quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O passado é logo aí



Por Claudia de Úngaro
Da Revista da Cultura

Toda a evolução pela qual a nossa sociedade vem passando e passou, especialmente nos séculos 19 e 20, serviu para mostrar que, além de a objetividade e de a otimização de tempo e energia serem ferramentas interessantes, todas as maravilhas tecnológicas conquistadas até aqui nasceram dentro do ser humano. Simples assim: somos a gênese de tudo o que admiramos. Talvez seja preciso olhar mais de uma vez para dentro e por algum tempo até encontrar o caminho da desautomatização. Há quem acredite que o prazer e a satisfação estejam escondidos nas entrelinhas do tempo antigo.

O reencontro com esse tempo, pessoal e sui generis, por vezes acontece na prática. Na subjetivação das atividades profissionais e nas relações com os amigos, algumas pessoas encontram a ponte de reconexão. São escritores que deixaram de aderir ao computador para escrever seus romances, músicos que gravam em fitas de rolo, bem longe das máquinas e dos efeitos, e gente que opta por não ter celular ou não aderir às redes sociais.

“Continuo escrevendo meus livros a mão, antes de mais nada, pelo prazer que isso me proporciona. Também me parece mais íntimo do que escrever diretamente no computador, que reservo para todas as outras escritas, aqui incluídos os roteiros e as listas de compras da casa. Não deve ser esquecido que o processo de manuscrever favorece a lentidão, ritmo preferencial da literatura, ao menos da boa literatura”, diz Marçal de Aquino, autor de Famílias terrivelmente felizes, Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios e dos roteiros dos filmes O invasor e O cheiro do ralo, entre outros.

Além de escrever nos cadernos, Aquino também desenha no meio do processo de criação de suas obras, hábito que leva consigo desde a adolescência. Quando acaba de criar, transcreve os textos para o computador para que sigam o processo que se tornou natural, de envio e aos editores.  Dentro do mundo tecnológico, ele segue com sua escolha analógica até o fim da linha, quando precisa se “readequar” para conseguir falar a mesma língua do mercado editorial. Embora tenha sido escrivão de cartório quando jovem e adquirido prática de digitação, o autor não pretende largar a caneta e o papel em troca da otimização de tempo que o computador oferece.

Para o psicoterapeuta André Toso, o contexto do nascimento de cada pessoa, incluindo a época, é o que determina o relacionamento com o tempo e a forma de vivê-lo. Alguém que nasceu antes dos anos 1970 teria mais dificuldade de tomar para si as tecnologias e a socialização por redes sociais do que quem nasceu depois dos anos 1990, já ninados por intermédio de babás eletrônicas e fotografados diariamente por câmeras digitais em uma infinidade de poses. “Tanto é assim que a geração nascida nos anos 1980, por exemplo, está no limiar entre o virtual e o analógico. Essas pessoas nasceram em um mundo analógico e foram ‘tomadas’ pelo advento do virtual. Isso provoca um desconforto e uma contradição. Gera uma espécie de desamparo de identidade. Ao mesmo tempo que existe uma nostalgia do que já passou, vivem uma ansiedade para se conectar às novidades do presente.”

O mundo de hoje permite a expressão da liberdade pessoal e a readequação de quem sente a necessidade de desacelerar os processos e, com isso, aproveitá-los melhor. O modo analógico tem conquistado mais adeptos que há dez anos, por exemplo. Especialmente os artistas, que dizem ter percebido que a pressa não interessa à arte. Em geral, quem opta por se diferenciar em algum aspecto dos hábitos comuns à sociedade enxerga mais valor nos meios que nos fins.

“Escrever a mão me parece apenas uma escolha que fiz, sem qualquer outra consequência. Não creio que escreveria melhor se fizesse isso diretamente no computador, mas, com toda certeza, o processo me daria muito menos alegria e prazer”, explica Aquino.

O desenvolvedor de games Leonardo Branco, de 32 anos, foi obrigado a usar a tecnologia para se adequar ao mercado de trabalho, mas, se dependesse dele, seguiria desenhando em papéis e criaria seus bonecos com argila. Quando começa a esboçar desenhos conceituais das personagens que cria, o faz a lápis em um caderno. Só depois de concebidos é que encara o computador. Assim que termina o trabalho, se desconecta e passa longe da internet. “As ‘maravilhas’ tecnológicas têm deixado as pessoas cada vez mais dependentes e acomodadas, distantes, apesar de toda a publicidade dizendo que ela aproxima as pessoas. Acho um absurdo uma família se sentar a uma mesa ou se reunir em uma sala, cada um conectado em seu próprio mundo virtual. O pai com o notebook, a mãe no Facebook pelo iPad, a filha falando com não sei quem no iPhone e o filho jogando PSP. Ninguém conversa ou se nota”, diz Branco.

Para ele, a questão não é apenas aproveitar melhor o processo de criação, mas se manter “a salvo” do efeito da tecnologia na sociedade. O mercado e o cotidiano demandam a adaptação às tecnologias, mas Branco escolhe conscientemente a que se dedicar no tempo livre. “O passado persiste no imaginário, nos desejos e nos modos de ser dessas pessoas. A desconexão com um passado tão distante das novas tecnologias pode ser amenizada com o apego a maneiras de viver, desfrutar de arte e ser no mundo de uma época passada, que parece tão desconectada do que vivemos hoje. É uma forma de nos sentirmos abrigados da impessoalidade da tecnologia”, conceitua o psicanalista Toso.

Existe um motivo até poético para se agarrar ao passado. Uma forma de se sentir ainda habitando de alguma maneira, mesmo que no imaginário, um mundo diferente, com tempo para a interação entre as pessoas e o desfrutar das atividades profissionais. É uma forma de se apegar e não se desconectar de sua própria identidade. O poeta Manoel de Barros e o escritor Mario Vargas Llosa também escrevem seus livros a mão. O primeiro, prestes a completar 97 anos, não cogita aprender a mexer no computador; o segundo diz não ter paciência para aprender a usar as ferramentas nem organização para sentar-se à frente de uma máquina, esperando a inspiração chegar.

“Aprecio o movimento da mão deslizando no papel e marcando-o, em um movimento que a mão governa com uma liberdade consciente. E, acima de tudo, curto mais o processo de feitura do livro, para redimensionar a felicidade de escrever. Tanto é assim que minha profissão recebeu o nome de escritor. Não sou autor e nem digitador: sou um escritor”, afirma Jonas Ribeiro, criador de livros infantis que ainda guarda a máquina de escrever em que transcreveu algumas de suas obras.

É comum, ultimamente, encontrar músicos que preferem gravar com pouco ou nenhum recurso tecnológico para depois, camada por camada, ir preenchendo os espaços que quiserem. No Brasil, Hamilton de Holanda, Marcelo Jeneci, Ed Motta e Fernando Catatau são alguns dos que já se aventuraram por essa experiência. Os que não chegaram a tanto, mas que também apreciam uma forma antiga de ouvir música, se contentam com uma vitrola e discos de décadas passadas tocando na sala.

“O passado vive presente dentro de nós a todo momento, mas é preciso saber o seu lugar. Nostalgia, apego e uso de objetos do passado nos transportam imaginariamente para esse lugar de conforto. O que passa não é o tempo, somos nós que passamos. E as coisas do passado ficam para sempre dentro de nós”, diz Toso, que conclui: “Nada mais compreensível do que nos apegarmos a isso de maneira saudável. Como uma escolha, e não uma necessidade”.


Nenhum comentário:

Postar um comentário