quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A medicalização como um anúncio da qualidade de vida


Por Graziela Wolfart
Da Revista Unisinos

“A saúde tornou-se um bem de consumo, todavia, na perspectiva da doença. É a medicalização que anuncia a qualidade de vida”. A afirmação vem do professor e psicólogo Fábio Alexandre Moraes, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. A seu ver, a psicopatologia nunca é do sujeito em sofrimento, ela é do profissional que escuta. “Inventamos a psicopatologia tanto quanto inventamos a ideia de um determinado sujeito que a porta. Mas se vamos parar para efetivamente ouvi-lo (o seu discurso), e se ele ainda não estiver capturado pelo discurso do profissional, que circula por outros espaços, como na mídia, por exemplo, vamos perceber que distância essas coisas tomam”. Para Fábio, “formas de adoecimento e psicopatologia nada mais são do que discursos, e hoje, discursos do mercado, discursos da saúde como mercadoria”. No fundo, continua, “acalentamos o desejo da vida eterna e, principalmente, evitar o sofrimento e, como diria Freud, o mal-estar”.

Fábio Alexandre Moraes é psicólogo graduado pela Unisinos e especialista em Saúde Mental, pela Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul, e em Psicologia Clínica. Cursou mestrado em Psicologia Social e Institucional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS com a dissertação Abrindo a porta da casa dos loucos (ou: para ativar a potência dos fluxos). Atualmente leciona na Unisinos e atua na área de saúde mental na Prefeitura Municipal de Novo Hamburgo.

Confira a entrevista

Na última entrevista que nos concedeu, o senhor afirmou que “a sociedade capitalista e seu modelo de trabalho criam as condições para a doença mental”. Qual a contribuição que a mesma sociedade capitalista oferece ao processo de medicalização da saúde, principalmente pensando na saúde mental?


Fábio Alexandre Moraes – Antes de responder, gostaria de frisar que o meu ponto de vista é crítico. O que não significa dizer que desvalorizo os avanços tecnológicos. Nem me coloco na insustentável resistência a eles. Entretanto, uma passiva aceitação do que o contemporâneo nos impõe, porque é “melhor” ou porque significaria “progresso”, não me agrada. É da índole do institucionalismo, perspectiva que tomo para respondê-la, desnaturalizar o que aos olhos da maioria seria natural, como nos ensina Gregório Baremblitt. Dito isso, vamos à resposta da pergunta. Penso que existe uma relação direta. Afinal, como me referi na entrevista anterior, a sociedade contemporânea, organizada como está, cria as condições para o sofrimento ou, como aponta o psicanalista Benilton Bezerra, produz novas formas de sofrimento. Logo, nada mais óbvio que também surgissem as condições para a produção das tecnologias que vão dar conta dessas patologias.

Criar a doença e o tratamento é uma invenção genial para uma sociedade que se sustenta na contínua produção de novas necessidades, que rapidamente entrarão no circuito do consumo. Nada mais propício para o consumo e ampliação dos lucros. Você já observou como funcionam os “representantes dos laboratórios” na abordagem dos médicos? Com bastante frequência os vemos nas salas de espera dos consultórios e, mesmo sem permissão, nas unidades de saúde pública. Todos vestidos de forma muito parecida, sóbrios como recomenda a situação, com suas malas grandes e pretas, tendo no seu interior as últimas novidades da indústria farmacêutica. Intuímos que não são os médicos que, através das boas práticas clínicas e dos seus criteriosos estudos dos últimos artigos científicos, solicitam, mediante necessidades técnicas, os novos medicamentos. Esses representantes anunciam quais são os melhores remédios, os “de última geração”, explicam de forma objetiva os efeitos colaterais e, mesmo o médico dizendo que precisaria buscar informações mais criteriosas, rapidamente se vê diante de uma dezena de “amostras grátis” e, quem sabe, um convite para um seminário em Salvador, com as despesas pagas. Pronto! Quem resiste experimentar as novas maravilhas farmacológicas? E, mais adiante, a insistência, agora dos médicos, para incluir essas novas “descobertas” na lista do Rename (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais). Assim, a “novidade” passa a ser um “direito” do usuário-consumidor, que será paga com dinheiro público, obviamente. Tudo isso, até sabermos que aquela medicação não era tão boa assim, nem os estudos foram tão conclusivos. Agora, neste exato momento que conversamos, já tem outra medicação sendo apresentada pelos “representantes”, com suas malas milagrosas. O milagre mesmo, com certeza, é o lucro estratosférico dos laboratórios.

Então, pergunto como não haveria uma relação direta (contribuição) entre produção de doença, de terapêuticas e o capitalismo? É a mesma lógica, válida para qualquer outro produto. A saúde tornou-se um bem de consumo, todavia, na perspectiva da doença. É a medicalização que anuncia a qualidade de vida.

Penso que no campo da saúde mental esta questão fica mais evidenciada. Há muito tempo que a psiquiatria, como instituição (necessariamente não me refiro aos psiquiatras, considerando que muitos compartilham dessas críticas), buscava o seu ingresso na medicina. Pode parecer estranho dizer isto, mas a psiquiatria foi a “filha enjeitada” da medicina, mesmo se considerarmos que ela sempre tomou a dianteira na organização da medicina como área de conhecimento, ou seja, no seu processo de institucionalização. Talvez até por isso mesmo, sem a “base científica”, que fosse se ocupar da institucionalização das práticas médicas. Esses argumentos podem ser encontrados nas análises de Foucault  e em Jurandir Freire Costa, quando fala da psiquiatria brasileira. Assim, no momento em que temos um “boom” das neurociências e da psiquiatria biológica, a psiquiatria sente-se à vontade para abandonar a psicanálise, a fenomenologia e outras linhas teóricas e práticas que a sustentavam. Agora, ela faz parte da medicina. Têm instrumentos de avaliação e, o mais importante, um cabedal de medicações que lhe dão o status necessário para ser tomada como prática médica, exclusivamente médica. Agora, a psiquiatria também pode receber os “representantes e suas malas”, para o comércio da doença, dos diagnósticos e das terapêuticas. Há tempo, como diz um psiquiatra que conheço, não precisamos mais conversar tanto. Ouvem-se as queixas, organizamos os sintomas, etiquetamos e prescrevemos.


Qual o papel da sociedade capitalista em desenvolver as formas de adoecimento e as possibilidades de reconhecimento através da psicopatologia?

Não conseguiria seguir por outro caminho que não por aquele que abri na resposta anterior. Ou seja, manter a análise na perspectiva institucionalista. Para tanto, demarco duas dimensões institucionais absolutamente atravessadas uma na outra. Visando maior clareza, vou transformá-las em questões: 1ª) Como compreendemos o adoecimento? 2ª) Como cristalizamos todas as possibilidades de compreendê-lo num conhecimento instituído como válido? Pense na transformação que Freud  operou quando deixou de procurar as causas do adoecimento no cadáver, ou compreender a doença, e passou a ouvir o sujeito vivo, ouvir sua história. Este movimento produziu outra maneira de se pensar a doença, o doente e as condições determinantes. É assim que compreendo e tento responder a questão: há condições objetivas, históricas, sociais e econômicas que nos dão as possibilidades de determinadas leituras, inclusive sobre o que compreendemos por psicopatologia. A psicopatologia nunca é do sujeito em sofrimento, ela é do profissional que escuta. Inventamos a psicopatologia tanto quanto inventamos a ideia de um determinado sujeito que a porta. Mas se vamos parar para efetivamente ouvi-lo (o seu discurso), e se ele ainda não estiver capturado pelo discurso do profissional, que circula por outros espaços, como na mídia, por exemplo, vamos perceber que distância essas coisas tomam.

Então, uma ideia me ocorre para sintetizar a resposta, e não é original, porque vem da tradição foucaultiana, quando nos ensina que “cada formação histórica vê e faz ver em função de suas condições de visibilidade, da mesma forma que ela diz tudo o que ela pode, em função de suas condições de enunciação”. Concluindo, “formas de adoecimento” e “psicopatologia” nada mais são do que discursos, e hoje, discursos do mercado, discursos da saúde como mercadoria.


Quais são os distúrbios físicos e mentais provocados pelo trabalho que são mais comuns de serem tratados com medicamentos?

Infelizmente todos acabam sendo medicados, ou medicalizados. Qual a diferença? No primeiro caso trata-se do médico prescrevendo objetivamente uma medicação; no segundo, são todas as outras tecnologias, incluindo as tecnologias leves (relacionais), como diria Merhy, que também pode assumir a função individualizante dos medicamentos. Como? Bem, se o trabalho adoece, a mudança deveria ocorrer neste nível, o da organização ou dos processos de trabalho. Tratando o trabalhador e não o processo, estamos medicalizando as relações de trabalho. Percebe que nem precisa ser médico, basta olharmos para o “problema” e isolarmos ele das suas causas e contexto. Quantas vezes fazemos a pergunta, ao identificar significativos índices de adoecimento pelo trabalho: que condições estarão produzindo isto? Normalmente olhamos em direção do trabalhador e identificamos nele a desadaptação ou mesmo a “fraqueza”. Em seguida, demissão. Raramente vemos o processo de trabalho, a não ser quando é para aperfeiçoá-lo em direção ao aumento da produtividade. O sujeito raramente é a questão.


Qual sua opinião sobre o uso abusivo de psicofármacos contra os mal-estares da cultura contemporânea, aqui citando a busca de longevidade e a redução/controle dos processos de envelhecimento?


Coincidentemente estou orientando um trabalho de conclusão de curso que trata deste tema. O título do trabalho é “Modos de envelhecer no contemporâneo”. Como o título indica, a proposta do trabalho foi a de cartografar os atuais modos de envelhecer, tentando localizar os movimentos instituintes, ou seja, onde é possível identificar a potência do velho, pela diferença, e não a resposta pronta que vai ao encontro das exigências como se jovem fosse. O texto da aluna procura fazer isto desde os eufemismos que muitas vezes impedem a velhice de se colocar como velhice, seja pela “terceira idade”, “melhor idade”, “idoso” ou mesmo a simples negação de que há um momento da vida em que temos que lidar com questões difíceis para o sujeito humano contemporâneo, que são o horror ao declínio físico, a doença e ao ter que se deparar com a morte. Então observamos, mais uma vez, a tecnologia anunciando os seus milagres, seja pela via da medicação (Viagra seria um bom exemplo), pela indústria da beleza ou das tecnologias que prometem o prolongamento da vida, através de intervenções cada vez mais sofisticadas. No fundo, acalentamos o desejo da vida eterna e, principalmente, evitar o sofrimento e, como diria Freud, o mal-estar. Entretanto, o mesmo Freud nos alertou: o mal-estar é constitutivo do ser humano, o que podemos fazer é a sua gestão.

Que relações podemos estabelecer entre a medicalização e a ideia de “felicidade” transmitida pela sociedade do consumo?

A primeira ideia que me ocorre é justamente a que se origina da questão anterior. A sociedade de consumo nos promete a felicidade. Algum tempo atrás tive o trabalho de identificar e depois recortar para a confecção de um painel (que utilizo em aula) todas as matérias publicadas num intervalo de seis meses, numa única revista de tiragem nacional, sobre os avanços no campo da saúde, trabalho, lazer e beleza; considerando que esses campos têm afinidades e muitas vezes se confundem. Fiquei impressionado e destaco duas questões que sintetizam o meu espanto: 1) em todas as semanas foram anunciados avanços tecnológicos que prometiam a total felicidade humana, subjugando a dor, a impotência e a infelicidade; 2) por envolver tecnologia e patentes, teremos que, num futuro próximo, pagar para que alguém nos forneça o produto ou o serviço prometido. Cada vez mais somos livres, entretanto, como nos ajuda a pensar Bezerra, mais uma vez, somos dependentes não mais do sacerdote, dos pais, da sabedoria dos avôs, mas dos especialistas. Delegamos poder para quem não conhecemos, para tecnologias e pesquisas que não temos a menor noção de quais os interesses que estão em jogo. A maioria acredita que é para a “felicidade humana e o progresso da civilização”. Penso que nós não temos o direito de ter tamanha ingenuidade.
 

Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?

Para terminar, só vou fazer uma pequena referência a um fato ocorrido recentemente e que me parece um excelente analisador do que vimos discutindo. Chamaria, como a própria mídia vem fazendo, o caso Angelina Jolie. Quando fiz aquele levantamento das matérias publicadas às quais me referi acima, este assunto foi tratado. Lembro que a matéria, trazida de uma publicação americana, levava o título de “Decisão Radical”. Também lembro que, ao ver isto no painel, os alunos em aula ficaram impressionados e se produziu uma excelente discussão. Na verdade deu o pano de fundo para o tema do desemparo humano. E, de tudo que foi falado, ficou uma ideia que achei absolutamente definitiva: não suportamos mais não saber e não ter ideia do que poderá nos acontecer no futuro. Desejamos controlar tudo, nossa vida e nosso destino. Bem, se há a menor possibilidade de evitar o câncer de mama, bem, que retiremos as mamas. Mesmo assim, continuamos desemparados. Parece que a Angelina teria 80% de chance de desenvolver um câncer, por conta de um gene que a predisporia ao desenvolvimento da doença. Podemos compreender a sua justificativa. Entretanto, parece que também temos uma grande chance de sermos atropelados ao atravessar uma rua. Então, não vamos mais sair de casa por conta deste risco. E as nossas chances de decepção no amor? Sim, vamos evitá-las também, basta deixar de amar. Além do medo, a “decisão” de Angelina, sob o meu ponto de vista, guarda uma pitada de arrogância. Além de matar o presente em função do futuro. Matar o devir, diria Deleuze .

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