terça-feira, 1 de outubro de 2013

Psicanálise e feminismo



Por Márcia Arán
Da Revista Cult

O debate sobre psicanálise e feminismo atravessou o século 20 e ganha novos matizes na aurora do século 21. Ora se configurando como campos completamente antagônicos, devido ao teor misógino das principais teses psicanalíticas sobre a sexualidade feminina, ora se aproximando devido ao número significativo não apenas de pacientes mulheres, mas também de mulheres analistas, o debate entre psicanálise e feminismo persiste como uma mola propulsora de teorizações sobre subjetividade e cultura. A abordagem psicanalítica da feminilidade deixa transparecer o enorme esforço da modernidade para recalcar o feminino e a experiência sensível em nome da civilização masculina e da razão. Para ilustrar esse debate, escolhemos duas passagens que fazem parte dessa história: o encontro de Freud com as mulheres histéricas, especialmente Bertha Pappenheim (Anna O.), no final do século 19, e o debate das feministas com a teoria de Jacques Lacan, especialmente Lucy Irigaray, em meados dos anos 1970.
No final do século 19, Freud passa a receber pacientes histéricas que até então eram atendidas em hospitais psiquiátricos como “degeneradas”. A concepção dominante sobre a histeria provinha da confluência de duas teses clássicas: a primeira associava o padecimento histérico ao útero e à sexualidade e a segunda relacionava a histeria com as doenças neurológicas. Segundo Silvia Nunes, a mulher histérica era descrita como “perigosa e sedutora”, devido à suposta combinação de uma “fraqueza moral” com uma “sexualidade excessiva”. Foi preciso que Freud ouvisse essas mulheres para constatar que seu padecimento, longe de designar uma degenerescência, revelava antes o sofrimento íntimo do século 19.
Vários historiadores localizam o surgimento da psicanálise no célebre encontro entre Freud e Anna O. Ela teria sido a primeira a recusar a hipnose e propor a “cura pela palavra”. Pode-se dizer que essa paciente contribuiu para a formação da psicanálise quase tanto quanto o seu primeiro terapeuta, Breuer. Por isso, anos mais tarde, o próprio Breuer alegaria que o tratamento de Bertha Pappenheim continha “a célula germinativa do conjunto da psicanálise”, cultivada por Freud.
Assim, principalmente Anna O., mas também Emmy von N., Lucy R. Katharina, Elizabeth von R., que compõem os Estudos sobre a histeria, revelam o primeiro esboço de uma teoria psicanalítica sobre o inconsciente. A descrição feita por Freud pode ser considerada uma cartografia da insatisfação cotidiana de quem não se conformava com as amarras das obrigações familiares e com a monotonia da vida entre quatro paredes.  Porém, de acordo com Regina Neri, se a cena inaugural da psicanálise está associada à potência do feminino, ao revelar a crise do projeto civilizatório calcado na razão e na dominação masculina, Freud imediatamente iria recuar diante dessa empreitada e se dedicar a pensar como moldar essa sexua-lidade disruptiva. A partir da elaboração do Complexo de Édipo, duas teses sobre a sexualidade feminina irão predominar. A primeira diz respeito à maneira pela qual a menina torna-se uma mulher, ou seja, uma trajetória que pressupõe não apenas a mudança da zona erógena do clitóris para a vagina, mas também o afastamento da mãe em nome do desejo pelo pai, a qual irá resultar na teoria sobre a inveja do pênis. A segunda refere-se à potencialidade narcísica das mulheres, que sustentará a noção de mulher fálica, perigo iminente de uma sexualidade excessiva que deverá ser domesticada pelo masculino.
Essas premissas vão sustentar uma das afirmações mais polêmicas de Freud: a de que “as mulheres se opõem à civilização”. Com isso, a civilização deve ser um assunto de homens, exigindo certa economia subjetiva da qual as mulheres não seriam capazes. Como se a mesma trajetória que a civilização realizara em direção ao progresso fosse a de um indivíduo que se pretende homem.  Assim, o processo de subjetivação na psicanálise passou a ser pensado como o afastamento da mãe em nome do pai.
Uma das primeiras analistas a contestar a primazia do falo foi Karen Horney, para quem homens e mulheres teriam psicologias diferentes oriundas de influências culturais também distintas. Josine Müller e Melanie Klein, a partir de suas experiências clínicas, também alegaram que desde o início a vagina teria um papel importante no desenvolvimento da sexualidade feminina, procurando dar uma positividade à feminilidade. Nesse momento, outras analistas também tomaram a palavra para fortalecer os postulados freudianos, especialmente Hélène Deutsch, Jeanne Lampl de Grott e Marie Bonaparte. Seja como for, o que prevaleceu foi o modelo masculino, em que a sexualidade feminina era compreendida a partir da falta do pênis-falo. Assim, a mulher só pôde ser concebida como um sujeito marcado pela inferioridade ou relegada ao lugar do enigma e da não existência.

Crise do masculino
Décadas mais tarde, Lacan realizará o que se convencionou chamar de retorno a Freud e irá se deparar não somente com a crise do masculino, mas com uma incontestável diminuição do poder do pai nas sociedades modernas. Diante da constatação de que “o pai fora humilhado”, principalmente devido ao “protesto viril das mulheres” e a “feminização dos homens”, o autor conceberá a função paterna como a responsável pela manutenção da ordem simbólica. Essa proposição teve eco na comunidade psicanalítica e inclusive pretendeu que a própria ideia de cultura estivesse necessariamente ligada ao pai. Porém, se as críticas ao simbólico lacaniano e a sua ligação com o projeto familialista dos anos 1940 já são bastante conhecidas e aceitas, as teses lacanianas sobre as fórmulas de sexuação continuam a ser evocadas no debate atual sobre o feminino.
Costuma-se dizer que Lacan avança ao postular, para além do impasse da teoria da inveja do pênis, a existência de um gozo a mais. Os princípios básicos dessa tese encontram-se no Seminário XX, no qual o autor parte de uma dissimetria entre os sexos pela descrição das posições sexuadas masculina (a ordem do Um, do significante ou do sujeito do inconsciente) e feminina (o Outro, que se expressa como ausência ou excesso). A partir daí ele demonstra como cada um desses campos se relaciona com o quantificador universal, ou seja, o falo. Resumidamente, Lacan interpreta o mito freudiano de “Totem e Tabu”, afirmando que um homem se define pela sua sujeição à lógica da castração. Isto se torna possível justamente porque, no inconsciente, “ao menos um”, o pai da horda, não seria castrado, já que gozava de todas as mulheres. No que se refere às mulheres, Lacan afirma que elas não seriam totalmente marcadas pela castração, já que não existiria um mito do lado feminino, ou seja, uma exceção, que as fizesse existir como significante. Dessa maneira, a mulher seria “não-toda” inscrita no simbólico e não existiria significante do sexo feminino na cultura.
Porém, a lógica do “não-todo” conjugada com a afirmação de que “a mulher não existe” se mantém atrelada a uma concepção masculina de desejo. Assim, é porque os homens têm necessidade de colocar o feminino no lugar de enigma que são levados a afirmar que as mulheres se acham numa posição de excesso em relação ao simbólico.
É com essa teoria que Lucy Irigaray, feminista, filósofa e psicanalista, vai dialogar de forma crítica em meados dos anos 1970. A autora empreende uma leitura atenta dos principais textos da filosofia e da psicanálise para mostrar como na lógica binária do Um e do Outro, descrita acima, o que fica de fora como uma exclusão constitutiva é justamente o feminino. Nesse sentido, não bastaria positivar o significante feminino: é necessário desconstruir a lógica falocêntrica para que surja outra economia subjetiva. Assim, repudiado nesse sistema normativo, o feminino se constituirá como uma potência crítica a essa lógica hegemônica. Irigaray parte do corpo das mulheres e da experiência feminina para demonstrar no livro O sexo que não é Um o sentido plural, múltiplo e difuso do prazer feminino e suas diversas possibilidades de simbolização.
Esse novo pensamento sobre a diferença abriu caminho para várias psicanalistas realizarem uma crítica ao modelo da diferença sexual na psicanálise, por meio do esboço de formas de subjetivação que ocorrem no deslizamento entre o feminino e o singular, integrando parte do debate vivo dos estudos de gênero no contemporâneo.


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