quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O som, a fúria e as cartas


Por Contardo Calligaris
Da Ilustrada

1) Para mim, Ricardo 3º era um personagem shakespeariano, que conquistou o poder por caminhos tortos e, na véspera da batalha que lhe foi fatal, ouviu os fantasmas de suas vítimas lhe dizerem o inesquecível "Despair and die!", desespere-se e morra.

Certo, eu sabia que Ricardo 3º fora mesmo o último rei da casa de York, no fim do século 15, cem anos antes que Shakespeare escrevesse sua história. Mas sabia sem saber.

Isso, até quinta-feira passada, quando tive entre as mãos um documento assinado por ele (quando era duque de Gloucester, antes de dar um trato nos seus sobrinhos e se tornar assim rei da Inglaterra). Passei de leve um dedo sobre sua assinatura e foi como se sentisse a pegada de sua brutalidade, de sua ambição e de sua tragédia.

2) Eduard, o segundo filho de Albert Einstein e Mileva Maric, nasceu em 1910. Ele queria ser médico e psiquiatra. Aos 22 anos, Eduard entrou, pela primeira vez, no Burghölzli, a famosa clínica de Zurique onde Jung foi assistente de Bleuler. Mas Eduard não entrou como médico -entrou como paciente. No Burghölzli, aliás, ele morreu, internado, em 1965.

Numa carta a Mileva, em 1928, Einstein, referindo-se obviamente a Eduard, escreve que ele considera a psicanálise "como uma moda extremamente perigosa... Ninguém será submetido a esse tratamento com meu consentimento".

Quatro anos depois, Eduard era internado, e Einstein, convidado a escolher um contemporâneo com quem dialogar sobre a guerra, escolhia Freud. Mais quatro anos, e Einstein, num breve bilhete, declararia a Freud que ele entendera, enfim, a teoria freudiana da repressão. Naquela época, Einstein mandava a Eduard obras de Freud, declarando não ter dúvidas sobre a teoria freudiana. Será que era para agradar a Eduard, que guardava um retrato de Freud na parede de seu quarto?

Na quinta passada, com meu alemão capenga, eu procurava as palavras, na carta de 1928: "...eine überaus gefährliche Mode". A loucura de um filho é o desespero de qualquer inteligência.

3) Num dia de 1911, Georges Courteline, escritor e dramaturgo francês, recebeu um bilhete escrito por um menino que gostara muito de um texto dele e até dizia ter tentado em vão traduzir o tal texto para o alemão a fim que a babá dele, alemã, entendesse e apreciasse.

A assinatura do bilhete, que estava agora nas minhas mãos, era: "Jean-Paul Sartre, seis anos e meio".

O bilhete tinha um cheiro de livros, misturado com um perfume de ternura materna. Como Sartre diria contando sua infância, a vocação de escrever foi encontrada na paixão de ler.

4) Jean Cocteau recebe uma carta de um jovem admirador, de 19 anos, que acaba de fundar um cineclube, o qual vai estrear com a apresentação de "Sangue de um Poeta". O clube só viverá se o próprio Cocteau prestigiar a sessão com sua presença. Cocteau não foi. A carta é assinada: François Truffaut.

Penso nos convites que recuso, nos livros de estreantes que deixo de ler, nas amizades que não vingam.

5) Mas, na quinta passada, nada me emocionou tanto quanto uma breve carta do Marquês de Sade à sua mulher, que nunca deixou de amá-lo (a recíproca sendo provavelmente verdadeira). A carta é escrita do asilo de Charenton, onde Sade ficou preso como louco, de 1801 a 1814 -porque sua sogra não gostava dele e, no fundo, porque ele nunca renunciou a pensar e escrever sobre as fantasias que exaltavam seu desejo. Olhei para meus dedos, na esperança que algo dele tivesse entrado em mim, por osmose.

Em suma, passei horas com Pedro Corrêa do Lago, que me mostrou alguns dos manuscritos que ele reúne há mais de 40 anos. A coleção é extraordinária por sua extensão e variedade -e pela inteligência de Pedro (para se ter uma pequena ideia, ver os livros "Cinco Séculos a Papel e Tinta", da editora Afrontamento, ou "True to the Letter", da Thames and Hudson).

A história é mesmo, como diria um colega de Ricardo 3º, um conto sem sentido, cheio de som e fúria, mas ela é bonita ou mesmo sublime quando, por algum milagre, ela se torna concreta, como aconteceu para mim, na quinta-feira passada. Este é o poder do manuscrito: ressuscitar os corpos, pelo gesto da mão que persiste, inscrito na forma das letras.

É primavera, época tradicional de limpeza. Doe as velharias que você não usa mais, mas, por favor, não jogue fora levianamente cartas e papéis manuscritos.


quarta-feira, 30 de outubro de 2013

"Filme militante é uma tragédia", diz cineasta Eduardo Coutinho

O cineasta Eduardo Coutinho, no CineSesc da rua Augusta em São Paulo

Por Matheus Magenta
Da Ilustrada 
Grande homenageado da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Eduardo Coutinho renega o cinema como instrumento político de intervenção no que o público pensa ou deveria pensar.

"O filme militante é uma tragédia porque já está escrito antes. Convencer o já convencido é terrível, fazer um filme para convencer alguém é terrível", diz o documentarista.

Coutinho, 80, defende um cinema em que questionamentos são mais importantes do que respostas fechadas.

Como é viver num prédio de classe média em Copacabana? Qual é a música da sua vida? O que é ficção e o que é documentário? Morar num lixão é bom ou é ruim?

Essas perguntas acabam respondidas de uma maneira ou de outra --com outras perguntas ou pelo próprio espectador, por exemplo-- nos 22 filmes de sua carreira, tema de uma retrospectiva na mostra deste ano.
   
Entre os mais conhecidos estão "Cabra Marcado para Morrer" (1985), em que a perseguição pela ditadura à equipe de filmagem foi integrada ao produto final, e "Edifício Master" (2002), sobre moradores de um prédio no Rio.

Sua obra é tema do recém-lançado livro "Eduardo Coutinho" (ed. Cosac Naify, 704 págs.), que tenta abarcar a vida e a produção do principal documentarista do país com entrevistas, artigos de especialistas e críticas suas. Coutinho odeia não poder fumar quando bem entende, maniqueísmo e perguntas sem objetividade.

Em entrevista, ele critica a dominação do cinema dos EUA e a distância entre produção nacional e público.

"O cinema nacional nunca conversou com o público. Isso é tão velho e tão profundo. Mas você também não pode obrigar com metralhadora o público a ir", afirma.

Para ele, as mudanças devem começar a partir da política protecionista ao setor.

"É um absurdo ter filmes que estreiam com 700 cópias". Coutinho critica também filmes com temas amplos.

"Nada 'em geral' existe. Você fazer filme sobre o racismo em geral? O que é isso? Faz sobre um prego, é melhor."

Por outro lado, louva a beleza da expressão corporal em entrevistas e rejeita roteiros, para dar chance ao acaso.

"Hoje ninguém conversa com ninguém. Acredito que posso saber do mundo a partir do contato pessoal. Não preciso mais do que isso."

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Hoje na História: 1787 – Primeira apresentação da ópera Don Giovanni

Pintura de 1912 retrata um dos intérpretes da obra de Mozart

Do Opera Mundi

A primeira representação da ópera Don Giovanni tem lugar em 29 de outubro de 1787 em Praga, no magnífico Teatro dos Estados, sob a direção pessoal de seu compositor, Wolfgang Amadeus Mozart, então com 33 anos.

A capital da Boêmia, governada pelo então arquiduque da Áustria, era uma cidade de passado cultural prestigioso, que rivalizava à mesma altura com Viena, a sede dos Estados austríacos.

A ópera é baseada em libreto em dois atos de autoria de Lorenzo da Ponte, segundo uma peça teatral de Moliere, recolhe um estrondoso sucesso de parte da população esclarecida da cidade.

Entre o público lá estava um certo Giacomo Casanova, já com 62 anos. Em suas Memórias, que começaria a escrever três anos depois, inspirou-se indubitavelmente no libreto de Don Giovanni para traçar o retrato de um libertino que se gabava de suas 122 conquistas amorosas em 39 anos, com um único fracasso confessado.

Mas para Mozart, o sucesso de Don Giovanni teve um gosto amargo. Cinco meses antes havia morrido seu pai, Léopold, com quem, no entanto, estava brigado. Em Viena, um pouco mais tarde, a obra e seu autor foram vaiados. A cidade imperial esperaria a morte do genial compositor para lhe render a homenagem que merecera em vida.

Don Juan e seus intérpretes

Don Giovianni (mais conhecido como Don Juan) é um dos principais mitos da cultura ocidental, ao lado de Fausto, Dom Quixote e Robinson Crusoé. Cínico e libertino, revoltado contra a humanidade e contra Deus, esse personagem surgiu por volta de 1625 numa comédia do espanhol Tirso de Molina, O Burlador de Sevilha.

O autor se inspirou num acontecimento relatado pela Crônica de Sevilha. Assassino do governador Ulloa, cuja filha seduziu, Don Juan cai mais tarde numa armadilha no interior do convento franciscano onde repousavam os despojos do governador. Os monges revelariam então que o homicida seria levado ao inferno pela estátua de pedra de sua vítima, que de repente, começa a se mover.

Moliere extraiu desse conto uma de suas obras-primas, sem dúvida com a cumplicidade de seu amigo, o dramaturgo Corneille: Don Juan ou o festim de pedra. Goldoni, Byron,Pushkin, Tolstoi, Baudelaire, Colette e outros, por seu turno, de um modo ou outro tiveram contacto ou se inspiraram nesse personagem.

Além de Mozart, diversos compositores também compuseram óperas sobre o mesmo tema. E não esqueçamos do cinema com O Olho do Diabo de Ingmar Bergman e Don Giovanni de Joseph Losey.


sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Melancolia

Ron Mueck: O Grande Homem

Por Marcia Tiburi
Aula ministrada no Espaço Cult

Tristeza. Escuridão e Silêncio. Morte e Luto. Dor de viver. Ou a sensação de um vazio instalado no imo de toda a existência. Vazio, a ser dito de vários modos, além do corpo ou vindo do corpo que se pensa morto e, do fundo de sua inércia calada, abre-se inteiro para devorar o pensamento. Ou, ao contrário, um vazio que preenche o pensamento, fazendo-se cheio e pleno, denso e absoluto. O próprio corpo é o vazio a sustentar-se sobre um terreno arenoso e movediço de incógnita.

O vazio é o tempo a circundar o que existe dando-lhe limites, abrindo o sentido para a finitude, nome usado para amenizar a morte. Quanto mais se olha para o abismo, mais se escancaram os dentes de aço nas gengivas purpúreas de luto, mais se abre o alvéolo da morte em garganta fétida, disposta à devoração. No esforço de escapar ao oco, as cordas tíbias da abstração enovelam os membros afoitos, sangram o ser pensante que se descobre a si nascido do fundo fosco do lugar nenhum, sendo o próprio nada do qual tenta escapar. Ali está ele, a um tempo ninguém e qualquer um, estilhaçado em sua dor, pendurado ao vão do sentido; as cordas que lhe atavam os membros lhe servem o único chão. Funâmbulo, ele segue sabendo desde o passado o próprio destino. A fundura desconhecida não promete chão nem apavora os olhos lassos. Tudo é pálpebra: cortina de veludo negro.

Do fundo do escuro vivido, uma tarde infinita depõe a frouxidão do dia em que nenhuma luz – nem nesga, nem fio – permite ver além. O filósofo pensa e pensa, reflete e raciocina, como um cão que ao morder a própria cauda foge de si, tentando, num gesto desesperado, salvar-se. Mas o melancólico, apesar do arame farpado que ata seus membros ao chão, embora caminhe sobre farpas, ama sua dor. É de um ferimento que ele vive como quem bebe o sangue da vida abrindo a própria veia. E, apesar do cansaço que a vida – trâmites e passatempos – lhe traz, fazendo-o carregar baldes de cimento fresco com que selará a borda do próprio túmulo, ele segue procurando na ação o gesto que o lance para fora do todo conhecido, para além de si. Procura o que lhe possa contrariar a certeza, a posse de uma verdade experimentada como morte e morte. Morto está o eu. Mas é preciso negar o eu, já morto, pois só assim a morte da morte enviará esse sobrevivente do abismo à necessária crença no espelho. E o espelho sempre será um outro. É nessa crença e na ilusão da representação – busca infinda de um reconhecimento invisível – que o melancólico respira o vácuo em tudo o que o cerca e que lhe vem habitar.

A única catapulta que conhece é o saber que, por horas o abandona para dar certeza de que não haverá um outro mundo possível. Saber sempre adiado que o livrará do útero mortífero do eu, de ser quem é e não outro. A certeza extrema do eu se lhe mostra ilusão, sendo o nome da ferida aberta desde sempre, chaga ancestral da autoconsciência. Oco da certeza, escuro do qual é preciso desviar com a lanterna sempre precária do conhecimento. O eu é o único colo que até então conheceu, já o percebeu putrefato, verme sob a terra. Há, para o afetado pelo mal do pensar, que se fazer sua autópsia e, quiçá, eleger as partes sobradas para uma lição de anatomia.

O que o melancólico busca saber é o próprio saber, a decifração do mistério de existir e, mais que descobrir a coisa-em-si, a verdade objetiva das coisas concretas que também lhe aflige e desespera, o que lhe interessa é saber o como saber, desvendar o movimento que ata o sujeito ao objeto, o que define os laços entre o buscado e aquele que busca. Todavia, não é possível definir se a melancolia provoca a busca pelo saber ou se a busca pelo saber provoca a melancolia. A história do saber e do conhecimento é concomitante à história da dor de existir.

Tudo, de qualquer modo, é a tentativa de construir a ponte por sobre a escuridão do abismo, fazer-se voar no único voo possível, rasante sobre a cova, de alcançar a luz do sol e sua promessa, ainda que nesga, de aurora. Pensar e pensar, não saber, buscar saber: o melancólico vive o pensamento como hábito, a reflexão como mania, a solidão como método. Por isso, ele pensa e, logo, existe.

Júlia Kristeva disse em seu livro Sol Negro (Sol Negro, depressão e melancolia. Rocco, 1989) que aquele que escreve sobre a melancolia apenas o faz por falar de dentro dela. Muitos melancólicos escreveram e escrevem livros. Todos que leram a psicanalista francesa facilmente se identificam com a oportunidade de trazer à linguagem a matéria contraditória da morte em vida, de dar um nome mais adequado ao abismo faminto ao qual provisoriamente damos o nome de eu. Melancolia é, neste ponto, mais que uma doença ou perturbação do espírito, o nome da experiência do eu como abismo e que obriga ao seu enunciado.

Melancolia é a palavra vinda do grego que significa bile negra ou atra bilis ((melaina kolh)). Melaina kole é o humor negro que na doutrina humoralista de Alcmeón (400 a. C.) relacionava a teoria dos 4 elementos da natureza dos pitagóricos e confirmada em Empédocles, à teoria das divisões do tempo em estações e idades, aos humores que regem o corpo humano. A bile negra forma o humor melancólico assim como o sangue ligado ao ar, rege a primavera e a infância, a bile branca ligada ao fogo, rege o verão e a adolescência, e a fleuma ligada à água, rege o inverno e a velhice, determinando os demais temperamentos sangüíneo, colérico e fleumático. O desequilíbrio entre os humores é considerado patológico. Na preponderância da bile negra no corpo surge o temperamento melancólico. Tanto Hipócrates, quanto Galeno na antiguidade clássica e Paracelso no final da Idade Média compreenderão o fenômeno segundo a ampla doutrina da correspondência entre macrocosmos e microcosmos. O melancólico vive como indivíduo na dissonância entre os mundos, inadequado e incapaz de se adaptar ao todo. Do ponto de vista filosófico, a melancolia é, já nos primórdios da reflexão sobre ela, algo como o desajuste do ser. Tanto a tragédia quanto a filosofia relacionam a melancolia à noção de mania e ao furor. O negro da bile é associado ao universo noturno e o melancólico relacionado ao louco e ao lobisomem, seres que ultrapassaram o limiar da cultura retornando à barbárie de onde um dia o homem foi salvo pela razão. A melancolia é, desde seu início, ligada ao obscuro, ao que, no homem, não é dito, ao que não se declara nem esclarece, a segredos e escuros do corpo.

E, no corpo, ao fígado. A função anatômica do fígado na melancolia oferece-nos uma pérola hermenêutica: o fígado – lembremos – está na origem do conhecimento, no mito do roubo do fogo por Prometeu. O fígado é o órgão devorado pelo abutre do qual o titã não consegue fugir por estar acorrentado a um abismo. O mito de Prometeu é um mito da melancolia: o pagamento pelo saber é a corrosão eterna do próprio corpo guardado num precipício inescapável por um animal de rapina. No outro extremo da história, já no século XX, veremos Kafka (O Abutre. Narrativas do Espólio. Cia das Letras, 2002) escrever um conto no qual um abutre rói os pés de um homem até sorrateiramente invadir-lhe o sangue e preencher todas as suas margens. O abutre é o símbolo do conhecimento que devora o corpo e dá alimento ao pensar. O conhecimento vem ocupar o lugar que o ser deixou vazio.

O melancólico veste os farrapos de sua identidade desconhecida pronto a aceitar a continuação da vida: sustentado novamente e para sempre pelo cogito – penso, logo existo – fundamento crasso da filosofia de Descartes. Um pouco anterior a ele é a famosa gravura de Dürer, Melencolia I, que apresenta de forma perfeita os elementos constitutivos e recorrentes na tradição iconográfica da melancolia. Na mais famosa da obras sobre a melancolia, a gravura de Dürer, não haverá abutre, mas um morcego que voa no horizonte crepuscular. A imagem mostra um anjo adulto segurando o rosto sombreado com a mão, posicionando-se entre o tédio e a preguiça. Tal postura, comum nas imagens tradicionais da melancolia, também remete à posição daquele que pensa. O tédio e a preguiça podem, inclusive, ser conseqüências do hábito exaustivo e inútil do pensar. Ali o pensar está, ele mesmo morto, pois não leva à ação, o que se mostra pelos objetos de uso prático espalhados com desleixo ao redor do obscuro ser. O anjo de cabelos longos se parece a uma mulher, o que inscreve ainda mais a gravura de Dürer na linha da tradição onde a melancolia é representada como uma dama velha e triste, sentada sobre uma pedra muitas vezes com os braços caídos, noutras segurando a cabeça para que não sucumba e permitindo um olhar que se dirige à coisa nenhuma. A anatomia feminina, marcada pela presença de um grande buraco chamado útero, dá uma pista ao tema. Mas o vazio nele ultrapassa o corpo e vai situar-se no exílio de si: melancólico é aquele que se perdeu do território do olhar. Ninguém olha para ele, por isso ele é incapaz de olhar de fato para alguém. Sobrevive, então, ao lado de outro anjo – também melancólico – sempre menor que ele, pois não pode vê-lo muito bem, alguém que ele julga como um fantasma necessário que lhe dará também um amor nunca mais que fantasmático, mas sem o qual ele não poderá se incrustar à vida. Tal é o papel do pequeno anjo – Eros sem flecha – posicionado ao centro da imagem que representa o corpo estranho, a vida estranha ao lado da qual o melancólico busca sobreviver, como quem procura na identidade alheia, a crença em algo ainda vivo.

A melancolia também é uma categoria política. Em termos políticos é possível dizer que ela compreende o sentimento de tensão entre indivíduo e sociedade, entre a condição particular do sujeito humano e a dor de viver no seio de um mundo pertencente a todos e no qual o espaço reservado ao melancólico – segundo ele mesmo – não passa de rasa cova.  A antiga desarmonia entre os humores, corolário do desajuste entre macro e microcosmos, é, em termos políticos, o abandono do indivíduo lançado para fora da ordem. A melancolia passa a designar o território do outro, do alien, do estranho. O mesmo lugar que ela ocupará, fazendo par com a astrologia, frente ao campo filosófico a se delinear como território do pensamento que baniu temas de algum modo representativos de ameaça à hegemonia da razão. Banir a melancolia define o gesto filosófico da purificação da razão: amputa-se da filosofia o seu outro abandonado como inimigo. As origens da filosofia estão intimamente ligadas à melancolia, mas esta sempre representou a entrada em cena do outro, do que advém do corpo e, portanto, do empírico, da matéria, do irracional em ameaça soberana contra a consciência e a racionalidade. A filosofia, nesse sentido, seria a tentativa de evitar o encontro com o abutre prometéico. Seguir pensando porque escapo do que penso pelo pensamento.


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

'Longe da Árvore'


Por Contardo Calligaris 
Da Ilustrada

Li o novo livro de Andrew Solomon quando foi publicado nos EUA, no fim de 2012. Para explicar por que ele é, para mim, um dos ensaios mais importantes das últimas décadas, preferi esperar a tradução em português, "Longe da Árvore - Pais, Filhos e a Busca da Identidade" (Companhia das Letras).

O título se refere ao ditado segundo o qual os frutos nunca caem longe da árvore que os produziu --ou seja, "tais pais, tais filhos". Só que, às vezes, nossos filhos nos parecem diferentes de nós: frutos caídos longe da árvore. De qualquer forma, a árvore quase sempre acha que seus frutos caíram mais longe do que ela gostaria. E, na nossa cultura, amar os filhos que são diferentes de nós não é nada óbvio.

A obra de Solomon é um extraordinário elogio da diversidade e da possibilidade de amar e respeitar a diferença, mesmo e sobretudo nos nossos filhos. Por acaso, li o livro de Solomon logo depois das tocantes e bonitas memórias de Diogo Mainardi ("A Queda", Record) sobre o amor por seu primogênito, Tito, diferente por ser portador de paralisia cerebral.

A leitura de "Longe da Árvore" ajudará qualquer pai a não transformar suas expectativas em condições de seu amor. Isso bastaria para que a obra de Solomon fosse imprescindível --para pais e para filhos. Mas há mais.

Retomo uma distinção que Solomon usa. Chamemos de identidades verticais as que são impostas ou transmitidas de geração em geração: elas são consequência da família, da tribo, da nação na qual nascemos e também das expectativas dos pais (quando elas moldarem os filhos). Chamemos de identidades horizontais as que inventamos ou às quais aderimos junto com nossos pares e coetâneos: elas são tentativas de definir quem somos por nossa conta, sem nada dever à árvore da qual caímos.

O paradoxo é o seguinte: a ideia crucial da modernidade é que as identidades verticais não constituem mais nosso destino (por exemplo, o fato de nascer nobre ou camponês não decide o lugar que o indivíduo ocupará na sociedade).

Os filhos, portanto, conhecem uma liberdade sem precedentes (viajam, mudam de país, de status, de profissão etc.), atrás do sonho moderno de "se realizarem" --e não do sonho antigo de repetirem seus antepassados. Mas acontece que esse sonho de "se realizarem" é também o dos pais, os quais, como qualquer um, só "aconteceram" pela metade (quando muito).

Consequência e conflito: os filhos deveriam correr livres atrás de seus próprios sonhos, enquanto os pais esperam e pedem que os filhos vivam para contrabalançar as frustrações da vida de seus genitores.

Será que um dia seremos capazes de um amor não narcisista pelos nossos filhos? Será que seremos capazes de querer produzir vidas por uma razão diferente da de reproduzir a nós mesmos?

Se isso acontecer um dia, será possível dizer que "Longe da Árvore" foi o primeiro indicador de uma mudança que transformou nossa cultura para sempre.

Alguns poderiam se assustar diante do tamanho da obra de Solomon, que é monumental (mais de 800 páginas). Reassegurem-se: a leitura é fascinante.

O livro é construído assim: há uma introdução, "Filho", imperdível, e uma conclusão, "Pai" (de filho para pai é o caminho que o próprio Solomon percorreu na sua vida).

No meio, há dez capítulos (que não precisam ser lidos na ordem) sobre as "diferenças" de filhos que caíram longe da árvore e como os pais lidaram com elas (surdos, anões, síndrome de Down, autismo, esquizofrenia, deficiência, [crianças-]prodígios, [filhos de] estupro, crime, transgêneros). A essa lista é necessário acrescentar gay e disléxico, que são os traços que fizeram de Solomon um diferente.

Das centenas de entrevistas nas quais ele se baseia, Solomon sai com um certo otimismo sobre a possibilidade de os pais aprenderem a amar filhos diferentes deles.

Entendo seu otimismo assim: as diferenças extremas (como as que ele contempla) derrotam o narcisismo dos pais de antemão (esses filhos nunca serão uma continuação trivial de vocês) e portanto levam à possibilidade de amar os filhos como entes separados de nós.

No dia a dia corriqueiro da relação pai-filho, o narcisismo dos pais e dos adultos produz uma falsa e incurável infantolatria: parecemos adorar as crianças, mas mal as enxergamos --apenas amamos nelas a esperança de que elas realizem nossos entediantes sonhos frustrados.


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O passado é logo aí



Por Claudia de Úngaro
Da Revista da Cultura

Toda a evolução pela qual a nossa sociedade vem passando e passou, especialmente nos séculos 19 e 20, serviu para mostrar que, além de a objetividade e de a otimização de tempo e energia serem ferramentas interessantes, todas as maravilhas tecnológicas conquistadas até aqui nasceram dentro do ser humano. Simples assim: somos a gênese de tudo o que admiramos. Talvez seja preciso olhar mais de uma vez para dentro e por algum tempo até encontrar o caminho da desautomatização. Há quem acredite que o prazer e a satisfação estejam escondidos nas entrelinhas do tempo antigo.

O reencontro com esse tempo, pessoal e sui generis, por vezes acontece na prática. Na subjetivação das atividades profissionais e nas relações com os amigos, algumas pessoas encontram a ponte de reconexão. São escritores que deixaram de aderir ao computador para escrever seus romances, músicos que gravam em fitas de rolo, bem longe das máquinas e dos efeitos, e gente que opta por não ter celular ou não aderir às redes sociais.

“Continuo escrevendo meus livros a mão, antes de mais nada, pelo prazer que isso me proporciona. Também me parece mais íntimo do que escrever diretamente no computador, que reservo para todas as outras escritas, aqui incluídos os roteiros e as listas de compras da casa. Não deve ser esquecido que o processo de manuscrever favorece a lentidão, ritmo preferencial da literatura, ao menos da boa literatura”, diz Marçal de Aquino, autor de Famílias terrivelmente felizes, Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios e dos roteiros dos filmes O invasor e O cheiro do ralo, entre outros.

Além de escrever nos cadernos, Aquino também desenha no meio do processo de criação de suas obras, hábito que leva consigo desde a adolescência. Quando acaba de criar, transcreve os textos para o computador para que sigam o processo que se tornou natural, de envio e aos editores.  Dentro do mundo tecnológico, ele segue com sua escolha analógica até o fim da linha, quando precisa se “readequar” para conseguir falar a mesma língua do mercado editorial. Embora tenha sido escrivão de cartório quando jovem e adquirido prática de digitação, o autor não pretende largar a caneta e o papel em troca da otimização de tempo que o computador oferece.

Para o psicoterapeuta André Toso, o contexto do nascimento de cada pessoa, incluindo a época, é o que determina o relacionamento com o tempo e a forma de vivê-lo. Alguém que nasceu antes dos anos 1970 teria mais dificuldade de tomar para si as tecnologias e a socialização por redes sociais do que quem nasceu depois dos anos 1990, já ninados por intermédio de babás eletrônicas e fotografados diariamente por câmeras digitais em uma infinidade de poses. “Tanto é assim que a geração nascida nos anos 1980, por exemplo, está no limiar entre o virtual e o analógico. Essas pessoas nasceram em um mundo analógico e foram ‘tomadas’ pelo advento do virtual. Isso provoca um desconforto e uma contradição. Gera uma espécie de desamparo de identidade. Ao mesmo tempo que existe uma nostalgia do que já passou, vivem uma ansiedade para se conectar às novidades do presente.”

O mundo de hoje permite a expressão da liberdade pessoal e a readequação de quem sente a necessidade de desacelerar os processos e, com isso, aproveitá-los melhor. O modo analógico tem conquistado mais adeptos que há dez anos, por exemplo. Especialmente os artistas, que dizem ter percebido que a pressa não interessa à arte. Em geral, quem opta por se diferenciar em algum aspecto dos hábitos comuns à sociedade enxerga mais valor nos meios que nos fins.

“Escrever a mão me parece apenas uma escolha que fiz, sem qualquer outra consequência. Não creio que escreveria melhor se fizesse isso diretamente no computador, mas, com toda certeza, o processo me daria muito menos alegria e prazer”, explica Aquino.

O desenvolvedor de games Leonardo Branco, de 32 anos, foi obrigado a usar a tecnologia para se adequar ao mercado de trabalho, mas, se dependesse dele, seguiria desenhando em papéis e criaria seus bonecos com argila. Quando começa a esboçar desenhos conceituais das personagens que cria, o faz a lápis em um caderno. Só depois de concebidos é que encara o computador. Assim que termina o trabalho, se desconecta e passa longe da internet. “As ‘maravilhas’ tecnológicas têm deixado as pessoas cada vez mais dependentes e acomodadas, distantes, apesar de toda a publicidade dizendo que ela aproxima as pessoas. Acho um absurdo uma família se sentar a uma mesa ou se reunir em uma sala, cada um conectado em seu próprio mundo virtual. O pai com o notebook, a mãe no Facebook pelo iPad, a filha falando com não sei quem no iPhone e o filho jogando PSP. Ninguém conversa ou se nota”, diz Branco.

Para ele, a questão não é apenas aproveitar melhor o processo de criação, mas se manter “a salvo” do efeito da tecnologia na sociedade. O mercado e o cotidiano demandam a adaptação às tecnologias, mas Branco escolhe conscientemente a que se dedicar no tempo livre. “O passado persiste no imaginário, nos desejos e nos modos de ser dessas pessoas. A desconexão com um passado tão distante das novas tecnologias pode ser amenizada com o apego a maneiras de viver, desfrutar de arte e ser no mundo de uma época passada, que parece tão desconectada do que vivemos hoje. É uma forma de nos sentirmos abrigados da impessoalidade da tecnologia”, conceitua o psicanalista Toso.

Existe um motivo até poético para se agarrar ao passado. Uma forma de se sentir ainda habitando de alguma maneira, mesmo que no imaginário, um mundo diferente, com tempo para a interação entre as pessoas e o desfrutar das atividades profissionais. É uma forma de se apegar e não se desconectar de sua própria identidade. O poeta Manoel de Barros e o escritor Mario Vargas Llosa também escrevem seus livros a mão. O primeiro, prestes a completar 97 anos, não cogita aprender a mexer no computador; o segundo diz não ter paciência para aprender a usar as ferramentas nem organização para sentar-se à frente de uma máquina, esperando a inspiração chegar.

“Aprecio o movimento da mão deslizando no papel e marcando-o, em um movimento que a mão governa com uma liberdade consciente. E, acima de tudo, curto mais o processo de feitura do livro, para redimensionar a felicidade de escrever. Tanto é assim que minha profissão recebeu o nome de escritor. Não sou autor e nem digitador: sou um escritor”, afirma Jonas Ribeiro, criador de livros infantis que ainda guarda a máquina de escrever em que transcreveu algumas de suas obras.

É comum, ultimamente, encontrar músicos que preferem gravar com pouco ou nenhum recurso tecnológico para depois, camada por camada, ir preenchendo os espaços que quiserem. No Brasil, Hamilton de Holanda, Marcelo Jeneci, Ed Motta e Fernando Catatau são alguns dos que já se aventuraram por essa experiência. Os que não chegaram a tanto, mas que também apreciam uma forma antiga de ouvir música, se contentam com uma vitrola e discos de décadas passadas tocando na sala.

“O passado vive presente dentro de nós a todo momento, mas é preciso saber o seu lugar. Nostalgia, apego e uso de objetos do passado nos transportam imaginariamente para esse lugar de conforto. O que passa não é o tempo, somos nós que passamos. E as coisas do passado ficam para sempre dentro de nós”, diz Toso, que conclui: “Nada mais compreensível do que nos apegarmos a isso de maneira saudável. Como uma escolha, e não uma necessidade”.


terça-feira, 22 de outubro de 2013

Paralelismos e desencontros em "Anna Kariênina"

Ilustração de Tolstói
Por Rubens Figueiredo
Ilustração: Claudius
Da Ilustríssima

RESUMO A presença dos trens no romance de Tolstói (1828-1910) aponta para uma trama subjacente à obra, a das pretensões modernizadoras da Rússia. Mas a imagem ferroviária reflete também o princípio ordenador da trama, em que pares de personagens e situações se desdobram sem se encontrarem, como as paralelas dos trilhos.

*

O leitor dificilmente deixará de notar o peso da presença dos trens em "Anna Kariênina".

É numa estação ferroviária, por exemplo, que Anna conhece Vrónski, seu futuro amante. Na ocasião, para horror da protagonista, um homem morre esmagado por um trem -ela própria, como se sabe, se suicidará jogando-se sob as rodas de um vagão. As últimas cenas do romance também se passam numa estação, quando Vrónski parte para a guerra como voluntário. Seu intuito é antes morrer do que alcançar um triunfo militar. E o trem é o veículo para obter o que deseja.

Na mesma passagem, primeiro na estação e depois dentro de um vagão, os personagens põem à prova suas visões a respeito da guerra. São inúmeras, no romance, escrito entre 1873 e 1877, as situações em que o trem é fator da ação -elemento presente ou objeto de alusões em conversas, pensamentos ou sonhos.

As ferrovias eram novidade na Rússia. Exprimiam um dos esforços mais salientes para modernizar uma sociedade que se via como atrasada, tolhida por traços pré-capitalistas. As vias férreas eram encaradas não só como um instrumento com fins práticos óbvios num país de território vastíssimo mas também como um símbolo do empenho para equiparar a Rússia aos países ricos.

Por isso é importante ressaltar que Liévin -um dos personagens mais importantes do livro- manifesta críticas às estradas de ferro.

Sua atitude é ridicularizada por amigos, que mal lhe permitem expor suas objeções e nem mesmo querem ouvi-lo. Nesse aspecto, veem em Liévin um excêntrico ou um provinciano retrógrado. E Tolstói se vale do personagem para apresentar muitas de suas dúvidas e questionamentos em relação ao que a Rússia pretendia fazer de si mesma e ao projeto de integrar o país ao capitalismo.

MAU AGOURO

É inevitável lembrar que o próprio Tolstói viria a morrer justamente numa estação de trem. Mas nem é preciso chegar a tanto. Sem sair das páginas do romance, constatamos que a ferrovia está associada ao destino infeliz ou trágico de personagens importantes do livro.

Contra esse fundo, o conforto dos vagões de luxo e a comodidade dos deslocamentos rápidos, a despeito da sua imagem orgulhosa de progresso, contêm uma nota de mau agouro.

Se o trem concentra um dos principais temas subjacentes ao romance -a polêmica em torno do projeto modernizador da Rússia-, de outro lado oferece a figura visual constante de dois trilhos paralelos. Isso vem ao caso, pois as linhas paralelas representam um dos princípios mais importantes na estruturação do livro, a constante formal que baliza a ação e ajuda o livro a manter coesas as numerosas e variadas linhas do enredo.

O título nos rascunhos era "Dois Casais", ou "Dois Casamentos". Essa dupla de pares justapostos reforça a imagem das linhas paralelas e traz à mente a imagem dos trilhos. Assim, o casamento integra-se ao tema de fundo do livro e confere uma forma concreta ao mais importante princípio estruturador do romance: o paralelismo.
   
Do que se diz aqui, alguém que não leu "Anna Kariênina" poderia pensar que se trata de um romance esquemático, escrito com régua e esquadro. Não é nada disso, nem de longe. Não que o forte da prosa de Tolstói seja a sutileza ou a discrição. Não é. Seu ímpeto procura o concreto. Um dos principais méritos do livro, sua abrangência, deve muito ao fato engenhoso de não se prender a um centro.

A distribuição da ação em linhas paralelas, em geral formadas por casais, escapa do perigo de adquirir uma feição mecânica porque tais linhas têm rumos em grande parte independentes. Não seguem uma direção única, estável; seu destino é tortuoso, incerto.

O crítico russo Viktor Chklóvski (1893-1984) estudou os procedimentos estilísticos de Tolstói e sublinhou o paralelismo. Chklóvski cunhou o conceito de construção escalonada, procedimento que se apresenta quando a narrativa desdobra um objeto mediante reflexos e justaposições. Essa é a base do paralelismo em "Anna Kariênina".

Senão vejamos: a constante presença da ferrovia contém um reflexo das linhas paralelas em que se distribuem os casais e os personagens. De maneira mais específica: o acidente ocorrido na chegada de Anna a São Petersburgo no início do livro contém um reflexo da sua própria morte sob as rodas de um trem, no final. E ainda: a frustrada tentativa de suicídio de Vrónski, o amante de Anna, surgirá como um reflexo antecipado do suicídio de Anna.

E mais ainda: o livro abre com a crise conjugal por que passa o irmão de Anna. Ela chega à capital para preservar o casamento ameaçado. E consegue. Mas essa crise, vista em retrospecto, surge como um reflexo da crise conjugal da própria Anna, que se desenvolverá nas partes seguintes.

As duas crises conjugais refletem-se. A segunda, a de Anna, se apresenta mais grave do que a primeira, a do irmão: ela se consuma na separação do casal oficial, ao contrário da primeira crise, resolvida com uma conciliação formal. A mesma gradação do mais fraco para o mais forte se verifica nas duas tentativas de suicídio: a primeira -a de Vrónski- se mostra mais fraca, contornável; a segunda -de Anna- tem desfecho fatal.

Olhando bem, até nesse quadro de dois pares e de duas ações que se refletem vemos formar-se outro paralelo: o da gradação a que ambos os pares obedecem. O primeiro tem efeito mais fraco; o segundo é conclusivo. O primeiro poderia ser visto como um agouro, um mau sinal. Talvez uma variedade mágica do paralelismo.

Mas voltemos às duas crises conjugais. Elas se refletem, embora tomem rumos distintos. A despeito do motivo comum (o adultério), são independentes, exceto na sua disposição no espaço do romance, pois aí as duas crises conjugais estão presas uma à outra. Ou seja, só a construção do livro cria uma associação entre tais fatos. Os acontecimentos em si mesmos não supõem tal associação.

Outro efeito desses reflexos de ações cronologicamente distantes é o enfraquecimento da noção do tempo linear. Pois, se um objeto ou um fato se reflete em outro, do passado ou do futuro, ambos estão presentes simultaneamente no pensamento: o tempo perde sua força de sequência, de concatenação, e adquire outra forma -a da duração.

DESDOBRAMENTO

A técnica do desdobramento do material romanesco permite que Tolstói expanda o romance até alcançar as dimensões incomuns que apresenta, sem perder a coesão.

Não se trata apenas de desdobrar a crise conjugal do irmão de Anna na crise conjugal da própria Anna, como já vimos.

Também não se trata apenas de desdobrar o eixo principal da narração em dois casamentos: o de Liévin e Kitty e o de Anna e Vrónski. O próprio casamento de Anna se desdobra em dois: o de Anna com Kariênin e de Anna com Vrónski. E mais ainda: Tolstói dá um passo além e conduz o processo de desdobramento até o âmago da personalidade de Anna.

Refiro-me à passagem em que Anna começa a ser vencida pela indecisão e pela ambivalência da sua situação, na qual tinha um marido e também tinha um amante, sem nada esconder de ambos e sem poder desfazer-se nem de um nem de outro. Diz o texto de Tolstói:

"Anna não só estava pesarosa, como também começava a sentir um pavor diante de um novo estado de espírito, que nunca experimentara. Sentia que em sua alma tudo começava a duplicar-se, como às vezes se duplicam os objetos para os olhos cansados. Às vezes, não sabia o que temia e o que desejava. Não sabia se temia ou se desejava o que existira antes ou o que iria existir, nem sabia exatamente o que desejava."

Logo adiante, o texto diz: Anna "sentiu que sua alma começava a duplicar-se". Quer escrever uma carta para o marido e outra carta para Vrónski. Planeja abandonar o marido, mas quer levar o filho. Tolhida pelas alternativas, Anna se divide entre elas.

E esse processo de divisões e subdivisões sucessivas contém um reflexo do processo de duplicação, de desdobramento, que ocorre em paralelo. Pois, na passagem citada, a consciência dividida de Anna engendra um mundo duplicado. Passo a passo, o romance se expande e multiplica as linhas do seu enredo e as projeta em dobro sempre adiante.

Digno de nota é o caso dos filhos de Anna. São dois: um menino, que ela tem com o marido; e uma menina, que tem com o amante. Anna se apega cada vez mais ao menino, o filho do marido, cujas feições se refletem no rosto da criança. No correr do romance, vê-se separada à força do filho e passa a procurá-lo com um ímpeto que toma o aspecto dos anseios de uma mulher apaixonada. De outro lado, Anna repudia a filha que tem com Vrónski. Parece ver na menina uma espécie de usurpadora que pretende tomar a posição do filho.

Esse desdobramento dos filhos e o paralelo formado pelos sentimentos vão se refletir no marido de Anna. Pois o marido, Kariênin, mesmo sabendo que não é o pai da criança, trata a menina com zelo paternal e, sem seu cuidado, talvez a criança nem sobrevivesse aos primeiros dias após o parto. Kariênin jamais se mostrou assim com o próprio filho.

Portanto ele também se duplica: no caso da filha de Vrónski, ele deixa de ser o homem preso às convenções. Chega a tratar com grande consideração o amante da esposa. Desse modo como que atravessa as linhas paralelas que compõem o nosso quadro.

DINAMISMO

Nessa situação, tão nitidamente calcada em linhas duplas que se dividem e se desdobram, pode-se ver que o paralelismo em "Anna Kariênina" não se traduz em antíteses, em oposições simétricas, nitidamente contrastantes. Há um dinamismo capaz de dar aos termos de cada um desses paralelos uma boa margem de autonomia, de vida própria.

O reflexo, processo em que os termos de cada par se espelham, confere coesão ao conjunto. O dinamismo que os movimenta evita que essa coesão se prenda a simetrias. Quero dizer, os termos que formam os pares e os paralelos não têm o mesmo peso.

O movimento de linhas paralelas tem um duplo aspecto. Supõe necessariamente uma semelhança, uma vez que as linhas se acham sempre lado a lado: cada uma sempre se refere à outra. Mas também supõe que as linhas nunca estão juntas. Sempre refletidas uma na outra, prendem-se, na verdade, em função de um desencontro.

Assim todos os casais importantes em "Anna Kariênina" se mantêm ligados em função de um constante desencontro. O que distingue os vários casais é seu sucesso ou seu fracasso em manter tal desencontro sob controle.

No caso de Kitty e Liévin -a família supostamente feliz-, esse esforço de estabilidade no desencontro chega ao fim do romance com sinais de um êxito precário. No caso de Anna e seu novo casamento, nunca sancionado socialmente, o desencontro sai do controle.

Torna-se insustentável e conduz à destruição a parte mais frágil: a mulher. Nesse aspecto, a construção com base no paralelismo, da forma elaborada por Tolstói -um paralelismo assimétrico-, contém marcas de um mundo social intrinsecamente desigual e opressivo.

Merece lembrança outro paralelo, não mencionado explicitamente no romance, mas postulado em sua concepção geral: o desencontro que prende a Rússia aos países ricos da Europa.

Em várias situações de "Anna Kariênina", a vida da elite russa apresenta reflexos desse modelo distante. Basta lembrar a frequência com que se fala francês, inglês e alemão entre as personagens e com que se mencionam obras e conquistas científicas e políticas daqueles países.

Aqui também, a exemplo do que ocorre com os vários casais do livro, os dois termos do par não se encontram. Correm em paralelo, com pesos desiguais. A Rússia e o modelo capitalista estão presos um ao outro em um desencontro constante. Se isso, por sua vez, pode ser visto como um reflexo antecipado -como sinal ou mau agouro- de outro paralelo do qual somos parte hoje, é uma questão que vale a pena se fazer, quando lemos "Anna Kariênina".

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A grana preta e suas relações com o inconsciente



Por Woody Allen
Da Revista Piauí

Se as orgias, o arremesso ocasional de um cristão aos leões e a regurgitação de línguas de pavão a fim de preparar o estômago para a segunda rodada de miolos de macaco representaram, para Edward Gibbon, indícios de que a toga romana estava prestes a sair de circulação, uma reportagem na qual meus olhos resvalaram quando punha em dia a leitura de números atrasados do New York Times serve de funesto testemunho sobre o futuro dos adeptos de banhos de leite.

Parece que agora existem psicanalistas especializados no tratamento dos super-ricos, um grupo cuja fortuna e poder criam problemas peculiares que intimidam e até instigam a inveja de psiquiatras classificados em faixas de tributação do imposto de renda menos obesas. Segundo a reportagem intitulada “Os desafios de tratar pacientes que pagam 600 dólares por sessão”, quando se psicanalisa o magnata típico, pode ser difícil para o médico resistir à tentação de “adotar, de maneira bajulatória, o ponto de vista do paciente”.

Em certos casos, aponta a matéria, “os pacientes tratam o terapeuta como apenas mais um membro de seu séquito de serviçais”. Um analista, incapaz de encontrar cinquenta minutos livres para atender um mandachuva, recebeu da secretária do paciente a seguinte pergunta: “Que tal às 10 horas? Ele vai voar para Hamptons, mas vamos mandar um carro buscar o senhor para que possa pegar o helicóptero junto com ele e fazer a terapia durante o voo.” De resto, os problemas que afligem os super-ricos podem ser menos existenciais do que, digamos, um mineiro de carvão que passa a sofrer de claustrofobia ao descer quilômetros abaixo da superfície da terra. Como exemplo de uma crise de maior requinte, a reportagem apresenta uma senhora abastada que se convenceu de que era uma jogadora de tênis pouco hábil. Podemos imaginar os soluços histéricos de uma loura da Quinta Avenida, paramentada de Prada: “Doutor, o senhor tem de me ajudar. Parece que não consigo de jeito nenhum acertar meu segundo saque.”

Toda essa decadência não poderia deixar de trazer à mente o seguinte esquete, que tanto pode ser lido como rasgado, ou quem sabe possa ser usado para deduções do imposto de renda.

O doutor Leon Parafuso Frouxo era a imagem exata que um cartunista faria de um psicanalista freudiano: meio calvo, atarracado, um cavanhaque à la Van Dyke, que evocava o mundo de Strauss e strudel da velha Viena, enquanto caminhava afobado, não pela Ringstrasse, mas pela Park Avenue, rumo a um atendimento domiciliar. “Não posso me atrasar”, sussurrava entre bufos e arquejos. “Não posso deixar o senhor Pólipo esperando. Não com a posição que ele ocupa na classificação da agência de negócios Dun & Bradstreet. O homem ganha mais em títulos do Tesouro num dia do que eu numa década. Na sexta-feira passada, quando me atrasei, ele me esculachou. É humilhante ouvir alguém falar assim com a gente. E a surra, então? Eu devia ter terminado o tratamento naquele minuto, mas detesto abrir mão de usar seu jato Gulfstream.

É interessante a neurose de que ele sofre: uma mórbida incapacidade de aprimorar sua tacada de golfe. Rico do jeito que é, pesa sobre o homem um tamanho bloqueio que ele só consegue dar tacadinhas de leve, como se a bola estivesse já perto do buraco. A causa subjacente se revelou óbvia a partir de um sonho que ele contou, no qual os 400 mais ricos da revista Forbes apareceram em sua janela com chapeuzinhos de cata-vento e regaram seu corpo com um molho de carne morninho. É claro que o senhor Pólipo rejeitou minha interpretação do sonho em favor da sua, e fui obrigado a concordar com ele, tendo em vista nossos patrimônios líquidos relativos. Sei que ele se sente superior a mim, e outro dia o surpreendi num ato falho muito revelador, quando quis elogiar minha serenidade e me chamar de “cabeça-fria” e usou “boia-fria”.

Tenho de conversar com meu próprio terapeuta sobre os problemas de identificação com a clientela abastada. Sendo a minha receita mensal o que é, o que será que passou pela minha cabeça quando paguei uma volumosa entrada para a aquisição de um iate de 60 pés à prestação? Foi deveras embaraçoso quando uma equipe da financeira apareceu e retomou a posse da embarcação, e eu estava em pleno mar, obrigando meus convidados a nadarem até a praia. E agora toda essa aflição em torno dos problemas conjugais de Pólipo. Quando sugeri que um relacionamento adúltero não resolveria nada, ele discordou enfaticamente e, que inferno, depois de alguns drinques e um final de semana com ele no Mar-a-Lago Club, ele me convenceu mais uma vez de que eu estava errado, e que um par de garçonetes de 19 anos seria a cura perfeita para a sua depressão. Passei para ele o telefone de Lola, a secretária de meu filho. Por que não? Além de solteira ela é, pelo que soube, um verdadeiro fenômeno. Também devo insistir para que ele não receba telefonemas de negócios durante nossas sessões. Sobretudo porque sempre me pede para sair da sala e esperar no corredor até a conversa terminar.”

Na esquina da rua 74 com a Park Avenue, Parafuso Frouxo, imerso em reflexões, nem percebeu para onde estava andando e enrolou-se na coleira de um cachorro puxada por um homem de ar erudito que passeava com um poodle.

“Santo Deus, tome cuidado”, repreendeu o homem. “Este animal é ganhador de vários prêmios.” E depois, com olhos arregalados: “Leon Parafuso Frouxo, pelas barbas do Profeta!”

“Vilmos”, disse Parafuso Frouxo, reconhecendo na mesma hora o colega de profissão. “Não nos vemos desde a convenção da Filadélfia. Ainda não tive a chance de lhe dizer como apreciei seu artigo ‘Amnésia como mecanismo de defesa contra o ato de dar gorjetas’. Não sabia que você tinha um cão premiado em exposições.”

“Ah, não é meu”, explicou o doutor Miolomole. “Estou só passeando com ele para meu empregador. Edwards, o motorista, telefonou avisando que estava doente. Em geral, é ele quem passeia com o Príncipe.”

“Seu empregador?”, indagou Parafuso Frouxo.

“Sim. Faço parte da folha de pagamentos do senhor e da senhora Lubrificante, que moram nesse condomínio de luxo.”

“Não está se referindo a Quincy Lubrificante, cuja família detém a patente da ideia dos royalties, o que lhe rende royalties toda vez que alguém ganha royalties, não é?”

“O próprio”, admitiu Miolomole. “A fortuna de ambos chega à casa dos porrilhões. Para encurtar a história, vivo com eles em tempo integral, na condição de psicanalista de plantão.”

“Não!?”, disse Parafuso Frouxo. “Eu estava louco para saber quem era o felizardo que tinha abiscoitado esse empregaço.”

“Pode parecer que é uma bênção dos céus”, confessou Miolomole, “mas, acredite em mim, eles não me dão sossego. Bem entendido, o salário é razoável. Ganho os protocolares seiscentos paus por hora, e mais opções de compra de ações a preço fixo. Claro que tenho meu próprio quarto, vizinho ao quarto da faxineira. Não é grande coisa, mas tenho uma televisão. O pessoal de serviço consiste em Juliana, a empregada, e eu, além de um chefe de cozinha, um motorista e um preparador físico particular. Eles são muito gentis e todos nós damos cobertura uns aos outros nas horas de emergência. Como aconteceu hoje, quando o motorista acordou gripado, e sobrou pra mim exercitar o cachorro. No final de semana passado, como Juliana teve de ir ao Departamento de Imigração, eu mesmo cuidei de fazer a faxina e empunhar o espanador de pó. Entre tudo isso, e ainda fazer compras na mercearia de importados, me sobra exatamente o tempo necessário para tratar dos ataques de pânico do senhor Lubrificante.”

“A julgar pelo que leio sobre ele no Wall Street Journal”, atreveu-se a falar Parafuso Frouxo, “diria que o homem sofre de narcisismo agudo.”

“Era precisamente esse o meu diagnóstico inicial, mas há algumas semanas tive de extrair um dente e Trúculus, o preparador físico particular, tomou meu lugar na psicanálise de Lubrificante.”

“O preparador físico fez a terapia?”, indagou Parafuso Frouxo.

“Já fez isso inúmeras vezes”, respondeu Miolomole. “É um garoto perspicaz. Sabe Pilates. Além do mais, trabalhou como leão de chácara, e assim assimilou certa dose de psicologia. De todo modo, fique sabendo que o Trúculus chegou ao âmago do problema de Lubrificante. Constatou que se tratava de culpa. Isso mesmo. Lubrificante passa por um inferno emocional toda vez que faz uma oferta hostil para se apossar de alguma empresa.
A única maneira que encontra para aplacar a consciência é presentear a si mesmo com a pintura de um mestre da Antiguidade, à guisa de recompensa. Então se sente duplamente culpado por gastar 300 milhões para comprar um Vermeer e depois jogá-lo dentro de um armário. Eu o ajudei, mas a melhora é lenta. Quando comecei o tratamento, ele pegava o carro, ia para sua casa em Lyme, acendia sua churrasqueira e queimava 4 ou 5 milhões em dinheiro vivo, por puro ódio de si mesmo. Pelo menos já consegui que não ficasse parado tão perto do fogo.”

“A propósito”, indagou Parafuso Frouxo, “tem alguma notícia de Paul Ersatz? Não o vi com os outros psiquiatras na praia de Vineyard este ano, e ainda estou com aquele seu disco voador de brincar na areia.”

“Lamento dizer que Ersatz não está mais entre nós”, respondeu Miolomole com ar solene. “Uma história horrível. Ele estava tratando de Morris Bancarrota, herdeiro dos milhões oriundos do comércio das máscaras feitas só de nariz e óculos postiços.

“E então?”, perguntou Parafuso Frouxo, com ar apreensivo.

“O único horário livre que o paciente tinha para a terapia era em seu helicóptero, no trajeto para a sua fazenda em East Hampton. Como sabia que o paciente era um titã da indústria extremamente ocupado, Ersatz concordou. Mas o helicóptero entrou numa zona de turbulência, o sofá onde o paciente estava deitado ricocheteou no teto e projetou Ersatz para fora da aeronave. Encontraram seu corpo no último terreno amplo o bastante para permitir a construção de um condomínio em Sagaponack.”

Naquele momento, saindo de um prédio impecável, com uma maleta na mão, surgiu um terceiro praticante da cura pela fala, a quem ambos conheciam e admiravam, Lobo Frontal, uma lenda nos círculos analíticos. Frontal era famoso por seu sucesso no tratamento dos casos de distúrbio de personalidade múltipla, pelos quais cobrava honorários em separado de cada uma das personalidades. Após uma rodada de saudações amigáveis, Parafuso Frouxo perguntou ao doutor Lobo o que andava fazendo.

“Acho que nunca devia ter aceitado tratar do caso de Fernando Fundo Falso”, disse, e suspirou.

“O nome é familiar”, ponderou Miolomole.

“Ele fez uma fortuna de bilhões com hedge funds. Mas depois se constatou que tudo não passava de esquema de fraude da pirâmide. E, ainda por cima, ele nunca pagou nenhum centavo de imposto. Foi obrigado a fugir de madrugada para as Ilhas Canárias. A questão é que Fundo Falso é rico como Creso, mas é um fugitivo da Justiça. Ele me paga para fazer sua psicanálise em trânsito. Encontramo-nos em locais secretos, marcados por intermediários. Às vezes nas Bahamas, às vezes na Venezuela, certa vez à meia-noite num hotel em Casablanca. Ah, sou bem remunerado. Embolso seiscentos paus por sessão, mas é uma rotina arriscada. Os agentes federais chegam cada vez mais perto. Uma vez, em Xangai, o paciente e eu tivemos de interromper uma epifania para nos jogarmos pela janela.
E, no Rio, trocamos tiros com a polícia. Na certa você está pensando por que razão eu ando com um berro sempre à mão, não é?”, disse o doutor Lobo e ergueu a perna da calça para deixar à mostra um revólver num coldre de canela. “É um serviço que ofereço à minha clientela mais chique.” Piscou o olho e se afastou.

“Eh... puxa vida”, disse Parafuso Frouxo com alívio, enquanto a tríade se desfazia.

“Também tenho de voltar ao trabalho”, disse Miolomole, checando a hora no relógio de pulso. “Está quase na hora do senhor Lubrificante, e além do mais prometi segurar o rolo de linha para sua esposa fazer tricô. Vejo vocês dois na convenção.”


sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O mundo está ficando mais chato


Por Diogo Antônio Rodriguez
Imagem: Marcus Penna
Da Revista Vida Simples

Assim já é demais. Não se pode falar mais nada! Imagine só, era piada. Ninguém aqui está dizendo que eles são piores, é só ter um pouco de senso de humor. Olha, antes a gente podia falar o que quisesse e não vinha ninguém reclamar, encher a paciência, fazer petição, entrar com ação, começar campanha na internet. E agora vêm querer me dizer que aquela obra antiga, consagrada, está errada também. Eita povo chato.
As falas acima foram encontradas em entrevistas, livros e comentários na internet. Todas têm algo em comum: foram feitas para criticar o tal do "politicamente correto". Em alguns casos, comentavam o pedido de proibição da campanha de uma marca de lingerie que incentiva a mulher a conseguir o que quer usando seu corpo. Outros, o pedido para que uma obra do escritor Monteiro Lobato não fosse distribuída em escolas públicas por conter trechos racistas. É fato que, cada vez mais, há pessoas reclamando de piadas, peças publicitárias e textos considerados ofensivos. E isso está gerando incômodo.
O politicamente correto surgiu durante o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, nos anos 1950 e 1960. Na época, a luta era contra a segregação oficial que as leis impunham, que chegavam a separar, fisicamente, negros e brancos, por exemplo. Depois de conquistado o direito à igualdade, era preciso combater a discriminação social, veiculada por meio de expressões, piadas e textos.
Um das bases para reivindicar essa mudança de atitude está no filósofo John Dewey, que considera que o uso da língua não é neutro. As palavras escolhidas expressam opiniões e têm conteúdo político. Assim, a linguagem também é um instrumento de discriminação e segregação e, por isso, não se devem usar expressões que reforcem preconceitos. Essa ideia se estendeu para outros movimentos políticos em favor de minorias, como o LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) e o feminismo.
Para o jornalista Leandro Narloch, autor de Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil (Leya), o politicamente correto é "uma patrulha ideológica, uma perseguição a modos diferentes de agir ou ver o mundo". "Não tenho nada contra muitas bandeiras politicamente corretas. Elas não são o problema. O problema é a postura contrária à liberdade, de querer impor seu ideal de felicidade a outras pessoas", diz ele.


Poder das palavras
Jean Wyllys, deputado federal pelo Rio de Janeiro e militante pelos direitos de minorias, rebate. "Alguém que cresce sob o insulto estabelece consigo uma relação de baixa autoestima", afirma. "Uma pessoa negra que foi criada num ambiente e numa cultura racistas, sendo chamado de `macaco', sendo chamado de `picolé de asfalto', ouvindo piadas do tipo `branco correndo é atleta, negro correndo é ladrão', essa pessoa vai crescer com uma relação de negação consigo."
O humor é um dos espaços em que a batalha entre o lado correto e o incorreto da política tem acontecido com mais frequência. Recentemente, o diretor Pedro Arantes lançou o documentário O Riso dos Outros, obra essencial para quem se interessa pela questão. Sua discussão é: humor deve ter limite? No filme, humoristas como Rafinha Bastos (que já foi processado por causa de piadas), Danilo Gentili e Fábio Rabin argumentam que, se o público ri de tiradas preconceituosas, o preconceituoso é o público. Já o escritor Antonio Prata coloca a responsabilidade maior nas mãos e microfones dos humoristas. "Quando você é racista, você não está fazendo nada de transgressor. Você está assinando embaixo da realidade. Está dizendo: `O mundo é desigual e eu estou rindo disso'." O cartunista Laerte concorda. "Discurso humorístico é um discurso ideológico", diz ele, no filme.
Mesmo Narloch vê limites nessa escolha: "Muita gente confunde o politicamente incorreto com falta de educação, racismo ou vontade adolescente de chamar a atenção". O politicamente correto pode, sim, ser usado em excesso e acabar virando patrulha do comportamento. Jean Wyllys enxerga isso em parte. "Eu até concordo e gostaria de frisar que há exageros", diz. "Mas é muito confortável apontar os exageros do politicamente correto e não apontar os exageros do politicamente incorreto. Os exageros são maiores e bem mais constantes, mas ninguém fala disso."
É importante, então, entender o que é o politicamente incorreto, e que visão é essa que, ao detectar um novo tipo de comportamento na sociedade, procura classificá-lo e torná-lo objeto de humor. É uma visão específica de mundo. Qual seria ela?
"É uma visão eurocêntrica. A cultura ocidental se constituiu dentro de um núcleo duro que é protegido, que é valorizado por todas as formas discursivas, não só pela língua, mas na TV, na publicidade, na pintura, na literatura. Privilegiou e continua privilegiando os brancos, os ricos, os magros, os bonitos, os heterossexuais e os cristãos", diz Jean Wyllys. A liberdade de expressão nunca foi universal: um negro nos anos 1950 não podia fazer piada com os brancos, por exemplo; ele certamente seria punido por isso.
Esses privilégios também podem ser conferidos na vida real. Segundo o IBGE, as mulheres ganham salário 28% menor que o dos homens no Brasil. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostra que os negros recebem 40% menos por hora trabalhada que os brancos. Uma das promessas de campanha de Barack Obama, presidente eleito dos EUA, é equiparar os salários de homens e mulheres no país. Esses dados são importantes porque mostram algo significativo: o discurso é reflexo de uma tendência que se manifesta de outras formas. Ou seja, a discriminação não é algo que ocorre apenas por meio das palavras. Há uma face real e concreta da marginalização que não pode ser ignorada.


Novas vozes
Gays, negros, mulheres, pessoas com deficiência: essas pessoas fazem parte de grupos que tiveram seus direitos historicamente negados. Antes, elas não podiam reclamar, entrar na justiça nem fazer passeatas. Mas agora elas podem. E fazem uso dos instrumentos legítimos disponíveis para evitar que o preconceito seja espalhado sem controle. E aqui não se trata só de proibir.
Um bom exemplo é o caso do pedido que o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) fez ao Ministério da Cultura. O livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, foi incluído na lista de materiais didáticos a serem distribuídos para escolas públicas do país. Publicado em 1933, o texto contém frases e expressões racistas, voltadas à personagem negra do Sítio do Picapau Amarelo, a Tia Nastácia.
Segundo o edital do PNBE (Programa Nacional Biblioteca na Escola), livros com estereótipos não podem ser comprados se não houver notas explicativas que contextualizem a obra. Antonio Costa Neto, membro do Iara, explica: "Na época de Lobato, a legislação era eugênica, de valorização da cultura eurocêntrica e desvalorização da afro-brasileira. O que aconteceu em 1988? A Constituição diz que o racismo passa a ser crime e que nós devemos valorizar as diversas etnias que formaram a nação brasileira".
Segundo ele, o que se pede é que o livro seja acompanhado por um material didático que o contextualize. Ao contrário do que muitos pensam, não se trata de "censurar" nem de "apagar" trechos da obra.
Lutar pelas palavras não é só implicância. Jean Wyllys exemplifica. "Durante muito tempo, as mulheres foram alijadas de direitos porque a Constituição dizia `eleitores' e não `eleitoras'." Algo que parece ser apenas preciosismo pode, na verdade, mascarar atitudes de exclusão.
É preciso pensar, então, no poder que temos ao nos expressar. Porque não se trata só de nos policiar para evitar processos e de afastar os "chatos" à espreita. Talvez seja o caso de pensarmos em aspectos que antes não vinham à nossa cabeça, de revisar comportamentos que antes passavam batidos porque não havia quem nos questionasse. Com essa mudança de perspectiva, tomar cuidado para não perpetuar preconceitos, em vez de significar menos liberdade, passa a significar mais. Mais liberdade e voz para quem antes não tinha.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Qual romance você está lendo?


Por Contardo Calligaris
Do Observe Bem


Sempre pensei que fosse sábio desconfiar de quem não lê literatura. Ler ou não ler romances é para mim um critério. Quer saber se tal político merece seu voto? Verifique se ele lê literatura. Quer escolher um psicanalista ou um psicoterapeuta? Mesma sugestão.

E, cuidado, o hábito de ler, em geral, pode ser melhor do que o de não ler, mas não me basta: o critério que vale para mim é ler especificamente literatura --ficção literária.

Você dirá que estou apenas exigindo dos outros que eles sejam parecidos comigo. E eu teria que concordar, salvo que acabo de aprender que minha confiança nos leitores de ficção literária é justificada.

Algo que eu acreditava intuitivamente foi confirmado em pesquisa que acaba de ser publicada pela revista "Science" (migre.me/gkK9J), "Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind" (ler ficção literária melhora a teoria da mente), de David C. Kidd e Emanuele Castano.

Uma explicação. Na expressão "teoria da mente", "teoria" significa "visão" (esse é o sentido originário da palavra). Em psicologia, a "teoria da mente" é nossa capacidade de enxergar os outros e de lhes atribuir de maneira correta crenças, ideias, intenções, afetos e sentimentos.

A teoria da mente emocional é a capacidade de reconhecer o que os outros sentem e, portanto, de experimentar empatia e compaixão por eles; a teoria da mente cognitiva é a capacidade de reconhecer o que os outros pensam e sabem e, portanto, de dialogar e de negociar soluções racionais. Obviamente, enxergar o que os outros sentem e pensam é uma condição para ter uma vida social ativa e interessante.

Existem vários testes para medir nossa "teoria da mente" --os mais conhecidos são o RMET ou o DANVA, testes de interpretação da mente do outro pelo seu olhar ou pela sua expressão facial. Em geral, esses testes são usados no diagnóstico de transtornos que vão desde o isolamento autista até a inquietante indiferença ao destino dos outros da qual dão prova psicopatas e sociopatas.

Kidd e Castano aplicaram esses testes em diferentes grupos, criados a partir de uma amostra homogênea: 1) um grupo que acabava de ler trechos de ficção literária, 2) um grupo que acabava de ler trechos de não ficção, 3) um grupo que acabava de ler trechos de ficção popular, 4) um grupo que não lera nada.

Conclusão: os leitores de ficção literária enxergam melhor a complexidade do outro e, com isso, podem aumentar sua empatia e seu respeito pela diferença de seus semelhantes. Com um pouco de otimismo, seria possível apostar que ler literatura seja um jeito de se precaver contra sociopatia e psicopatia. Mais duas observações.

1) A pesquisa mede o efeito imediato da leitura de trechos literários. Não sabemos se existem efeitos cumulativos da leitura passada (hoje não tenho tempo, mas "já li muito na adolescência"): o que importa não é se você leu, mas se está lendo.

2) A pesquisa constata que a ficção popular não tem o mesmo efeito da literária. A diferença é explicada assim: a leitura de ficção literária nos mobiliza para entender a experiência das personagens.

"Como na vida real, os mundos da ficção literária são povoados por indivíduos complexos cujas vidas interiores devem ser investigadas, pois são raramente de fácil acesso."

"Contrariamente à ficção literária, a ficção popular (...) tende a retratar o mundo e as personagens como internamente consistentes e previsíveis. Ela pode confirmar as expectativas do leitor em vez de promover o trabalho de sua teoria da mente."

Em suma, o texto literário é aquele que pede esforços de interpretação por aquelas caraterísticas que foram notadas pelos melhores leitores do século 20: por ser ambíguo (William Empson), aberto (Umberto Eco) e repleto de significações secundárias (Roland Barthes).

Na hora de fechar esta coluna, na terça-feira, encontro a mesma pesquisa comentada na seleção do "New York Times". A jornalista do "Times" pensou que a leitura literária, ajudando-nos a enxergar e entender os outros, facilitaria nossas entrevistas de emprego ou nossos encontros românticos.

Quanto a mim, imaginei que, na próxima vez em que eu for chamado a sabatinar um candidato, não esquecerei de perguntar: qual é o romance que você está lendo? E espero que o candidato mencione um livro que conheço, para verificar se está falando a verdade.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

20 aforismos de Franz Kafka

Franz Kafka

Por Otto Maria Carpeaux (seleção e tradução)
Da Revista Bula *


1 — Pelo próprio ato de viver, ele embaraça o seu caminho. O embaraço, porém, dá-lhe a prova de que ele vive.

2 — Certas pessoas negam a miséria, referindo-se ao sol; ele nega o sol, referindo-se à miséria.

3 — O motivo de o juízo da posteridade sobre o indivíduo ser mais certo do que o juízo dos contemporâneos, encontra-se no próprio morto. O indivíduo desenvolve-se só depois da morte, quando sozinho. A morte é para o indivíduo o que é a tarde de sábado para o limpador de chaminés: lava-o da fuligem.

4 — Todas as virtudes são individuais; todos os vícios são sociais.

5 — Ele tem dois adversários: o primeiro combate-o por trás, da Origem; o outro barra-lhe o caminho para a frente. Ele luta contra os dois. Para dizer a verdade, o primeiro, propulsando-o, ajuda-o contra o outro, e, do mesmo modo, o outro, repelindo-o, ajuda-o contra o primeiro. Mas isto só em teoria. Pois não há só os dois adversários: existe também ele próprio — e quem conhece as próprias intenções? É o seu sonho que num momento inesperado — e deveria ser uma noite, tão escura como nunca houve igual — abandona o campo de batalha, elevado que foi, graças à sua experiência na luta, à condição de juiz dos dois adversários.

6 — O verdadeiro caminho é o caminho sobre uma corda, estendida não no alto, mas no chão. Corda que parece destinada antes a fazer tropeçar que a ser atravessada.

7 — Há dois pecados capitais, dos quais derivam todos os outros: impaciência e relaxamento. Por efeito da impaciência, foi o homem expulso do paraíso; por efeito do relaxamento, lá não voltará. Mas… também pode ser que não volte por efeito da impaciência.

8 — O movimento decisivo da evolução humana é permanente. Por isso, têm razão os movimentos de espírito revolucionários, que declaram sem efeito todo o passado: nada ainda aconteceu.

9 — Um dos mais eficientes meios de sedução do Demônio é a provocação à luta. É como a luta com mulheres, que acaba na cama.

10 — Leopardos irromperam no templo e esgotaram os vasos sagrados; isto se repetiu sempre. Enfim, é possível imaginá-lo, torna-se parte da liturgia.

11 — Tu és a prova. Mas não existe aluno.

12 — As gralhas afirmam possuir o poder de destruir o céu. Isso está fora de dúvida, mas nada prova contra o céu; pois “céu” significa: ausência de gralhas.

13 — É só por nossa noção de tempo que falamos de Juízo Final; na verdade, é um permanente tribunal de emergência.

14 — Na luta entre o Mundo e ti, acompanha ao Mundo; não é lícito defraudar ninguém — nem o Mundo, portanto — da sua vitória.

15 — Uma fé como a guilhotina; assim leve, assim pesada.

16 — Existe conhecimento do diabólico, mas não existe fé nele; pois não existe mais diabólico do que existe.

17 — Até mesmo o mais conservador tem força para o radicalismo de morrer.

18 —  O ócio é o princípio de todos os vícios e o coroamento de todas as virtudes.

19 — O Messias só virá quando já não precisarmos dele.

20 — Muitos se queixam de que as palavras dos sábios são sempre só parábolas, inúteis na vida quotidiana; e só esta nos é dada. Todas as parábolas dizem apenas que o incompreensível é incompreensível; e isto já sabemos. Disse um: “Porque resistes? Se obedecesses às parábolas, transformar-te-ias em parábola, e estarias livre da vida quotidiana.” Outro disse: “Eu gostaria de apostar em que isto também é uma parábola.” O primeiro respondeu: “Ganhaste.” O outro disse: “Mas infelizmente, só na parábola.” E o primeiro: “Não, na realidade; na parábola, perdeste.”

*Publicado originalmente, em 1943, na extinta “Revista do Brasil”.


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Não chore pelo leite derramado





Por Liane Alves

Da revista Vida Simples

Era a terceira caixa de bombons que chegava à mesa de Ana Tereza nas duas últimas semanas. O bilhetinho era quase sempre o mesmo, uma letra graúda falando de amor e esperança, que invariavelmente ganhava desprezo de sua parte. Não lhe atingiam o coração também os pequenos presentes do moço, os convites para almoço e jantar. Ana Tereza se recusava a encontrar qualquer qualidade mais palpitante naquele homem de belo sorriso que há dois meses declarava intensamente sua paixão de todas as formas possíveis. Os motivos para tal nariz empinado eram muitos, segundo sua opinião: ele tinha sotaque do interior, não se vestia bem, era sovina, e, o pior, suava muito. A melhor amiga ainda sugeriu que Tereza desse uma chance para ele. Mas ela não quis nem saber. Mais três semanas se passaram e o cavalheiro recuou, em silêncio. No mês seguinte, apareceu ao lado de uma das mulheres mais bonitas do escritório. Os dois estavam namorando.

Ana tomou-se de um arrependimento mortal. Afinal, até que ele não era tão ruim assim (lembrou-se logo do sorriso). Também tinha chances de promoção, bom profissional que era. E deu para cantar em italiano numa voz afinadíssima perto da outra. Resultado: um mês depois, ela estava perdidamente apaixonada pelo ser anteriormente desprezível e arrasada. A amiga nem podia mais tocar no assunto.
Essa historinha (sem sobrenomes, por favor) foi contada na redação quando se discutia o tema da edição que você lê agora. Ela fala de forma singela dos arrependimentos cotidianos e reais da vida. Todos nós nos lembramos de coisas parecidas, um hobby adorado que foi abandonado sem motivo, uma viagem muito desejada que não aconteceu ou um afeto que não foi expressado no seu tempo justo.

Como a maioria daquilo de que nos arrependemos, essas histórias não resistem a uma análise mais apurada. "Muitos são falsos arrependimentos, pois toda escolha inclui uma perda. Perde-se de um lado, mas ganha-se de outro. Lamenta-se a perda sem considerar o ganho que, inclusive, pode não ser imediato nem aparente, mas que depois revela-se muito maior", diz a psicóloga paulista Ineide Soares, especialista em terapia familiar e bioenergética. E, se o que perdemos for melhor do que o que ganhamos, isso também faz parte do jogo. Tudo bem, de vez em quando acontece, é normal. "O problema é que tem gente que odeia perder. Importa-se muito com que o outro tem e conseguiu, mesmo que não seja de seu interesse pessoal real", diz Ineide. Também há os que desejam tudo para si, sem querer abrir mão de nada. "Querem ganhar sempre e não se arrepender nunca de nenhuma decisão. Ora, isso é pouco humano, uma fantasia infantil de onipotência."

São as más experiências e as perdas, quando admitidas plenamente e saboreadas em seu gosto amargo, que nos ensinam a viver. Elas nos tornam mais humanos, falíveis, flexíveis. É desse ponto frágil que podemos experimentar a compaixão por outros seres que perdem, e que sofrem as dores do esgarçamento da alma por isso. Conhecemos o gosto de sua aflição e podemos ser solidários com conhecimento de causa. O ganho dessa fraternidade em humanidade, dessa possibilidade de compaixão pelo outro com base em nossa própria experiência, já seria suficiente para absolver muitos de nossos erros e incompreensões do passado.


Nada de julgamentos

Outro erro frequente: não se pode julgar uma decisão do passado com os olhos do presente. O que foi decidido baseou-se no nível de consciência que se tinha na ocasião. Todos nós, se tivéssemos o olhar que temos hoje de alguns desvios de rota que fizemos no passado, seria pouco provável que nos perdêssemos neles. Mas nos esquecemos disso, geralmente por causa do peso da culpa. "A culpa e o perfeccionismo são as duas piores doenças da alma", diz o monge inglês Dom Laurence Freeman, presidente da Comunidade Mundial de Meditação Cristã. Em outras palavras, nós nos cobramos por uma perfeição que não existe na espécie humana. "A palavra arrependimento, em grego, é metanoia, que quer dizer apenas `mudança de direção'. Erramos, admitimos o erro, procuramos remediá-lo e mudamos de caminho. Só isso", diz Dom Laurence. É um longo aprendizado aprender a lidar com o erro de uma maneira firme, mas sem peso. Dom Laurence aconselha a prática de meditação e momentos de silêncio para acalmar o espírito e nos descondicionar da culpa.

Médica geriatra do setor de atendimento de doentes terminais do Hospital das Clínicas e uma das criadoras do serviço de cuidados paliativos do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, Ana Cláudia Arantes já viu muitos casos em que a culpa e o arrependimento paralisaram processos de aceitação e pacificação diante da morte. Dona Josefa, sua querida paciente de 92 anos, por exemplo, andava inquieta com seu passado e tinha medo de enfrentar "o julgamento de Deus". Foi preciso uma longa conversa para que a anciã pudesse se sentir digna do perdão divino. Mesmo assim, esse reconhecimento não foi imediato e só aconteceu após uma profunda reflexão. "Alguns dias depois, dona Josefa me disse: "Sabe, doutora, existem duas coisas na vida que mostram a justiça de Deus. Uma é a chuva. Chove para todos, em qualquer lugar, a qualquer hora. A outra é a morte". E, se o Criador era tão justo com as principais coisas da vida, porque não seria também na distribuição do seu perdão? Dona Josefa morreu após alguns dias com o coração aliviado. "Acordei no meio da madrugada com o barulho da chuva. E imediatamente pensei: dona Josefa morreu agora, junto com a chuva. Telefonei para o hospital e me confirmaram a morte dela."


Os cinco maiores arrependimentos

Uma enfermeira americana, Bronnie Ware, escreveu um livro que poderia ser traduzido como "Os cinco principais arrependimentos dos pacientes terminais" (The Five Tops Regrets of Dying). "A última impressão da vida é a que fica marcada no espírito. Seria muito bom que ela não fosse de pesar e arrependimento", diz ela. Por isso, nesse momento é importante não julgar a vida apenas pelo viés do prazer, porque sempre vamos ter a sensação de que não nos divertimos o suficiente e não a aproveitamos totalmente. "Na verdade, a vida é muito curta, e o tempo que sentimos que vivemos com mais intensidade e prazer é pouco mesmo. A maior parte dela transcorre no tempo ordinário, comum", diz a médica geriatra Ana Cláudia. Esse é o normal. "Viver é fazer escolhas, e algumas delas incluem abrir mão do prazer imediato. Para ser amados e aceitos, ou por amar mais aos outros que a nós mesmos, muitas vezes fazemos grandes sacrifícios", complementa.

A questão real é que muitas vezes isso é feito condicionalmente, como uma espécie de troca. Nós nos sacrificamos pelos outros, mas achamos que eles nos devem na mesma proporção. Quando não há reconhecimento e mesmo o sacrifício não é aceito, é comum a pessoa se arrepender amargamente. Se um pai lutou para colocar o filho na faculdade, que decidiu sair no quarto ano de engenharia para ser mágico, ele pode sentir um grande arrependimento perto da morte. "Não podemos decidir pelos outros. Eles têm todo o direito de não concordar com aquilo que julgamos ser bom para eles", diz com clareza Ana Cláudia. Por isso, ser mais fiel a si mesmo e só fazer sacrifícios de forma incondicional pode ser um bom norte para não se lamentar mais tarde. Aliás, o desejo de viver uma vida mais verdadeira e não a vida que outros esperam de nós é o primeiro grande arrependimento dos cinco elencados pela enfermeira americana.

Os outros quatro arrependimentos ("eu gostaria de não ter trabalhado tanto", "eu queria ter tido mais coragem para expressar meus sentimentos", "eu desejaria ter tido mais contato com meus amigos" e "eu gostaria de ter me deixado ser mais feliz") são outras boas indicações de mudanças que podem ser feitas durante a vida, sem precisar chegar ao seu fim para se arrepender. "A morte é boa conselheira, mas podemos mudar sem a necessidade de estarmos diante dela", diz a médica Ana Cláudia. "Podemos procurar um trabalho que nos satisfaça mais, para não sentir que perdemos tanto tempo sem ter prazer. Ou estar mais perto dos amigos, expressar mais sentimentos. Uma pessoa próxima à morte pode se tornar muito mais doce e carinhosa, mas é possível fazer isso na vida antes com quem amamos, sem ter de esperar o desenlace", comenta a médica.

O últimos dos quatro, a vontade de ter se deixado ser mais feliz, resume um pouco todos os outros. "Acredito que cada um venha nessa vida para cumprir um papel. É importante saber qual é sua missão no mundo, nas suas relações, e tentar realizá-la com todas as suas forças", afirma a médica. "Acho que as pessoas que mais se arrependem são as que tiveram a chance de mudar e não mudaram", finaliza.


Montaigne e a arte de viver

Ele era um magistrado na cidade francesa de Bordeaux, tinha um castelo e, na sua propriedade, muitos vinhedos. Mas o que um rico burguês que nasceu há 480 anos poderia dizer ao homem atual? Tudo. Ao contrário dos escritores de sua época, Montaigne era muito moderno. Os Ensaios, uma obra que escreveu durante 20 anos, são uma espécie de blog do século 16 e falam essencialmente sobre a arte de viver. Em seus escritos se pode reconhecer os mesmos conflitos e reflexões que nos habitam hoje. E sua extensa obra responde a uma só pergunta: como viver de maneira a não se arrepender depois? Michel Montaigne nos ensina a ter uma existência significativa, digna e correta sem perder o prazer de viver. Tudo que mais queremos na vida. No livro Como Viver, uma biografia criativa e bem-humorada de Montaigne, a autora inglesa Sarah Bakewell responde a essa pergunta com 20 tentativas de respostas baseadas no que ele escreveu. Elas podem incluir, por exemplo, abrir mão do controle, ser comum e imperfeito, fazer algo que nunca tenha feito, ser mais sociável com os amigos, sobreviver ao amor e às perdas, recorrer a pequenos truques, fazer um bom trabalho, mas nem tanto, refletir sobre tudo, mas não se arrepender de nada.

Para Montaigne, a existência nos conduz pela mão e não precisamos nos preocupar com nada. Segundo ele, a vida nos encaminha para um "declive suave praticamente imperceptível, aos pouquinhos". A vida pode ser boa, divertida e natural, nos diz ele. Comece então com Como Viver, esse incrível manual de vida.


Com o calor da paixão

Vinicius de Moraes, o poeta, dizia que para se viver um grande amor é preciso ter "a insensatez de um coração constantemente apaixonado". Porque a vida embebida na paixão tem outro gosto: as manhãs se revestem de neblina e encanto, os horizontes de cores e esperanças, o peito de luz e gozo. Mas qual seria a receita para se experimentar mais vezes esse gosto único? Num livro de crônicas e poesias, Vinicius dá sua fórmula mágica: fidelidade absoluta, cavalheirismo, dedicação e entrega. O poeta carioca, que nunca separou sua existência de sua poesia, compreendia que o coração aberto, a sensibilidade à flor da pele, a delicadeza e a noção exata da preciosidade do amor eram pré-requisitos essenciais para esse encantamento. Pois o mesmo vale para a vida. Ela precisa dessa paixão por todos seus aspectos para se tornar inesquecível, palpitante, intensa.

Para isso, há de se aceitá-la integralmente. Reconhecer que nela é tão preciosa a lágrima e a angústia quanto o sorriso. Essa atitude é fundamental para um novo apaixonar-se, pois o amor exige a exposição ao sofrimento e coragem. Sem tudo aceitar e sem encantar-se com tudo, corre-se o risco de não saborear a vida. "A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro", nos sussurra Vinicius nas páginas do livro Para Viver um Grande Amor (Companhia das Letras). "O maior solitário é o que tem medo de amar, de ferir e ferir-se (...). Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno." Melancólica imagem de quem tem medo.

Amar a vida e não se arrepender é dizer um sim incondicional a exatamente como ela é: com sua dose de beleza, natureza e magia tanto quanto sua violência, maldade e angústia. E, se um dia nos arrependermos de nossa ousadia, ilusão e engano, também não há problema. O mundo é assim. Está tudo certo.