivos do Twitter ainda insistem em martelar os tambores da utopia, reivindicando crédito pelo despertar da Primavera Árabe. A julgar pelo que dizem, não se concebe que a Europa Oriental tenha se libertado dos soviéticos sem recorrer a celulares, ou que um punhado de americanos tenha se revoltado contra os britânicos e produzido a Constituição americana sem uma rede 4G. “Nestroy e a posteridade” começa assim:

Não podemos celebrar sua memória do modo como deveríamos, reconhecendo uma dívida que somos chamados a honrar, e por isso preferimos celebrar sua memória admitindo uma falência que nos desonra – a nós, habitantes de um tempo que perdeu sua condição de posteridade... Como pôde o eterno Arquiteto fracassar em não aprender com as experiências desse século? Pois desde que existem gênios, eles sempre se instalam em seu tempo a título de inquilinos temporários, enquanto o gesso ainda seca nas paredes; depois se retiram e legam as benesses à humanidade. Desde que existem engenheiros, porém, a casa vem ficando cada vez menos habitável. Deus tenha piedade do desenvolvimento! Melhor que Ele impeça o nascimento de artistas do que o consolo de que esse nosso futuro será melhor por eles terem vivido antes de nós. O nosso mundo! Ele que tente dar a impressão de que é uma posteridade, e, à menor insinuação de que deve seu progresso a algum desvio da Mente, responderá com uma risada que parece dizer “Mais dentistas preferem Pepsodent”. Uma risada inspirada por uma ideia de Roosevelt e orquestrada por Bernard Shaw. É a risada que se fartou de tudo e pode fazer o que quiser. Pois os técnicos queimaram as pontes, e o futuro é: o que vier automaticamente.

Hoje em dia, o refrão é “não há como deter as novas tecnologias”. A resistência mais disseminada a elas se limita quase exclusivamente a questões de saúde e segurança, enquanto várias lógicas – da teoria da guerra, da tecnologia, do mercado – continuam a se expandir no automático. Descobrimos que vivemos num mundo dotado de bombas de hidrogênio porque bombas de urânio não dariam conta do recado; descobrimos que empregamos a maior parte de nossas horas de vigília mandando mensagens de texto, enviando e-mails, tuitando e postando em aparelhos com telas coloridas, porque a Lei de Moore[2] decretou que é possível. Dizem-nos que, para continuar economicamente competitivos, precisamos deixar de lado o ensino das humanidades e incutir em nossos filhos a “paixão” pela tecnologia digital, preparando-os para passar o resto da vida numa reeducação permanente, que lhes permita acompanhar as novidades. A lógica diz que, se quisermos comprar na Zappos.com e gravar digitalmente os programas de tevê em casa – e isso quem não quer? –, precisamos dar adeus à estabilidade no emprego, entregando-nos a uma vida de permanente ansiedade, tornando-nos tão inquietos quanto o próprio capitalismo.



Não só não sou adepto do ludismo, como tampouco tenho certeza de que os luditas originais o fossem de fato. (Pode ter-lhes parecido simplesmente adequado inutilizar os teares a vapor que vinham ceifando seus empregos.) Passo o dia inteiro, todo dia, recorrendo a softwares e ao silício, encantado com todos os aspectos do meu ultrabook Lenovo, exceto o nome. (Trabalhar num troço chamado IdeaPad me desencoraja a ter ideias.) Mas algum tempo atrás, quando tive o destempero de declarar em público que o Twitter era “uma estupidez”, a resposta dos adictos em Twitter foi me chamar de ludita. Aqui pra vocês, seus idiotas! Foi como se eu dissesse que fumar cigarros era “uma estupidez”, só que sem provas médicas em meu apoio. Por algum tempo, houve quem se preocupasse com a possibilidade de os celulares provocarem câncer no cérebro, mas ficou demonstrado que a conexão era praticamente inexistente, e agora ninguém mais precisa se preocupar.

Essa velocidade não percebe que sua conquista serve para fugir. Presentes em corpo, repulsivos em espírito, perfeitos exatamente como são, esses nossos tempos têm a esperança de serem ultrapassados pelos tempos vindouros, e que as crianças, geradas pela união do esporte com a máquina e nutridas pelos jornais, venham a ser capazes de rir ainda melhor depois... Não há como meter-lhes medo; se um espírito aparece, a resposta é: já temos tudo de que precisamos. A ciência está a postos para assegurar que seguirão hermeticamente isoladas de qualquer coisa que venha do além. Esta coisa, que dá a si mesma o nome de mundo, por ser capaz de percorrer-se em cinquenta dias, estará acabada assim que for capaz de terminar seus cálculos. Para poder encarar a pergunta “E depois?”, ainda acredita dar conta do que ficar de fora. E o cérebro mal faz ideia de que já raiou
o dia da grande seca. E então o último dos órgãos silencia, mas a última das máquinas continua a zumbir até parar ela também, porque seu operador esqueceu a Palavra. Pois o intelecto não entendeu que, na ausência do espírito, pode até crescer no espaço de sua própria geração, mas perderá a capacidade de se reproduzir. Se duas vezes dois são realmente quatro, como dizem, isso se deve ao fato de Goethe ter escrito o poema “Quietude no oceano”. Mas hoje as pessoas conhecem tão exatamente o produto de dois por dois que, dentro de 100 anos, não serão mais capazes de calcular qual seja. “Alguma coisa que nunca existiu antes deve ter surgido no mundo. Uma máquina infernal da humanidade.”

De todas as citações de Kraus, esta deve ser a que mais significa para mim. Nessa passagem, ele evoca o Aprendiz de Feiticeiro – o desencadeamento involuntário de consequências sobrenaturalmente destrutivas. Embora esteja falando do jornal moderno, sua crítica, na verdade, aplica-se melhor ainda ao tecnoconsumismo contemporâneo. Para Kraus, o que os jornais tinham de infernal era a maneira fraudulenta como associavam os ideais iluministas a uma busca insaciável de lucro e poder. Com o tecnoconsumismo, toda uma retórica humanista que fala em “empoderamento”, “criatividade”, “liberdade”, “conectividade” e “democracia” favorece a monopolização declarada dos titãs da tecnologia; a nova máquina infernal parece cada vez mais obedecer apenas à lógica de seu próprio desenvolvimento, e é muito mais escravizadora e viciante, e mais associada à gratificação de nossos piores impulsos, que os jornais jamais terão sido. Na verdade, o que Kraus diz de Nestroy mais adiante poderia ser dito hoje sobre o próprio Kraus: “Ele ataca seus pequenos arrabaldes com a aspereza digna de uma causa vindoura.” Os lucros e o alcance da imprensa vienense eram ridiculamente pequenos se comparados aos gigantes de hoje nos campos da tecnologia e da comunicação. O mar de dados triviais, falsos ou vazios ficou milhões de vezes maior. Kraus estava fazendo um mero prognóstico quando imaginou o dia em que as pessoas não saberiam mais somar ou subtrair; hoje, é difícil terminar uma refeição com amigos sem que alguém recorra ao respectivo iPhone para se lembrar de algum fato cuja rememoração costumava ser de responsabilidade direta do cérebro. Os adeptos da tecnologia, claro, não enxergam nada de errado nisso. Dizem que os seres humanos sempre delegaram a memória a fontes externas – os poetas, os historiadores, os cônjuges, os livros. Mas sou filho dos anos 60, de maneira que vejo uma diferença considerável entre deixar por
conta de a esposa lembrar a data do aniversário da sobrinha e entregar as funções básicas da memória a um sistema de controle corporativo global.

Uma invenção capaz de espatifar o Koh-i-noor [à época, o maior diamante do mundo]e tornar sua luz acessível a todos que não a possuem. E já faz cinquenta anos que vem funcionando, essa máquina em que a Mente ingressa pela frente para emergir atrás em forma impressa, diluída, distribuída, destruída. Aquele que dá perde, aqueles que recebem se empobrecem, e os intermediários ganham a vida...

Eis uma amostra da prosa krausiana. E a questão sobre a qual quero refletir agora é a seguinte: por que Kraus sentia tanta raiva? Foi filho temporão de uma família próspera de judeus assimilados cujos negócios produziam renda suficiente para assegurar sua independência financeira por toda a vida. E isso, por sua vez, permitia que ele publicasse Die Fackel exatamente como queria, sem qualquer concessão a assinantes ou anunciantes. Tinha um círculo próximo de bons amigos e um círculo bem maior de admiradores, muitos deles fanáticos, alguns famosos. Embora nunca tenha se casado, manteve alguns notáveis casos amorosos, além de uma relação profunda de longa duração. Seu único problema significativo de saúde era um desvio de coluna, o que lhe proporcionou a isenção do serviço militar. Diante disso, como explicar que uma pessoa tão afortunada se tenha transformado no Rei do Ódio?

Eu me pergunto se Kraus não sentia tanta raiva justamente por ser tão privilegiado. Mais adiante, no ensaio sobre Nestroy, o Rei do Ódio defende essa raiva nos seguintes termos: “O ácido quer o brilho; a ferrugem diz que o ácido seria apenas corrosivo.” Kraus odiava a linguagem vulgar porque amava a linguagem refinada – porque dispunha dos dons intelectuais e da largueza financeira que lhe permitiram cultivar esse amor. E o sujeito que tem sorte na vida não consegue deixar de esperar que tudo continue a funcionar do modo como prefere; quando o mundo insiste em tomar um rumo errado, percorrendo os caminhos da corrupção e do mau gosto, sente que o mundo o traiu. Isso o leva a sentir raiva, e essa raiva o isola ainda mais, enfatizando a sensação de ser uma criatura à parte.

Como qualquer artista, Kraus desejava ser um indivíduo. Durante boa parte da vida, cultivou uma atitude desafiadora e antipolítica; parecia formar alianças profissionais só com a intenção de torpedeá-las mais adiante da maneira mais espetacular. Dado que sua peça teatral favorita era o Rei Lear, eu me pergunto se não veria seu próprio destino em Cordélia, a filha temporã predileta que ama o rei e que, justamente por ser a filha preferida, confiante no amor do rei, tem a integridade de se recusar a aviltar sua linguagem e mentir para ele quando o vê senil. Também no caso de Kraus, o privilégio o põe a caminho de se tornar um indivíduo independente, mas o mundo parece obstinar-se em frustrá-lo. O mundo o desaponta, como Lear desaponta Cordélia, e em Kraus isso se transforma num pretexto incontornável para a raiva. Em sua ânsia por um mundo melhor, em que a verdadeira individualidade fosse possível, ele persiste em aplicar o ácido de seu ódio a tudo que é falso.

Deixem-me usar o exemplo da minha vida, já que afinal de contas eu me vejo na história de Kraus.

Fui o filho tardio de uma família amorosa que, embora não rica a ponto de me permitir viver de renda, tinha o suficiente para me botar numa boa escola pública e me mandar para uma faculdade excelente, onde aprendi a amar a literatura e a linguagem. Eu era um americano branco, do sexo masculino e heterossexual, com bons amigos e saúde perfeita. Ainda assim, apesar de todos os privilégios, tornei-me uma pessoa extremamente raivosa. A raiva tomou conta de mim num momento tão próximo da época em que me apaixonei pelos escritos de Kraus que esses dois acontecimentos se tornaram praticamente indistinguíveis.

Não nasci enraivecido. A bem da verdade, o que ocorreu foi o contrário. Pode parecer exagero, mas penso que até os 22 anos nunca havia tomado conhecimento da raiva. Na adolescência, tive meus momentos de irritação e rebeldia contra a autoridade, mas, como Kraus, vivi conflitos mínimos com meu pai, e o mais grave que se pode dizer da relação com minha mãe é que trocávamos alfinetadas como um casal de velhos. A raiva de verdade, a raiva como modo de vida, ela me era estranha até certa tarde de abril de 1982. Eu estava numa plataforma deserta da estação ferroviária de Hanover. Chegara de Munique e esperava o trem para Berlim; fazia um cinzento dia alemão, e comecei a jogar na plataforma um punhado de moedas alemãs que ia tirando do bolso. Havia nisso um elemento de hostilidade antigermânica, porque pouco antes eu tivera uma experiência horrível com uma velha senhora alemã aferrada a cada vintém, e me fez bem imaginar outras velhas senhoras alemãs aferradas a seus vinténs curvando-se para catar aquelas moedas, como eu sabia que haveriam de fazer, agravando desse modo as dores que sentiam nos joelhos e quadris. Meu ato de atirar aquelas moedas, porém, era ditado por uma raiva mais geral. Sentia uma raiva do mundo que nunca tinha me ocorrido antes. A causa imediata era a frustração por não ter conseguido fazer sexo com uma garota incrivelmente linda em Munique; mas não tinha sido um fracasso de fato, e sim uma decisão da minha parte. Algumas horas mais tarde, na plataforma de Hanover, ao descartar as moedas assinalei minha entrada na vida que sucedeu a essa decisão. Em seguida, embarquei num trem e voltei para Berlim, onde vivia graças a uma bolsa do Programa Fulbright, e me matriculei num curso sobre Karl Kraus.



***



Como presente de casamento, três meses depois que voltei de Berlim, meu professor de alemão na faculdade, George Avery, me deu uma edição encadernada de Die Dritte Walpurgisnacht [A Terceira Noite de Walpurgis], a grande crítica do nazismo de autoria de Kraus. George, que tinha aberto meus olhos para a relação entre literatura e vida vivida, vinha se transformando numa espécie de segundo pai para mim, um pai que lia romances e cultivava muitos prazeres. Fui um bom discípulo, e deve ter sido o desejo de me mostrar merecedor, de deixar claro o quanto o amava, que me levou, nos meses subsequentes ao casamento, a tentar traduzir os dois difíceis ensaios de Kraus que trouxera comigo de Berlim.

Trabalhava nessa tradução no final das tardes, depois de passar seis ou sete horas tentando escrever meus contos, no quarto do pequeno apartamento em Somerville que minha mulher e eu alugávamos por 300 dólares mensais. Quando terminei a primeira versão dos dois textos, mandei-os para George. Ele os devolveu algumas semanas mais tarde, com anotações nas margens em sua letra microscópica, além de uma carta em que aplaudia meu esforço, mas também reconhecia que traduzir Kraus podia ser “de uma dificuldade diabólica”. Levando em conta suas sugestões, reli com novos olhos as traduções rascunhadas e me desanimei ao constatar como soavam artificiais e eram praticamente ilegíveis. Quase todas as frases precisavam ser reformuladas, e eu me sentia tão esgotado pelo trabalho já feito que acabei enterrando os textos numa pasta. Mas Kraus me transformou. Quando desisti dos contos e voltei ao meu romance, não conseguia esquecer seu fervor moral, sua fúria satírica, seu ódio aos meios de comunicação de massa, sua preocupação com o apocalipse e sua ousadia como frasista. Decidi expor as contradições americanas da mesma forma como ele havia exposto as austríacas, e resolvi fazê-lo por meio de um romance, gênero popular que Kraus desdenhava, mas eu não. Ainda tinha esperança de conseguir levar a cabo o projeto de traduzir suas obras, depois que meu romance me tornasse famoso e milionário. Em nome dessas expectativas, colecionava recortes do Sunday Times e do Boston Globe diário, que minha mulher e eu assinávamos. Por algum motivo – talvez para me consolar com a ideia de que havia outras pessoas no mundo que se casavam –, eu lia religiosamente as páginas de anúncios matrimoniais, recortando títulos como CYNTHIA PIGOTT CASA-SE COM LOUIS BACON e, minha favorita, MISS LEBOURGEOIS CASA COM ESCRITOR.

Eu lia o Boston Globe com um olhar krausiano e especialmente frio, e o jornal, prestativo, sempre correspondia me enfurecendo com sua trivialidade, seu descaso com a revisão e os trocadilhos idiotas de suas manchetes sobre mudanças climáticas. Fiquei tão indignado com as gracinhas sem razão ou sentido de chamadas como TROMBANDO NA CHUVA – que imaginei nada divertida para a família de alguém que tivesse morrido numa colisão frontal de carro – ou A CALMA OUTONAL – ofensiva para o quanto eu levava a sério o perigo nuclear – que finalmente escrevi uma indignada carta em tom krausiano para o editor. O Globe chegou a publicar na seção dos leitores, mas conseguiu, com seu característico descuido, trocar a expressão que me incomodava por A CALMA AUTOMÁTICA, o que deixava minha reclamação incompreensível. Fiquei tão indignado que mais tarde dedicaria várias páginas do meu segundo romance a zombar do jornal e mostrar o quanto era ordinário. A raiva que eu sentia a essa altura – dirigida não só contra os meios de comunicação, mas contra a cidade de Boston, os motoristas de Boston, as pessoas do laboratório onde eu trabalhava, o computador do laboratório, minha família, a família da minha mulher, Ronald Reagan, George H. W. Bush, os teóricos da literatura, os escritores minimalistas de ficção então na moda e os homens que se divorciavam das mulheres – hoje me é estranha. Devia estar ligada ao isolamento profundo da minha vida de casado e à obstinação implacável com que, em minha pobreza e ambição, eu me negava o direito a qualquer prazer.

Devia haver também, como já disse, algo da raiva que a pessoa privilegiada sente do mundo quando este insiste em decepcioná-la. Se não cheguei a acumular dessa raiva o bastante para que me transformasse num sucessor condigno de Kraus, isso se devia ao gênero que escolhi. Quando um satirista radical conquista alguma popularidade, isso só pode significar que ele não foi entendido por seu público. A falta de público digno do respeito de Kraus era previsível, e assim ele nunca precisou abdicar de sua raiva: podia dedicar-se a ser o Rei do Ódio em sua escrivaninha, depois pousar a pena e se entregar a sua calorosa vida pessoal em companhia dos amigos. Já o romancista, quando este encontra um público, ainda que pequeno, estabelece com seus leitores uma relação diferente, pois se baseia no reconhecimento, e não num mal-entendido. Diante de uma relação assim, diante de um público assim, torna-se simplesmente desonesto continuar cultivando tanta raiva. E a operação mental que a ficção basicamente requer, a de imaginar como seria ser alguém que você não é, concilia-se ainda menos com essa raiva. Quanto mais escrevo romances, menos certeza tenho de estar com a razão e mais me inclino a entender pessoas como os revisores de provas do Boston Globe. Além disso, com a chegada ao poder da internet, disseminando informações tão indignas de confiança quanto fáceis de ler, desenvolvi tamanha gratidão pelo fato de continuarem a existir jornais como o New York Times e o Boston Globe, persistindo em remunerar repórteres razoavelmente responsáveis para escrever suas matérias, que perdi qualquer interesse em destruí-los.



E assim, em algum ponto da década de 90, retirei as más traduções de Kraus das gavetas do meu arquivo ativo e as releguei a uma armazenagem mais profunda. As frases de Kraus não paravam de me passar pela cabeça, mas eu tinha a impressão de tê-lo superado, de que ele podia ser o tipo de escritor certo para um angry young man, mas não, no final das contas, para um romancista. E o que hoje me traz de volta a ele é, em parte, a incômoda sensação de que o apocalipse, depois de parecer ter-se afastado por algum tempo, ainda é uma ameaça presente.

No meu cantinho do mundo, ou seja, a literatura de ficção americana, Jeff Bezos, da Amazon, pode não ser o Anticristo, mas sem dúvida parece um dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. A Amazon deseja um mundo onde os livros serão publicados ou pelo autor ou pela própria Amazon, em que os leitores vão se pautar pelas resenhas da Amazon para escolher suas leituras e os autores serão os responsáveis por sua própria promoção. As obras de fofoqueiros, tuitadores e cascateiros, e de gente com dinheiro para pagar a centenas de outras pessoas para que escrevam resenhas dando-lhes cinco estrelas, é que irão florescer nesse mundo. Mas qual o destino de quem se torna escritor justamente porque a fofoca, a tuitagem e a cascata lhe parecem formas intoleravelmente superficiais de troca social? O que acontecerá com as pessoas que quiserem comunicar-se em profundidade, de indivíduo a indivíduo, no silêncio e na permanência da palavra escrita, e que foram formadas pelo amor aos autores que escreviam quando o mundo editorial ainda supunha algum tipo de controle de qualidade e as reputações literárias não dependiam apenas da decibelagem autopromocional? Ao mesmo tempo que um número cada vez menor de leitores consegue abrir caminho – em meio a todo o ruído, tantos livros decepcionantes e resenhas de araque – até a obra produzida pela nova geração desse tipo de escritor, a Amazon vem atuando cada vez mais em prol de transformar os escritores nos mesmos trabalhadores sem futuro que as empresas que lhe prestam serviços empregam em seus armazéns, e que se esfalfam cada vez mais por uma paga cada vez menor – e sem garantias trabalhistas, porque os depósitos se erguem em locais onde são a única empresa que ainda oferece emprego. E quanto maior é a parcela da população que vive como esses trabalhadores, maior a pressão para reduzir o preço dos livros e maior o sufoco dos livreiros tradicionais, pois quando a pessoa não ganha bem ela quer ser entretida de graça, e quando a vida dela é muito dura, tudo que ela quer é gratificação instantânea (“Entrega gratuita em 24 horas!”).

E assim o livro físico passa a figurar na lista de espécies ameaçadas, os resenhistas criteriosos entram em extinção, as livrarias independentes desaparecem, os romancistas literários ficam restritos à autopromoção ao estilo de Jennifer Weiner, as Seis Grandes Editoras [as chamadas Big Six: Hachette, a Georg von Holtzbrinck/Macmillan, a Penguin, a HarperCollins, a Random House e a Simon & Schuster] se extinguem e são devoradas pela Amazon: o que só lembra um apocalipse se a maioria dos seus amigos for de escritores, editores ou livreiros. Além de ser possível que a história ainda não tenha chegado ao fim.
A experiência das resenhas virtuais de autoria do consumidor pode resultar numa corrupção tão flagrante (dizem que um terço de todas as resenhas publicadas na rede já é forjado) que as pessoas acabarão pedindo o retorno dos resenhistas profissionais. Um número economicamente significativo de leitores pode acabar reconhecendo o custo humano e cultural da hegemonia da Amazon, voltando a procurar as livrarias locais ou pelo menos recorrendo à barnesandnoble.com, que oferece os mesmos livros e um aparelho melhor para a leitura de livros eletrônicos, e cujos proprietários são politicamente progressistas. As pessoas podem ficar tão enjoadas do Twitter quanto enjoaram do cigarro. As últimas versões do Twitter e do Facebook para fazer dinheiro ainda me parecem parte esquema de pirâmide, parte wishful thinking, parte uma repugnante vigilância panóptica.



Eu poderia, é verdade, me estender numa argumentação apocalíptica sobre a lógica da máquina, que hoje se tornou global e vem acelerando a desnaturalização do planeta e a esterilização de seus oceanos. Poderia apontar a transformação das florestas boreais do Canadá num lago tóxico de subprodutos da extração de petróleo da areia betuminosa, a derrubada das florestas asiáticas ainda remanescentes para a produção chinesa de móveis ultrabaratos para a Home Depot, o represamento dos rios amazônicos e o abate irreversível de suas florestas em favor da produção de carne e da extração mineral, toda a mentalidade de “Danem-se as consequências, queremos comprar um monte de porcarias e a preço barato, com entrega gratuita em 24 horas”. E ao mesmo tempo o superaquecimento da atmosfera, o calamitoso abuso de antibióticos pelo agronegócio, a descuidada e difundida intromissão nos núcleos de células vivas, que ainda pode se revelar tão desastrosa quanto a intromissão nos núcleos dos átomos. E, sim, as ogivas termonucleares que continuam em seus silos e submarinos.

Mas o apocalipse não significa necessariamente o fim físico do mundo. Na verdade, a palavra tem o sentido mais direto de julgamento cósmico final. Na crônica que Kraus faz dos crimes contra a verdade e a linguagem em Os Últimos Dias da Humanidade, ele não se refere apenas à destruição física. Com efeito, o título dessa peça seria mais bem traduzido por “os últimos dias da condição humana”: “desumanizar” não significa “despovoar”, e se a Primeira Guerra representou o fim da humanidade na Áustria, não foi porque a população do país tenha sido extinta. Kraus ficou assombrado com a carnificina, mas ele a encarava como o resultado, e não a causa, da extinção da humanidade em pessoas que ficaram vivas. Vivas mas condenadas, sofrendo de uma maldição cósmica.

No entanto, um juízo como esse depende, claro, do que se entende por “humanidade”. Goste eu dele ou não, o mundo que vem sendo criado pela máquina infernal do tecnoconsumismo não deixa de ser um mundo produzido por seres humanos. No momento em que escrevo aqui, tenho a impressão de que metade dos anúncios veiculados nas redes de tevê exibe pessoas debruçadas sobre seus smartphones; um deles, particularmente longo e ofensivo, mostra os convidados de uma festa de casamento, todos na faixa dos 20 e poucos anos, dedicados a fotografar com seus celulares e enviar as fotos uns para os outros. Descrever esse espetáculo desalentador, em termos apocalípticos, como a “desumanização” de um casamento, é defender certa concepção moral da humanidade; e se você for um seguidor de Nietzsche, rejeitando o juízo moral em favor do estético, vê-se imediatamente diante da convincente conexão, feita por Bourdieu, da estética com a classe e o privilégio; em seguida, quando dá por si, está traduzindo Os Últimos Dias da Humanidade como “os últimos dias em que ainda se dá valor às coisas que pessoalmente acho lindas”.

O que talvez nem esteja tão errado. Pode ser que o apocalipse, paradoxalmente, seja sempre individual, sempre pessoal. Tenho um breve direito de permanência na Terra, ladeado por infinitos parênteses de nada, e durante a primeira parte dessa estada me apego a certo conjunto de valores humanos inevitavelmente determinados por minhas circunstâncias sociais. Tivesse eu nascido em 1159, quando o mundo era mais estável, podia com certeza acreditar, aos 53 anos, que a geração seguinte iria ter os mesmos valores que eu e dar valor às mesmas coisas que eu apreciava; nenhum apocalipse me ameaçaria. Mas nasci em 1959, quando a tevê era uma coisa a que só se assistia em horário nobre, as pessoas escreviam cartas e as punham no correio, toda revista ou jornal tinha uma alentada seção sobre livros, editoras veneráveis investiam em longo prazo em jovens escritores, o New Criticism reinava nos departamentos de inglês das universidades e a bacia Amazônica ainda estava intacta, enquanto os antibióticos só eram usados para tratar infecções sérias, e não empurrados goela abaixo a bois e vacas saudáveis. Não era necessariamente um mundo melhor (todos os americanos tinham abrigos antinucleares, e as piscinas do país eram segregadas), mas foi o único mundo que conheci e no qual podia tentar encontrar meu lugar como escritor. E assim, hoje, 53 anos mais tarde, a queixa característica de Kraus – de que o nexo constituído pela tecnologia e os meios de comunicação de massa deixam as pessoas com o foco permanente no presente, negligenciando o passado – não tem como deixar de soar verdadeira aos meus ouvidos. Kraus foi o primeiro grande exemplo de escritor que viveu plenamente o quanto a modernidade – cuja essência é a aceleração constante do ritmo da mudança – cria, por si só, as condições para o apocalipse pessoal. É natural que, sendo o primeiro, essas mudanças lhe parecessem específicas e singulares, mas a verdade é que ele registrava um fenômeno destinado a se tornar uma das características gerais da modernidade. A experiência de cada uma das gerações que se sucedem é tão diferente da anterior que sempre haverá quem julgue ter perdido em definitivo qualquer conexão com os valores essenciais do passado. Enquanto durar a modernidade, todos os dias parecerão a alguém os últimos dias da humanidade. 


[1] Leito de Procusto na mitologia grega refere-se à lenda do bandido Procusto, que oferecia aos visitantes uma cama de ferro de tamanho único. Se o usuário fosse maior do que a cama, Procusto cortava-lhe o que sobrava das pernas. Se fosse menor, ele as esticava com cordas. É um símbolo da imposição de padrões e da supremacia da forma.



[2] Em 1965, Gordon Moore (cofundador da Intel) publicou um artigo em que afirmava que a cada
18 meses a capacidade de processamento dos computadores dobraria em complexidade pelo mesmo custo original. Essa constatação ficou conhecida como Lei de Moore.


quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Por quem os sinos dobram?


Por Elder Dias
Da Revista Bula

Com raras exceções, já se vão longínquos os tempos em que a Igreja era a referência de uma comunidade em todos os assuntos, inclusive em termos de comunicação. Com TV, computador, internet e celular à mão, soa anacrônico e até jocoso, além de improvável, imaginar que o sino de uma capela pos­sa anunciar a uma população inteira um novo fato da localidade.

Mas era assim quando em 1764 o escritor e clérigo anglicano John Donne, um parente de São Thomas More, santo católico decapitado pelo rei Henrique VIII, padroeiro dos políticos — que era tio-avô de Elizabeth Heywood, mãe de Donne —, redigiu, em sua “Meditação 17” o trecho hoje famoso: “Nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti” (“And therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee”). Na segunda metade do século 16 e na primeira do século 17, quando viveu John Donne, a igreja era o lugar, Deus, o fim e a fé, o meio; nada mais natural que os religiosos centralizarem a comunicação da época.

A citação no parágrafo anterior é parte do trecho com que Ernest Heming­way abre “Por Quem os Sinos Dobram”, livro de 1940, que receberia versão para o cinema três anos depois — com direção de Sam Woods e roteiro de Dudley Nichols — com direito a um Oscar (de me­lhor atriz coadjuvante, com Katina Paxinou) e indicação para mais oito categorias, entre elas a de melhor filme.

Apesar de cético, He­mingway tem muito de influência do anglicano John Donne. A citação do inglês no livro, portanto, é mais do que uma simples referência: talvez esteja mais para deferência, ou até reverência. O que chega a ser uma ironia: Donne, um dos principais arquitetos do pensamento de Hemingway, esteve no porão até seu reaparecimento, no preâmbulo de “Por Quem os Sinos Dobram”. O escritor estadunidense tornou-se, portanto, o arauto contemporâneo da voz importante, mas esquecida, de séculos atrás.

Em comum, embora de formas diferentes, Donne e Hemingway tinham em si a chama do existencialismo. John Donne, especialmente no período em que produziu as “Meditações”, quando esteve acometido de uma doença grave, dialogou com a morte em seus escritos.

Hemingway, por sua vez, sempre se referiu à inevitabilidade do fim da vida — e com isso à desesperança e à futilidade das coisas — como tema de suas obras. Ele mesmo tinha visto a morte de perto como vo­luntário durante a 1ª Guerra Mundial e depois como jornalista, ao cobrir a 2ª Guer­ra e a Guerra Civil Espa­nhola, que inspirou “Por Quem os Sinos Dobram”. O personagem principal do romance é Robert Jordan, que, como vários em suas histórias, tem muito de “alter ego”: em uma cena, Jordan joga em um lago a pistola que era de seu avô, soldado na Guerra Civil americana e com a qual seu pai se matou.

A referência é clara à morte do pai do próprio escritor, Edmond, em 1929. Com a saúde abalada e em meio à crise financeira após a quebra da Bolsa de Nova York, ele se suicidou. A mãe de Hemingway, Grace, em uma atitude enigmática, enviou a ele pelo correio a pistola usada por Edmond no ato. Hemingway morava, então, na Flórida, com Pauline Pfeiffer, a segunda das quatro esposas que teve. A proximidade do escritor com temas como depressão e suicídio se agravou a partir da década de 1950, quando passou por diversos problemas de saúde. Em 1961, ele se deu um tiro com a espingarda que usava para matar pombos. Morava em Ketchum, no Estado de Idaho (EUA), onde foi sepultado. O sino que então dobrou por Edmond já dobrava também pelo filho. O trecho do sermão de Donne no livro tinha se tornado uma ironia cruel no destino de Hemingway.

“Por Quem os Sinos Dobram” influenciaria também o pensamento de um controverso e genial artista brasileiro: Raul Seixas, que batizou seu 9º álbum — e uma de suas canções — com esse título. Além de leitor de Hemingway, Raul devorava também outros escritores e filósofos — suas canções tem, por vezes, claras inspirações em Niet­zsche, por exemplo. E como Donne e Hemingway, o roqueiro baiano também tinha, em toda a sua obra, uma dialética particular com a morte, o que fica explícito em “Canto Para a Minha Morte” (… vou te encontrar vestida de cetim/ Pois em qualquer lugar esperas só por mim/ E no teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não desejo,/ mas tenho que encontrar…”).

O pensamento e as palavras dos escritores deveriam levar a ricas reflexões de seus leitores, sobre o que cada um tem feito de sua própria caminhada. O problema é que o ritmo da vida no século 21 não deixa muito espaço para tanto. Leitores de Donne e Hemingway há poucos; leitores que os interpretem de forma profunda, muito menos. Os sinos continuam dobrando para cada um, hoje em formato tecnológico, seja por meio da música do plantão do “Jornal Nacional”, seja em um “trending topic” do Twitter. Quase ninguém se dá conta de que suas ressonâncias são também um pré-réquiem pessoal.

Para quem quer entrar no mundo metafísico de John Donne, a Editora Landmark lançou um volume com as “Meditações”, em edição bilíngue, disponível também em forma de e-book. Sobre “Por Quem os Sinos Dobram”, é o romance de Hemingway que aparece entre os 100 livros do século 20, em lista elaborada em conjunto pela Fnac e pelo “Le Monde”. Curiosamente, “O Velho e o Mar”, considerada a obra-prima do escritor e que o levou ao Prêmio Pulitzer em 1953 e ao Nobel de Literatura em 1954, não está relacionado.

John Donne: Por quem os sinos dobram?
Eles dobram por ti

John Donne

Talvez aquele para quem estes sinos dobram esteja tão mal que ele sequer sabe que dobram por ele. E talvez eu possa me achar muito melhor do que sou, como fazem aqueles que me rodeiam, e ao ver o meu estado podem tê-lo feito dobrar por mim, e eu nem saiba disso. A Igreja é católica, universal, e assim são todas as suas ações; tudo o que ela faz pertence a todos. Quando batiza uma criança, esta ação diz respeito a mim, pois esta criança é ligada a essa cabeça que também é a minha, enxertada neste corpo do qual sou um membro. E quando a Igreja enterra um homem, esta ação também me diz respeito; toda a humanidade provém de um autor, e forma um único livro; quando um homem morre, um capítulo não é arrancado do livro mas traduzido para uma linguagem melhor, e cada capítulo deve ser assim traduzido; Deus emprega inúmeros tradutores; algumas peças são traduzidas pela idade, algumas pela doença, algumas pela guerra, algumas pela justiça, mas a mão de Deus está em cada tradução, e sua mão reunirá outra vez todas as nossas folhas espalhadas formando a biblioteca onde cada livro deverá permanecer aberto aos outros, da mesma maneira que, quando o sino toca chamando para o sermão, não exorta apenas o pregador mas também toda a congregação; nos chama a todos, e ainda mais a mim, que sou trazido para perto da porta por esta doença.

Houve uma disputa e mesmo um processo (onde se misturaram piedade e dignidade, religião e opinião) sobre qual ordem religiosa deveria tocar primeiro chamando para as orações no início da manhã, e foi determinado que tocaria primeiro aquela que acordou mais cedo. Se entendermos bem a dignidade deste sino, dessas badaladas para a nossa oração da noite, ficaríamos felizes tornando-as nossas, madrugando, nessa aplicação, que poderia ser nossa e também sua, como de fato é. O sino toca por ele, e pelas coisas que fez; e embora intermitente, ainda nesse minuto, como no momento em que tocou sobre ele, ele já está unido a Deus. Quem não levanta seu olhar para o sol quando ele nasce? Mas quem tira o olho de um cometa quando irrompe no céu? Que não inclina seu ouvido a qualquer sino, que toca em qualquer ocasião? Mas quem pode removê-lo desse sino no momento em que um pedaço de si próprio está passando para fora deste mundo?

Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se tivesse perdido um promontório, ou perdido o solar de um amigo teu, ou o teu próprio. A morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido; por isso, nunca mandes perguntar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

Nem podemos chamar isso de mendicância de miséria, ou empréstimo de miséria, como se não fossemos nós mesmos suficientemente miseráveis, mas precisássemos buscar mais na casa ao lado e tomar para nós a miséria dos nossos vizinhos. Na verdade esta seria uma cobiça desculpável, se o fizéssemos, pois a desgraça é um tesouro do qual poucos homens têm o suficiente. Nenhum homem tem desgraças o suficiente, eles não são amadurecidos e aprimorados por elas, e apelam a Deus por essa aflição. Se um homem levar um tesouro em ouro maciço ou em barras, mas não tiver algum cunhado em moeda atual, seu tesouro não vai custeá-lo durante sua viagem. A atribulação é tesouro em sua natureza, mas não é moeda corrente em seu uso, exceto se ficarmos mais próximos e mais próximos de nossa moradia, o céu, por meio dela. Uma outra pessoa pode estar doente também, à beira da morte, e esta aflição pode estar em suas entranhas, como o ouro numa mina, e não ser de uso para ela; mas este sino que me conta sobre a sua aflição, desenterra este ouro e aplica-o em mim: se por esta consideração sobre o perigo que outro corre, tomo o meu próprio em contemplação, me asseguro a mim mesmo e faço o meu recurso a meu Deus, que é a nossa única segurança.


terça-feira, 26 de novembro de 2013

Nossa tocante precariedade


Por Ivan Martins
Da Revista Época

Eu desisti da simplicidade das pessoas. Faz algum tempo, percebi que não há gente serena e bem resolvida. Não neste mundo. Somos, na verdade, uma massa confusa e dolorosa de emoções em busca de expressão e equilíbrio. Permanentemente. A paz que a gente exibe ou que nos mostram é pouco mais que uma fachada. Ela não dura e não resiste. Por baixo da superfície calma há um mar turbulento, em cada um de nós.
É isso que torna tão difícil viver com os outros, e tão desesperadamente necessário.
Sozinhos, nos perdemos nas nossas dores e angústias, sufocamos nos nossos medos. O outro oferece referência, prumo, consolo. Feito da mesma carne confusa e latejante, ele está fora de nós. Não nos enxerga exatamente. Intui, mas não sabe o que nos habita. E isso é bom. Escolhemos contar a ele, mas não tudo. Dizer tudo é impossível. Nem sabemos. Mesmo assim, ele recebe a nossa confusão na dele. Consola a nossa dor com a dor dele. Mistura sua confusão na nossa. Assim formamos um casal.
Não é assim que aparece nos filmes, mas essa enfermaria com dois doentes me parece, cada vez mais, uma justa definição do amor. 
Às vezes, temos a impressão de ser malucos num mundo de pessoas perfeitamente racionais. Dentro de mim mora um tumulto, mas ele e ela são calmos e bem resolvidos. Mentira. A confusão é coletiva. O tumulto é universal. O mundo organizado ao nosso redor, com faróis que abrem e fecham, com filas que andam e catracas que giram, é apenas uma tentativa desesperada – e bem sucedida – de nos cercar de ordem e racionalidade. Na natureza original não tinha isso. Na nossa natureza humana também não.
Quando se ama alguém, quando se transpõe a distância imensa que separa um ser humano do outro, a gente começa a perceber que a nossa precariedade também está no outro, que a nossa ansiedade também vive nele, que a angústia que nos consome tem par na angústia dele. É uma tremenda lição de humanidade. Depois dela, o nosso amor se mistura com pena, mas não dele. De nós mesmos, de todos que somos assim frágeis e perdidos, que precisamos tanto do outro.
Se a gente assume que o outro é tão complicado quanto nós, as coisas não ficam mais fáceis, mas tornam-se mais densas e mais bonitas.
Em vez de acordar num comercial de margarina, onde tudo é perfeito mas nada é verdadeiro, a gente desperta enroscado num ser humano que teve sonhos terríveis e acordou assustado. De noite, a gente vai encontrar uma pessoa que está profundamente frustrada porque não sabe lidar com a agressividade da colega de trabalho. Quando ele fala com a mãe dele, quando ela fala com o pai dela ao telefone, fica triste invés de feliz. Acontece. As relações familiares de verdade são uma droga. É por isso que você está lá, para abraçar sua metade.
Esse é o momento em que a pessoa deixa de ser a personagem de uma história para os amigos e passa a ser um ser humano real, que ocupa a sua intimidade, com capacidade de alegrar e arrebentar com a sua vida.
Mas chegar a isso exige relacionamentos de verdade. É preciso ter confiança, milhagem, experiências comuns. Não adianta gostar de longe, não adianta transar de vez em quando. Não se entra no mundo dos outros apenas batendo na porta. Tem de estar lá quando chove e quando faz sol. Tem de estar lá. Ponto.
Muitos preferem não se envolver. Acham melhor ficar na superfície dos casos, onde todo mundo é simples, perfeito, bacana. Onde só há novidades e nenhum problema. É legal, mas também tem preço. Se despertar angustiada, uma pessoa assim vai estar sozinha – mesmo que durma alguém ao lado dela. Alguém que ela não pode chamar, abraçar, em quem não pode confiar. Alguém que, na verdade, já deveria estar dentro de um táxi há duas horas.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O crítico de bolso bacana



Por Luiz Felipe Pondé
Da Ilustrada

Um dos traços essenciais de nossa psicologia é que queremos ser aceitos. Muitos filósofos, entre eles Adam Smith (1723-1790), diziam que nossa imaginação é constantemente presa à inquietação de como somos vistos pelos outros, fato este que é parte saudável da vida moral social, mas que também facilmente degenera numa angústia de dependência afetiva destruidora da autonomia.

Uma das formas mais seguras de se sentir aceito pelo grupo é desenvolver opiniões de rebanho. No fundo, temos horror a sermos recusados pelo bando, mas, hoje em dia, esse desejo de agradar é avassalador.

As redes sociais e sua mesmice brega, espaço de repetição do irrelevante, são prova de nossa condição de rebanho como pilar da (in)segurança psicológica.

As redes sociais criaram um novo perfil, o do crítico de bolso em versão pós-moderninha. O sonho dessa moçada, que se afoga na irrelevância e no desespero do anonimato cotidiano (que assola todos nós), é ter opiniões sobre as coisas, mas acaba mesmo falando da pizza que comeu ontem ou xingando os inimigos de plantão. O sonho de muitas dessas pessoas é frequentar jantares inteligentes nos quais gente bacana emite opiniões bacanas.

A forma mais fácil de frequentar jantares inteligentes é atacar a igreja, os EUA e a polícia. Mais sofisticado, mas que também garante acesso aos jantares inteligentes das zonas oeste e sul de São Paulo, é dizer que "o modelo social está ultrapassado". Esta frase leva algumas pessoas ao orgasmo (risadas?).

"O modelo social está ultrapassado" é a típica frase de quem quer se passar por crítico (mas, na realidade, é crítico de bolso), porque é a sociedade de mercado (ou como dizia Adam Smith, "commercial society"), a mesma que os comunistas chamam de "capitalismo", que nos retirou da miséria que é o estado natural da vida (e à qual voltamos rapidinho se o Brasil virar a Venezuela de Chávez e Maduro).

Toda riqueza que sustenta esse povo de jantares inteligentes, a começar pelo "bom vinho em conta", é fruto do mesmo modelo que consideram ultrapassado.

Aqui e ali, faça uma caricatura de quem você não consegue enfrentar porque lhe falta repertório conceitual. Diga que são racistas, "sequicistas" e homófobos. Conte, fingindo segredo, que seu filho é do círculo íntimo dos "maravilhosos" meninos do MPL e que sua filha é (incrível!!) black bloc, mas nunca bateu em ninguém.

Assim você chegará à sobremesa (leve, pois em jantares inteligentes ninguém quer engordar, porque sabe que os parceiros de jantares inteligentes são pessoas muito críticas) com segurança, sem dizer nada que ponha em risco sua cidadania de gente bacana.

Mas o que marca essa gente bacana é que na verdade nunca fala, nem tem contato real, com as pessoas fora das escolas de R$ 3.000 que paga para os seus filhos críticos desde os cinco anos de idade frequentarem, ou do seu círculo profissional chique e/ou da praia chique onde tem sua casa de praia típica de praias chiques.

O problema, quando você é um cidadão de jantares inteligentes, é que você acaba mesmo alienado e acreditando nas suas próprias críticas de bolso. Mas vamos ao que interessa. Vamos falar de um dos tópicos que autorizam você a se achar bacana e a frequentar jantares inteligentes: a polícia.

Outro dia, por acaso, conversei por cerca de três horas com um policial militar aposentado do Estado de São Paulo. Muito instrutivo, uma vez que sou egresso do mundo de gente bacana, que, portanto, nada sabe acerca do mundo real.

Ele definia sua classe como aquela que vive com a "mão no lixo" que essa gente bacana nunca vê de fato -a não ser quando resolve fazer ensaios fotográficos sobre "injustiça social". Reclama de como eles são invisíveis e de como a sociedade, na sua maioria, os considera parte do lixo. Um sofrimento profundo, devido a essa invisibilidade, marcava seu rosto de solitário. A polícia é um dos setores mais maltratados da sociedade, apesar de essencial.

Essa gente bacana sai correndo do jantar inteligente para o carro, com medo, sonhando com um baseado e uma bike em Amsterdã nas férias.


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Hoje na História: 1928 – Bolero, de Maurice Ravel, é tocado pela primeira vez

O compositor no ano de 1928

Por Max Altman
Do Opera Mundi


O Bolero, obra musical criada pelo compositor Maurice Ravel, estreia em 22 de novembro de 1928 em Paris, na Ópera Garnier. Balé dedicado à bailarina Ida Rubinstein, seu imediato êxito e rápida difusão universal o converteram não somente na mais famosa obra do compositor, como também num dos expoentes da música do século 20.

Ravel pretendia que o balé fosse montado em área externa, com uma fábrica ao fundo, numa alusão à Carmen de Bizet, ópera que admirava. No entanto, a montagem situou a ação num obscuro café de Barcelona, iluminado apenas por uma lâmpada. A bailarina começa a dançar sobre uma grande mesa enquanto uma vintena de homens permanecem sentados jogando cartas.

Ida Rubinstein representava o papel da bailarina de flamenco, numa coreografia sensual que despertou escândalo. O crítico René Chalupt assim a descreveu: “Movimento orquestral inspirado numa dança espanhola, se caracteriza por um ritmo e um tempo invariáveis, com uma melodia obsessiva, em dó maior, repetida uma e outra vez sem nenhuma modificação, salvo efeitos orquestrais, num crescendo que, in extremis, termina com uma modulação em mi maior e uma coda estrondosa.”

Apesar de Ravel tê-lo considerado como um simples estudo de orquestração, o Bolero esconde grande originalidade e, em sua versão de concerto, chegou a ser uma das obras musicais mais interpretadas a ponto de permanecer, até 1993, em primeiro lugar na classificação mundial de direitos da Sociedade dos Autores, Compositores e Editores de Música (SACEM).

Em 1928, Ravel só compôs o Bolero, antes que uma estranha enfermidade o condenasse ao silêncio. Todavia, compôs no ano seguinte obras importantes como o Concerto para a mão esquerda (1929–30), para o pianista amputado Paul Wittgenstein, o Concerto em sol maior (1929–31) e as três canções de Dom Quixote e Dulcineia (1932–33).

A história do Bolero remonta a 1927. Ravel acabara de terminar a Sonata para violino e piano e firmara contrato para uma turnê nos Estados Unidos e no Canadá. Pouco antes de partir, a bailarina russa Rubinstein encomendou-lhe um “balé de caráter espanhol”, pois queria montar sua companhia “Les Ballets Ida Rubinstein”. Pretendia competir com o famoso coreógrafo Serguei Diaguilev.

Ravel não havia composto música para balé desde “La Valse”, em 1919, e aceitou com muito interesse a encomenda. Tinha 52 anos e, desde a morte de Claude Debussy, era reconhecido como o maior compositor francês vivo. Para facilitar a tarefa, decidiu orquestrar seis peças extraídas da suíte Iberia, do compositor espanhol Isaac Albeniz. Porém, ao regressar da turnê norte-americana, quando já havia começado o trabalho, foi advertido que os direitos de Iberia, propriedade da editora Max Eschig, haviam sido cedidos com exclusividade para o compositor espanhol Enrique Arbós, antigo aluno de Albeniz.

Ravel passara curtas férias no verão de 1928 em sua cidade natal de Ciboure, no País Basco francês. Foi então que lhe sobreveio a ideia de somente utilizar um tema e um contra-tema repetidos, em que o único elemento de variação proviria dos efeitos de orquestração que sustentariam um imenso crescendo ao longo de toda a obra. Foi ao piano e tocou o tema com apenas um dedo.

Finalizou rapidamente a peça a qual deu o nome de Fandango. No entanto, para o ritmo de sua obra, o fandango lhe pareceu uma dança demasiado rápida e o substituiu por um bolero, outra dança tradicional andaluz que suas viagens à Espanha lhe permitiram conhecer.

Ravel aceitou, relutante, a montagem de Benois, porém solicitou a seu amigo Léon Leyritz, o escultor que esculpiu o busto de Ravel que adorna o vestíbulo da Ópera de Paris, que preparasse outro cenário. Essa produção viria à luz, mas já não seria em vida de Ravel.

Gravou-o pela primeira vez, em janeiro de 1930, com a orquestra dos “Concerts Lamoureux”. Os regentes, que viam na obra um terreno fértil e uma fonte fácil de glória, logo se ocuparam do Bolero. Alguns tentaram deixar sua marca. Enquanto Willem Mengelberg acelerava e ‘ralentava’ em excesso, o grande maestro italiano Arturo Toscanini, à frente da Filarmônica de Nova York, tomou a liberdade de interpretar com andamento duas vezes mais rápido que o prescrito, especialmente no final.

Ravel, presente entre o público, manteve nos bastidores uma breve discussão com o maestro. Os dois se reconciliaram mais adiante, mas já estava claro que o tempo do Bolero seria doravante uma “causa célebre”. Ravel em 1931 comentou: “Devo dizer que o Bolero raramente é regido como penso que deveria ser. Digo, o Bolero deve ser executado em tempo único do início ao fim, no estilo queixoso e monótono das melodias árabe-espanholas. [...] Os virtuoses são incorrigíveis, imersos em suas fantasias, como se os compositores não existissem.”

O Bolero foi logo interpretado em muitas transmissões radiofónicas. Finalmente, em 1934, o estúdio Paramount produziu um filme, protagonizado por Carole Lombard e George Raft, intitulado Bolero, em que a música desempenha importante papel. A fama da obra já não podia ser detida.


Veja aqui com a Orquestra Filarmônica de Munique. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O beijo na boca dos poetas Walt Whitman e Oscar Wilde


Por Euler de França Belém 
Da Revista Bula

Oscar Wilde, que morreu com apenas 46 anos em 1900, talvez tenha sido o primeiro metrossexual da história, um poderoso antecessor do cantor David Bowie e do jogador de futebol David Beckham. Ao visitar os Estados Unidos, em 1882, para uma série de conferências — a principal dela “Renascimento inglês”, sobre o esteticismo —, escandalizou e mesmerizou muitos americanos e se tornou uma estrela possivelmente maior do que Charles Dickens. As roupas de Wilde, berrantes e estilosas, atraíam os olhares de homens e mulheres. Seu casaco verde, bem diferente dos sombrios casacos dos americanos, encantava a todos. Aos 28 anos, gastador inveterado, o poeta, dramaturgo e escritor irlandês estava praticamente falido e aceitou as conferências para ganhar dinheiro. A turnê rendeu 18.215,69 dólares e o criador do romance “O Retrato de Dorian Gray” faturou 5.605,15 dólares — uma quantia considerável”, diz Richard Ellmann na biografia “Oscar Wilde” (Companhia das Letras, 542 páginas, tradução de José Antônio Arantes). Há histórias divertidas e, algumas, hilariantes na visita feita aos “súditos” do rico país de Abraham Lincoln. O encontro mais impressionante, que será mais explorado neste texto, se deu com Walt Whitman, maior poeta americano. Wilde conversou também com os escritores Oliver Wendell Holmes, Edmund Gosse e Henry James e com os políticos Jefferson Davis, presidente do Sul Confederado durante a Guerra Civil Americana, e Ulysses S. Grant. O foco deste texto é o diálogo entre o “príncipe inglês” e o “rei” Whitman, mas abrirei breve espaço para o encontro com James, Gosse, Davis e Grant.

“Quando foi ao Sul para passar uma noite com Jefferson Davis”, Wilde “percebeu uma analogia entre a Confederação do Sul e a irlandesa; ambas saíram à luta e tombaram, e a busca do autogoverno tornava-as semelhantes”, anota Ellmann. Ao término do encontro histórico, o escritor teria dito: “Os princípios pelos quais Jefferson Davis e o Sul empreenderam a guerra não podem ser derrotados”. O biógrafo conta que, mais tarde, Wilde relatou “que, no Sul, toda vez que se fazia algum comentário, respondiam: ‘Precisava ter visto isso antes da guerra’. Ele só percebeu o grau de devastação acarretada pela guerra quando, certa noite, em Charleston, virou-se para uma pessoa e disse: ‘Como é linda a lua!’. Como resposta obteve: ‘Precisava tê-la visto antes da guerra, senhor’”. Depois do encontro com Grant, em Long Branch, Wilde avaliou que o Norte tinha “características admiráveis”.

Os encontros com escritores não foram, no geral, agradáveis, dada a quase nenhuma diplomacia de Wilde. O escritor Edmund Gosse, ao notar que a celebridade irlandesa (ou inglesa) havia se encantado com ele, disse: “Receei que o sr. se decepcionasse”. Wilde respondeu, irônico: “Oh, não, nunca me decepciono com literatos. Acho-os perfeitamente encantadores. Decepciono-me apenas com suas obras”. Gosse ficou furioso.

Convidado para um almoço na casa de um juiz, Wilde compareceu “de calções e com um enorme lenço de seda amarela”. O general McClellan, o da Guerra Civil Americana, e o escritor Henry James estavam presentes. O autor de “Retrato de uma Senhora” e “Washington Square” (recém-saídos do prelo) fingia não prestar atenção no irlandês escandaloso, mas, ao saber que ele havia dito que “nenhum romancista inglês pode ser comparado a [William Dean] Howells e James, ficou “satisfeito” (a sra. Henry Adams, amiga de James, não quis conversa com o conferencista, pois o achava um “pateta”).

Ellmann escreve que, “por cortesia e curiosidade, James resolveu visitar Wilde no hotel para agradecer-lhe” pelo elogio. O autor de “As Asas da Pombas” disse: “Estou saudoso de Londres”. O irlandês não perdoou: “Mesmo? Afeiçoa-se a lugares? Meu lar é o mundo”. “Para” James, “especialista em desenraizamento, nenhuma característica refutava com mais veemência o valor do esteticismo do que a falta de raízes. Ao final do encontro, James estava irado. Wilde ofendeu-o dizendo: ‘Estou indo para Bossston; lá tenho uma carta do caríssimo amigo de meu caríssimo amigo — a Charles Norton de Burne-Jones’. James conhecia bem os dois homens, bem demais para apreciar a jocosa menção dos dois nomes”, diz Ellmann. À sra. Henry Adams, James disse: “‘Hosscar’ Wilde é um tolo presunçoso, um grosseirão de quinta categoria, um animal imundo”. Ellmann garante que, apesar de não “perder a piada”, antes perdendo o amigo, Wilde apreciava a prosa de James.

Oliver Wendell Holmes teria sido ofuscado pela conversa brilhante de Wilde. Holmes era considerado o “conversador” mais notável de Boston. As tiradas do irlandês sempre chamavam a atenção e eram publicadas na imprensa americana. A Sam Ward e a Marion Crawford queixou-se: “Onde acabará tudo isto? Metade do mundo não crê em Deus, e a outra metade não crê em mim”. Na verdade, os ingressos para as conferências eram disputados a tapa e os americanos ficavam embasbacados… mais com Wilde que com suas ideias. Seus calções, “que expunham suas bem-torneadas pernas e os pés”, despertavam amplo interesse na plateia. No palco, o escritor dizia que o Renascimento inglês era “uma espécie de novo nascimento do espírito do homem”, um “produto da união do helenismo com o romantismo, Helena de Troia com Fausto” (o texto entre aspas é de Ellmann, reproduzindo a opinião de Wilde). Os esteticistas, afirmava Wilde, “celebravam a forma em detrimento do conteúdo”.

Mas é o encontro com o poeta Whitman a parte mais encantadora da passagem de Wilde pelos Estados Unidos. Aos 63 anos, Whitman era o maior poeta americano, também renomado na Europa. Wilde era sempre cercado por repórteres, que descreviam detidamente seus trajes, suas ideias e trejeitos, e era obrigado a responder a toda sorte de perguntas. Uma de suas conferências foi sobre decoração. Suas ideias sobre o assunto são curiosas, pois permanecem atuais. Noutra conferência debateu a importância do artesanato contra a produção em série.

Um repórter quis saber qual era o poeta americano que mais admirava. Wilde não hesitou: “Penso que Walt Whitman e Emerson deram ao mundo mais do que qualquer outro”. Ellmann corrige o escritor, ligeiramente: “Na verdade Wilde estimava sobretudo Poe, ‘este maravilhoso senhor da expressão rítmica’, mas Poe estava morto”. Aos repórteres entusiasmados — Wilde era apresentado como hoje são exibidos cantores de rock ou de música pop —, repetia: “Quero demais conhecer o sr. Whitman. Talvez não seja muito lido na Inglaterra, mas os ingleses só apreciam um poeta após sua morte. Há algo de extremamente grego e equilibrado em sua poesia; ela é tão abrangente, tão universal. Contém todo o panteísmo de Goethe e de Schiller”.

Inicialmente, Whitman não quis sair de Camden, em Nova Jersey, para se encontrar com Wilde, mas, após ouvir os elogios, enviou um cartão para J. M. Stoddart, amigo do escritor: “Walt Whitman estará em casa esta tarde das 14 às 15h30 e terá prazer em ver o sr. Wilde e o sr. Stoddart”.

Ellmann diz que, no início, Wilde apresentou-se de maneira humilde: “Vim como poeta visitar outro poeta”. Humildade? Um garoto de 28 anos, poeta de qualidade, mas não da qualidade de Whitman, apresentar-se desta forma é um gesto de humildade? Whitman disse-lhe: “Continue”. “Procuro-o como a alguém com quem estou familiarizado praticamente desde o berço”, disse Wilde. O escritor irlandês revelou que sua mãe havia comprado “Folhas de Relva”, a bíblia de Whitman, logo após a publicação. “Lady Wilde”, escreve Ellmann, “lia os poemas para o filho, e mais tarde, quando Wilde foi para Oxford, ele e os amigos carregavam um exemplar de ‘Folhas de Relva’ para ler durante os passeios”.

Satisfeito com a arenga, Whitman ofereceu um “vinho de sabugo de fabricação caseira” ao colega poeta. “Vou chamá-lo de Oscar”, disse, já íntimo, Whitman. “Colocando a mão no joelho do poeta”, Wilde acedeu: “Gosto muito disso”. O poeta americano achava o companheiro irlandês, 35 anos mais jovem, “um rapaz bonito e elegante”. No entanto, no lugar de perguntar de sua poesia, quis saber sobre Swinburne. Conversa vai, conversa vem, Whitman deu uma fotografia sua para o novo amigo.

Quando Wilde falou dos escritores do esteticismo, integrantes do suposto “novo renascimento”, Whitman, apreensivo, “perguntou sobre Tennyson, cuja ‘melodia verbal, quase sempre perfumada, como a tuberosa, de extrema doçura’, admirava intensamente”. Por isso quis saber: “Vocês, jovens companheiros, estão pensando em excluir os ídolos consagrados, Tennyson e os demais?” Wilde, que depois atacaria Tennyson, contemporizou: “De modo algum. A posição de Tennyson está bem assegurada, e nós gostamos muito dele”. E atacou levemente: “Mas ele não se permitiu fazer parte do mundo existente e das grandes tendências de interesse e de ação. Seu valor é inestimável e, no entanto, vive fora de seu tempo. Vive em um sonho do irreal. Nós, por outro lado, vivemos no próprio cerne do hoje”. Ellmann assinala que “Whitman aprovou com um sinal de cabeça a última e pomposa frase”.

Conquistado o poeta mais velho, Wilde quis saber sua opinião sobre o esteticismo. Reticente, mas polidamente, Whitman respondeu: “Desejo-lhe boa sorte, Oscar; quanto aos estetas, posso apenas dizer que são jovens e apaixonados, que o campo é vasto, e, se quer meu conselho, vá em frente”. Sem demonstrar embaraço, Wilde quis saber sobre as teorias de poesia e de composição de Whitman, que respondeu: “Bom, você sabe, no passado trabalhei como tipógrafo, e quando um tipógrafo chega ao fim de uma linha composta ele para e continua na linha seguinte”. Seria uma explicação do verso livre, no qual Whitman era expert. E acrescentou: “Meu objetivo é fazer meus versos parecerem elegantes e atraentes nas páginas, como um epitáfio em uma lápide quadrada. São problemas que estou sempre procurando resolver”. Ellmann não vê nenhuma ironia na exposição, e talvez não haja mesmo.

A conversa começou a esquentar quando Wilde, agora nada humilde, disse: “Não consigo ouvir ninguém, a menos que me sinta atraído por um estilo encantador, ou pela beleza do tema”. Whitman protestou: “Ora, Oscar, sempre me pareceu que procede mal um colega que busque a beleza por ela mesma. Penso que a beleza é resultado, não uma abstração”. Wilde condescendeu (é a opinião de Ellmann): “Sim, lembro-me de você dizer: ‘Toda beleza provém do sangue belo e de um cérebro belo’, e, afinal, também penso assim”.

Whitman aprovou o elogio de Wilde às massas americanas, que seriam “superiores” às inglesas e europeias. A conversa, que era para durar alguns minutos, durou mais de duas horas. Quando Wilde ia saindo de sua casa, Whitman gritou-lhe: “Adeus, Oscar, Deus o abençoe”. A Stoddart, emocionado, Wilde chamou o poeta americano de “o nobre velho”. Stoddart disse que o vinho de sabugo devia ser muito ruim, mas Wilde indignou-se: “Se tivesse vinagre, eu o teria bebido da mesma forma, pois tenho por aquele homem uma admiração que mal sei expressar”. A um repórter, acrescentou: “É o homem mais nobre que conheci, o mais simples, o mais espontâneo, e mais forte personalidade que jamais encontrei na vida. Considero-o um daqueles homens maravilhosos, magnânimos e íntegros que poderiam ter vivido em qualquer época sem terem pertencido a qualquer povo. Forte, autêntico e perfeitamente lúcido: a mais estreita semelhança com os gregos que já encontramos nos tempos modernos”.

Wilde dizia, então, que a poesia de Whitman, na menção de Ellmann, “era toda conteúdo e nenhuma forma” (o que contrariava seus próprios princípios). Mais tarde, num julgamento mais crítico, disse de Whitman: “Se não um poeta, é um homem que faz e fez o apropriado, talvez nem prosa nem poesia, mas algo que lhe é próprio, original e único”. O verso livre, uma revolução, foi percebido assim pelo bardo irlandês. Whitman, instado a avaliar Wilde, disse, segundo Ellmann, que o irlandês “tinha a suprema virtude de ser jovem e ‘muito franco, direto e decidido’”. Quase sempre afetado, ao conversar com Whitman, Wilde descartou os maneirismos. “Vi os bastidores”, disse o americano, que atacou os críticos do novo amigo: “Não vejo por que o ridicularizam escrevendo essas coisas. Ele tem a fala arrastada da sociedade inglesa, mas sua pronúncia é melhor do que a que já ouvi de um jovem inglês ou irlandês”. Ao jovem amigo Henry Stafford, o autor de “Folhas de Relva” disse: “Wilde teve o bom senso de agradar-se de mim”.

Numa segunda visita a Whitman, sem a presença de intrusos, a conversa foi mais animada. Wilde relatou ao amigo George Ives “que Whitman não se preocupou em esconder dele sua homossexualidade”. “Ainda sinto nos lábios o beijo de Walt Whitman”, admitiu, prazerosamente, Wilde. “Embaixo de uma dedicatória de Whitman, Wilde escreveu sobre ele: ‘O espírito que vive inocentemente mas ousou beijar a boca ferida de seu próprio século’”, cita Ellmann.

Em 1888, seis anos depois, Whitman rompeu literariamente com Wilde em “Ramos de Novembro”: “Ninguém entenderá meus versos insistindo em vê-los como realização literária [...] ou como se aspirassem sobretudo à arte e ao esteticismo”. O poeta americano definitivamente não queria ser guru do movimento “liderado” por Wilde. Este, ao se defender, sugeriu que “o valor da poesia de Whitman residia ‘em sua profecia, não em sua realização. [...] Como homem, ele é precursor de um novo modelo. Contribuiu para a heroica e espiritual evolução do ser humano. Se a poesia o desdenhou, a filosofia o levará em conta’”. Whitman atacou por último: “Ele [Wilde] nunca foi uma chama luminosa, mas foi uma luz regular”. Comparado a Whitman, como poeta, certamente Wilde é “uma luz regular”, enquanto o americano é “uma chama luminosa”. Mas algumas de suas peças, e mesmo o romance “O Retrato de Dorian Gray”, além do belíssimo canto do cisne “De Profundis”, merecem crédito. Além de Wilde ser um frasista admirável, amplamente citado. O conflito entre Whitman e Wilde resulta de uma guerra de estrelas — uma julgando-se superior à outra. Mas deve ser realmente “duro” quando o “novo” percebe que não é superior ao “velho”.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Brasileiros tentam decifrar misterioso Manuscrito Voynich

Com informações da Agência USP
Da Revista Novae
Imagem: Wikipedia


Um dos maiores segredos da criptografia, o Manuscrito Voynich tem 16 cm de largura, 22 de altura e 4 de espessura. São 122 folhas, com um total de 204 páginas.

Técnicas de física estatística estão ajudando a desvendar os segredos do Manuscrito , um texto supostamente escrito antes do século 15 e descoberto em 1912.

Apesar das inúmeras ilustrações, ninguém sabe do que o livro trata porque linguagem é cifrada - as tentativas de decifrá-la tem ocupado os criptógrafos há décadas.

Uma análise feita por físicos brasileiros revela agora que os textos do Voynich não são um conjunto de palavras aleatórias e sem significado e de signos sem sentido, como muitos defendem - sobretudo porque até hoje ninguém conseguiu descobrir seu sistema de escrita.

Como as ilustrações encontradas na obra mostram plantas e corpos celestes, os pesquisadores brasileiros juntam-se ao grupo que defende que o livro que pode trazer informações valiosas sobre ervas e astrologia.

A contribuição da física veio com o uso de conceitos de redes complexas e séries temporais, além de estatísticas sobre as palavras no texto. Séries temporais mostram padrão de repetição de palavras no manuscrito

"Com a análise de séries temporais foi possível verificar a intermitência do uso de palavras no texto, ou seja, qual o padrão de repetição de uma mesma palavra ao longo do manuscrito", explica Osvaldo Novais de Oliveira Junior, professor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP.

"Em outras obras literárias, conseguir identificar esse padrão de intervalos pode dar dicas sobre um autor ou sobre o assunto de um texto," completa ele.

Séries temporais e redes complexas

Para entender a aplicação de séries temporais na análise de textos, imagine que um livro tenha como tema ciências exatas e que seus primeiros capítulos versem sobre física e os últimos sobre matemática.

No começo, é provável que a palavra "relatividade" apareça com frequência, o que não ocorrerá nos capítulos finais, nos quais a palavra "geometria analítica", por exemplo, aparecerá mais vezes.

Outra abordagem importante para investigar o manuscrito de Voynich foi a de redes complexas, em que um texto é representado por uma rede na qual os nós são as palavras, e se estabelecem conexões quando duas palavras aparecerem juntas. Se houver muitas ocorrências dessas palavras, aumenta-se o peso da conexão.

"Das características da rede, de sua topologia, pode-se extrair informações importantes. Dentre essas características, estão quais palavras são mais conectadas, se há formação de aglomerados de palavras em comunidades, e qual é a distribuição de conexões entre as palavras no texto", elucida Oliveira Junior.

Texto real

Para ter certeza de que o texto do Voynich não se tratava de um texto de palavras ao acaso, os físicos o compararam com textos reais em várias línguas, e identificaram parâmetros das redes que permitem distinguir um texto aleatório de um texto real.

"Fizemos redes com textos reais de 15 idiomas e utilizamos mais de 20 métricas para verificar quais distinguiam um texto aleatório de um texto real. Dessa forma, conseguimos verificar que o Voynich não é um texto aleatório. Pretendíamos também identificar a qual idioma o Voynich é mais similar, mas a quantidade de dados de que dispúnhamos não foi suficiente para obter conclusões estatisticamente significativas. Infelizmente não há muitos textos traduzidos em diversas línguas que estejam disponíveis na internet," conta o professor.

Para identificar as palavras-chave do Voynich, os físicos verificaram nas métricas de rede e séries temporais quais palavras se sobressaiam. E para comprovar a razoabilidade da estratégia, foram utilizadas as mesmas táticas para textos de idiomas conhecidos.

"Utilizamos estratégias de controle, para saber se aquela metodologia era eficiente. No nosso caso, comparamos textos do Novo Testamento em 15 idiomas para identificar palavras-chave. Como a estratégia deu certo, ela também foi utilizada para detectar as palavras-chave do Voynich", afirma Oliveira Junior.

Linguagem do Voynich

A conclusão é que o manuscrito Voynich não é um texto aleatório, tendo sido provavelmente escrito em um idioma desconhecido, artificial.

Mais importante ainda é que as estratégias utilizadas pelos pesquisadores funcionaram bem, o que poderá dar pistas importantes aos futuros (e corajosos) decifradores do manuscrito.

O professor comenta que, embora a análise do misterioso Voynich tenha sido um dos alvos principais da pesquisa, as abordagens de física estatística e física computacional desenvolvidas podem ser úteis para muitas outras aplicações. O conhecimento gerado pode auxiliar na análise de grandes volumes de dados, inclusive de textos.

"Hoje, a maneira como uma máquina aprende é muito rudimentar, requerendo intensa participação de humanos. No futuro, será possível que o computador tome decisões de como aprender e fazer aquisições dessas informações, transformando-as em conhecimento, inclusive para ele próprio", avalia ele.