quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O chute


Por Bernardo Esteves
Da Revista Piauí

Miguel Nicolelis correu o Brasil nos últimos meses para promover seu primeiro livro para o público leigo. Em todas as palestras de divulgação de Muito Além do Nosso Eu, lançado em nove cidades, o neurocientista mostrou à plateia fotos da macaca Aurora. Ela foi a protagonista de uma experiência que ele organizou na Universidade Duke, nos Estados Unidos. Com um chip implantado no cérebro, a macaca usou o pensamento para movimentar um braço robótico, sem que ela própria precisasse mover um músculo.

Nicolelis acredita que a pesquisa tem enorme potencial para vir a devolver a mobilidade a pessoas incapacitadas por lesões medulares, caso das paraplégicas. Com um implante no cérebro, elas poderiam imaginar o movimento de seus membros e, com os sinais elétricos gerados por essa mera intenção, movimentar um esqueleto artificial que ficaria fora do corpo.

Nas palestras, o cientista costuma chorar no exato momento em que fala da eventual concretização da experiência. Foi o que ocorreu, em julho, na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. Lá, primeiro ele mostrou um esboço da veste robótica que será comandada pela mente do paralítico. Em seguida, anunciou que gostaria de fazer a primeira demonstração pública da tecnologia no jogo de abertura da Copa de 2014. E por fim disse: “Nosso desejo é que uma criança brasileira, até então quadriplégica, possa capitanear a Seleção Brasileira em direção ao campo e entrar no campo à frente do time nacional e, no país do futebol...” Com a voz embargada, Nicolelis foi interrompido por aplausos. Retomou o raciocínio pouco depois, com lágrimas nos olhos: “... e executar, no país do futebol, o primeiro gol da ciência brasileira para toda a humanidade.”

No começo de outubro, Miguel Nicolelis e seu grupo de Duke publicaram mais um artigo numa das revistas científicas mais renomadas internacionalmente, a Nature. Ele mostrou que macacos não só são capazes de comandar um braço virtual com a atividade cerebral, mas também conseguem receber de volta informações sobre a textura dos objetos tocados pelo artefato. Seria possível, portanto, que uma veste robótica enviasse ao cérebro informações acerca do terreno sobre o qual anda, ou a superfície que toca.

Miguel Ângelo Laporta Nicolelis está desde 1989 nos Estados Unidos, onde foi fazer carreira depois de se graduar em medicina e ter feito doutorado em fisiologia, nos dois casos pela Universidade de São Paulo. Em Duke, o seu grupo é um dos mais adiantados nas pesquisas sobre o desenvolvimento de interfaces cérebro-máquina. Também foi um dos criadores de um instituto de pesquisa de neurociência em Natal, que já atraiu ao Rio Grande do Norte quinze pesquisadores de outros estados e países, milhões de reais em verbas federais, e atende à população pobre da região.

O bom trânsito na grande imprensa, nas revistas especializadas e em centros de pesquisa prestigiados, suas palestras e lágrimas misturando paralisia, ciência e futebol, o vai e vem entre a rica Duke e a pobre Natal colocam Nicolelis numa Estocolmo potencial e imaginária. O paulistano de 50 anos, de olhos verdes, barba espessa e boné do Palmeiras representa a torcida nacional por um prêmio Nobel que nunca veio.



Os neurônios são as células responsáveis pelo processamento e transmissão da informação. Nicolelis diz que seu trabalho consiste em escutar as sinfonias compostas por grandes populações dessas células. Não é possível, segundo ele, entender a atividade cerebral estudando um único neurônio, como os neurocientistas fizeram ao longo do século XX – seria como querer compreender a Nona Sinfonia a partir do oboé.

Em Muito Além do Nosso Eu, Nicolelis se apresenta como um dos que abalaram a ideia de que o cérebro tem regiões especializadas em determinadas funções cognitivas, a ponto de haver neurônios encarregados de tarefas específicas. Essa abordagem, que no fundo seria uma fantasia, deu lugar a uma visão do cérebro na qual as funções cognitivas são processadas de forma horizontal, “distribuída”, no jargão dos estudiosos.

Para Nicolelis, a aceitação da visão “distribucionista”do cérebro deve muito aos trabalhos de John Chapin, com quem ele trabalhou na Filadélfia, assim que chegou aos Estados Unidos. Chapin usou sensores capazes de registrar simultaneamente a atividade elétrica de algumas dezenas de neurônios. Ele empregou um feixe com filamentos flexíveis e finíssimos, de aço inoxidável, com poucos milímetros de comprimento. Em pesquisas com ratos, esses microeletrodos perfuravam o cérebro e mediam os disparos de vários neurônios individuais ao mesmo tempo.

O pulo do gato ocorreu quando se descobriu, por meio da atividade elétrica monitorada pelos eletrodos, que havia padrões que podiam ser traduzidos em instruções mecânicas para comandar um braço robótico. Foi um movimento ousado: o grupo mostrou que não era preciso decodificar a atividade elétrica do cérebro, ou mesmo entender como ele funciona. Bastava encontrar uma forma de canalizá-la para um fim específico. O princípio foi demonstrado numa experiência com a macaca Aurora, que Nicolelis considera a mais importante de sua carreira – e por isso mostra fotos dela em palestras.



No final de agosto do ano passado, ao acertar a doação de um supercomputador pelo governo suíço, Miguel Nicolelis anunciou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva seu plano de fazer um menino paralítico andar na abertura da Copa do Mundo. Mas antes disso ele já falava do assunto. Recentemente, ao tomar café da manhã numa padaria de Natal, disse não ter certeza de quando anunciou o projeto pela primeira vez: “Foi numa palestra em junho ou julho de 2009.”

O plano ganhou consistência quando o método testado com Aurora se mostrou capaz de coletar informações neuronais para controlar um robô inteiro, e não apenas um braço. A demonstração foi feita em janeiro de 2008: seu grupo conseguiu fazer com que a atividade cerebral de Idoya, uma macaca de 80 centímetros que caminhava na esteira de um laboratório em Durham, na Carolina do Norte, comandasse os movimentos de um robô humanoide de 1,5 metro que estava num laboratório em Kyoto, no Japão, a 10 mil quilômetros dali.

Numa entrevista ao New York Times, Nicolelis evocou a frase do astronauta Neil Armstrong, o primeiro homem a pisar na Lua, para caracterizar o experimento: “Foi um pequeno passo para um robô, mas um passo gigantesco para um primata.”

Gordon Cheng, um amigo australiano de Nicolelis que participou da pesquisa, trabalha agora na Universidade Técnica de Munique. Cientista de computação, é ele quem desenvolve a veste robótica.

Os esboços que foram divulgados indicam que ela consistirá numa estrutura metálica, acoplada em vários pontos aos membros paralisados e articulada no calcanhar, joelho, cotovelo, pulso e nos dedos. Não chega a ser um Robocop, mas poderá dar à criança o ar de um pequeno ciborgue. Já não haverá mais cabos ligando o implante cerebral ao controlador da roupa robótica: ela terá uma tampa de acrílico na cabeça sobre o local do implante, e a atividade elétrica cerebral será transmitida à veste por tecnologia sem fio.

Do menino – ou menina, como Nicolelis às vezes ressalta – a participar do estudo, sabe-se apenas que será brasileiro. Sem dar muitos detalhes sobre o protocolo experimental desenhado para realizar o projeto, o cientista disse que, após uma primeira triagem dos participantes, serão selecionadas de três a cinco crianças para receber o implante na fase final do estudo.

Para concretizar seus planos, Nicolelis precisa obter registros neuronais com força e destreza para comandar um exoesqueleto complexo. Quanto maior for o número de movimentos possíveis da veste robótica – ou “graus de liberdade”, como preferem os engenheiros –, maior será a quantidade de neurônios que os cientistas terão de monitorar.

Falando do projeto enquanto dirigia um carro alugado pelas ruas de Natal, Nicolelis avaliou o que falta fazer: “Temos que chegar a 10 mil neurônios. É o mínimo para termos 31 graus de liberdade.”

Em testes com macacos, sua equipe já conseguiu registrar no máximo 800 neurônios. Para superar a longa distância até a meta estipulada por Nicolelis, o seu grupo aposta numa nova geração de eletrodos. Desenvolvidos em Duke, eles estão prestes a ser testados. “A primeira meta é passar dos mil neurônios registrados agora em janeiro”, anunciou Nicolelis.



O projeto de Nicolelis passa por Macaíba, uma cidade da região metropolitana de Natal onde ficará o Campus do Cérebro. Previsto para abrigar parte das pesquisas, o complexo ainda está em construção. Haverá um prédio de três andares e 12 mil metros quadrados de laboratórios. A estrutura do edifício está de pé, mas há muito chão pela frente até a conclusão da obra. Há pouco, foi terminada a laje do 3º andar.

Caminhando pelo prédio em construção, Nicolelis parecia enxergá-lo pronto. “Aqui serão os laboratórios e aqui, os viveiros”, disse, apontando para uma área vazia no 2º andar. “Vários desses espaços não vão ter divisórias, serão espaços grandes. E aqui esperamos fazer a maior parte do trabalho experimental do projeto Walk Again.”

Associados ao centro de pesquisa, já estão em funcionamento dois centros de educação científica, em que alunos da rede pública participam de oficinas de ciência, e uma clínica de saúde para cuidados pré-natais a grávidas da periferia de Natal. Nela, são feitos 1 200 atendimentos por mês. No Campus do Cérebro, funcionará uma escola que prevê o atendimento de até 5 mil crianças, em tempo integral.

Embora não seja filiado, Miguel Nicolelis apoiou a fundação do PT e se identifica com o partido. Nas últimas eleições presidenciais, não votou, mas apoiou em público a candidatura de Dilma Rousseff. Com passe livre em Brasília, foi recebido pela presidente e pelos ministros da Educação, da Ciência e da Saúde, a quem pediu verbas para o Campus do Cérebro. Pelas suas contas, passa de 50 milhões de reais o total de recursos públicos que ele convenceu o governo a investir na iniciativa.

Mas será preciso mais, caso o Planalto queira bancar o “primeiro gol da ciência brasileira”, prometido pelo neurocientista. “A primeira coisa que tem que acontecer é o governo brasileiro se comprometer oficialmente a ajudar a coisa a funcionar”, disse Nicolelis. Ele submeteu ao Ministério da Ciência um projeto detalhado para a realização no Brasil de parte das pesquisas e deixou claro que, sem o apoio do governo, não será possível cumprir a meta: “Se não der para começar em janeiro, não dá para fazer até a Copa.”



Em julho, uma das pontas do projeto se soltou. Um grupo de pesquisadores contratado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte para trabalhar em parceria com o instituto de Nicolelis anunciou a ruptura com o neurocientista. Eram liderados pelo brasiliense Sidarta Ribeiro, um dos idealizadores do centro, e a quem Nicolelis chamou, em 2008, de “quase um filho”.

A criação de um instituto que atraísse pesquisadores brasileiros no exterior foi desenvolvida, no final dos anos 90, por Sidarta Ribeiro e Claudio Mello, seu orientador de doutorado na Universidade Rockefeller, em Nova York. Quando eles formalizaram uma proposta, envolveram outros pesquisadores, inclusive Miguel Nicolelis, em cujo laboratório Ribeiro foi fazer pós-doutorado. A princípio, o instituto seria instalado em São Paulo e seria financiado por doações particulares.

A proposta não obteve financiamento, mas foi encampada alguns anos depois pelo governo Lula, já reconfigurada com a missão social que Nicolelis injetou no projeto. A ideia agora era instalar o instituto no Nordeste, longe dos grandes centros científicos.

Nicolelis criou uma organização da sociedade civil de interesse público para viabilizar a captação de recursos e foi passar o chapéu junto a filantropos. Se os empresários brasileiros não têm o costume de financiar atividades de pesquisa, os cientistas tampouco estão habituados a bater à sua porta em busca de verbas. Mas o cientista acabou por arrecadar um volume admirável de recursos, que ele prefere não revelar, mas estima “entre 35 e 40 milhões de reais”.

A contribuição mais expressiva foi retribuída com o nome do novo centro: Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, de sigla IINN-ELS. Do lado público vieram repasses em modalidades variadas que permitiram equipar as instalações com as quais o Instituto conta hoje: um prédio de pesquisa em Macaíba e outro em Natal, além da clínica de saúde e dos centros de educação científica. Para a criação do grupo de pesquisa que usaria essas instalações, foi feito um arranjo institucional intrincado, que trazia em seu cerne a raiz da crise que provocou o rompimento em julho.

Os pesquisadores que trabalhavam nos dois prédios do Instituto eram na maior parte professores contratados e pagos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a UFRN. O Ministério da Educação deu sinal verde para a realização de concursos para 25 professores de neurociência – dez deles já foram efetivados e outros quatro ainda não tomaram posse.

O previsto era que os professores dessem suas aulas na universidade e tocassem suas pesquisas com os alunos nas instalações do novo instituto, gerido pela entidade civil criada por Nicolelis para arrecadar fundos. Os professores seriam também responsáveis pela formação de alunos nos cursos de mestrado e doutorado, conferindo ao projeto um componente de formação de recursos humanos, fundamental para sua aprovação pelas agências governamentais de financiamento.

Nos prédios de pesquisa do Instituto, a maior parte dos equipamentos foi adquirida para uso nas pesquisas que seriam tocadas ali, mas havia também máquinas compradas como parte do “enxoval” dos professores: para cada contratado, 500 mil reais seriam gastos no aparelhamento de laboratórios.

Sidarta Ribeiro e Claudio Mello estavam na primeira leva de professores concursados. Mello nunca assumiu e abriu mão da vaga. Ao contrário de Ribeiro, que tinha concluído o pós-doutorado em Duke e ainda não tinha posição estabelecida, Mello já estava à frente de um laboratório na Universidade de Saúde e Ciências do Oregon e tinha mais a perder. “Depois do concurso, entrei em fase de grande produção”, contou Mello numa entrevista telefônica, falando de Portland. “Eu não tinha condição de me mudar para Natal e deixar para trás o financiamento que havia conseguido.” Dos três idealizadores do novo centro de pesquisa, o único que, de fato, se repatriou foi Sidarta Ribeiro, que mora em Natal desde o fim de 2005.



Como acontece nas universidades federais, os novos professores da UFRN tinham autonomia para organizar suas prioridades acadêmicas. No cotidiano do Instituto, no entanto, se viram às voltas com normas que lhes pareceram inflexíveis e pouco razoáveis, e com um modelo de gestão centralizador e arbitrário. Os relatos do grupo pintam um quadro de burocracia, controle e restrição de suas atividades e do acesso a instalações. Nesses relatos, a figura do Miguel Nicolelis sonhador e visionário dá lugar a um administrador intolerante e suscetível a acessos de exaltação. Nenhuma decisão importante seria tomada sem passar por ele. Chegou uma hora em que a ruptura foi inevitável.

Um foco de atrito foi um simpósio internacional que os professores tentaram organizar no auditório do Instituto. Nicolelis não quis ver o nome do centro associado ao evento, que teve de ser realizado nas dependências da universidade. Outro episódio desgastante foi a demora na instalação de um microscópio adquirido com recursos públicos, mas em nome da entidade civil presidida por Nicolelis. Ele foi deixado por meses dentro de caixas nos corredores do Instituto. Numa cena digna de um filme de Chaplin, os pesquisadores da universidade esvaziaram uma sala para a instalação do equipamento, mas funcionários dirigidos por Nicolelis recolocaram todos os móveis de volta enquanto eles se ausentaram por duas horas.

Onde o grupo dissidente enxerga intransigência e irracionalidade, Nicolelis vê apenas a inadequação dos professores da UFRN a um ambiente gerido por regras estritas, comuns em outros centros de pesquisa privados. “Nesse projeto se cumpre a lei, e eu sou filho de juiz”, defendeu-se. “Norma que tem que ser cumprida é cumprida. A gente reclama, torce o nariz, mas faz.”

Ele taxou as atitudes do grupo de “comportamento infantil” e avaliou que eles não souberam se acomodar a um ambiente ao qual não estavam acostumados. “Em vez de sentar e fazer ciência, queriam gerir um instituto de pesquisa do modo que acham que tem que ser feito”, disse. “É gente que acabou de sair do pós-doutorado, não tem experiência de gerir um laboratório. Eles não têm tarimba de gestão, não têm experiência de arrecadação de fundos, não têm experiência do que é o Brasil.”

Já Sérgio Neuenschwander, professor titular da UFRN, enxerga uma contradição entre a gestão de Nicolelis à frente do Instituto e a concepção de cérebro que ele propõe em Muito Além do Nosso Eu: “O modelo de funcionamento da instituição que ele propõe fazer no sertão é de uma célula única, isolada, que é tudo o que ele contesta tão veementemente em seu livro.”



No ano passado foi assinado um convênio para regulamentar a relação institucional entre o lado público e privado da parceria. Ele previa que a sociedade de Nicolelis recebesse 540 mil reais do Ministério da Educação e da UFRN para as despesas com água, luz, material e manutenção de equipamentos usados pelos professores nas atividades de pesquisa, orientação de alunos e realização das aulas.

Com o convênio, surgiu uma lista de pessoas autorizadas a frequentar as dependências do Instituto. Limitada a 95 nomes, ela gerou situações constrangedoras. Não pelo conteúdo, mas pela aplicação. Entre os visitantes que tiveram o acesso vetado, estão um pesquisador estrangeiro convidado e uma aluna de pós-graduação matriculada numa disciplina oferecida no auditório do Instituto – ela acabou desistindo do curso por causa do entrave burocrático.

Meses depois da assinatura do convênio, Nicolelis reuniu-se com os dez professores da UFRN. Pelo relato deles, com tom irascível e palavras duras, o cientista paulistano criticou a inexperiência e a produtividade do grupo, e acusou-o de não fazer trabalhos cientificamente relevantes.

Outro sinal veio em junho, quando Sidarta Ribeiro teve retirada da sala que ocupava no Instituto a placa com seu nome na porta. Recebeu também um pedido por escrito para desocupar a sala e deixar de estacionar na garagem do Instituto.

Um grupo de professores decidiu então acelerar a ocupação de uma casa alugada para o funcionamento do Instituto do Cérebro da UFRN. A criação de outra unidade acadêmica não foi motivada pela ruptura: ela era prevista e necessária para abrigar os 25 professores e 60 técnicos contratados pela universidade.

Acionada pelos professores, a reitoria começou uma negociação com o grupo de Nicolelis para resgatar equipamentos de propriedade da universidade que estavam nas dependências do Instituto. No fim de julho, um caminhão foi buscar computadores, gaiolas, uma centrífuga e uma estufa de dióxido de carbono, entre outros itens. Noticiada pela Folha de S.Paulo, a retirada dos equipamentos trouxe à tona o fim da parceria entre os cientistas que haviam dado início ao sonho de um centro de pesquisa de ponta em Natal.



O Instituto do Cérebro da UFRN tem 860 metros quadrados de área e ocupa uma casa de um andar, onde antes funcionou uma clínica de acupuntura. Os laboratórios estão sendo instalados nos quartos e até num banheiro. O ponto de convergência da casa é uma sala ampla, conectada a outros cômodos e na qual foi instalada uma grande mesa de reunião. Em estantes espalhadas nas paredes estão as poucas dezenas de livros que formam um embrião de biblioteca, muitos deles doados por Sidarta Ribeiro. A sala dá acesso também para a grande área externa com pomar e piscina, na qual alunos costumam trabalhar com seus laptops.

Alguns microscópios e outros equipamentos já funcionam. A expectativa é de que uma rotina de pesquisa se estabeleça nos próximos meses, à medida que novos laboratórios ficarem prontos. O gargalo principal é a adequação das instalações elétricas para receber equipamentos que estão aguardando a montagem – por causa disso, muitos ambientes não tiveram ainda o ar-condicionado instalado.

Nos corredores, há caixas com equipamentos de informática, cadeiras a serem montadas, armários em plástico-bolha e freezers envoltos em isopor. Quando visitei o Instituto, ainda não havia animais para as pesquisas. Na segunda quinzena de novembro, Sidarta Ribeiro me telefonou para anunciar a chegada dos primeiros ratos, emprestados por outros laboratórios da UFRN. Há também espaços projetados para receber macacos-prego, camundongos, gatos e lagartos. A impressão é de rapidez na construção do novo centro. “Em unidades temporais brasileiras, estamos montando um instituto de forma instantânea”, disse Ribeiro.

O grupo de pesquisa é formado por neurocientistas jovens, nenhum deles do Rio Grande do Norte. Muitos vinham de pós-doutorados no exterior e assumiram em Natal seu primeiro posto fixo. Há professores mais experientes, como o casal de neurocientistas formado pelo brasileiro Sérgio Neuenschwander, de 50 anos – o mais velho do grupo –, e a alemã Kerstin Schmidt, de 40. Eles deixaram seus postos como pesquisadores do Instituto Max-Planck para a Pesquisa do Cérebro, em Frankfurt, para morarem em Natal.

O ambiente entre os professores do Instituto do Cérebro é de união e cordialidade, como se quisessem mostrar com quantos graus de liberdade se faz um instituto. Dráulio de Araújo, um físico de 40 anos que faz parte da equipe, resumiu o espírito: “Hoje temos um ambiente saudável, sem cacique e com pessoas novas, com muita energia, querendo construir algo diferente, saudável e respeitoso com os pares, tanto regional quanto nacionalmente.”

Sidarta Ribeiro, que passou parte dos últimos anos ajudando a erguer o Instituto, e só recentemente retomou o ritmo da produção acadêmica, não parece desanimado com a perspectiva de construir uma instituição de pesquisa quase do zero. “Fazer tudo de novo tem suas desvantagens, mas a principal vantagem é que dá pra fazer melhor”, disse.



Com a debandada dos dez professores, o quadro de pesquisadores do Instituto ficou restrito a cinco nomes, além de Nicolelis. O diretor científico é o chileno Rômulo Fuentes. Quando solicitei uma entrevista com ele, uma assessora de imprensa respondeu: “O porta-voz do Instituto é o Miguel Nicolelis.”

As instalações serão repovoadas em breve, garantiu Nicolelis. O Instituto está recrutando quinze alunos de pós-doutorado. E aguarda a aprovação de cursos de doutorado em neuroengenharia, neurotecnologia e neuroeducação. Nicolelis anunciou ainda que 71 neurocientistas de vários países virão passar temporadas – de algumas semanas, meses ou anos – no Brasil, para dar aulas ali.

Na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, o discurso oficial é de conciliação. O engenheiro eletricista José Ivonildo do Rêgo, que foi reitor até maio, espera que as duas instituições saiam fortalecidas da cisão. “Esta pode ser uma oportunidade de reciclar a proposta original. Pode haver uma competição saudável e colaborativa entre os dois grupos”, acredita. “Quanto maior for a base, melhor será para Natal se transformar numa referência internacional em neurociência.”

O próprio Sidarta Ribeiro evita descrever a saída dos professores como uma cisão. Ele prefere falar em “mitose”, termo que designa o processo em que uma célula se divide para dar origem a outra igual.

Mas haverá espaço para dois grupos expressivos de neurociência em Natal? Ou a seleção institucional cuidará de extinguir um deles? Nos dois núcleos, é inquebrantável a convicção de que, se um dos dois vier a sucumbir, será o outro.

Quanto a Nicolelis, ele deixou claro que os pesquisadores dissidentes não deixarão saudade: “Não tenho interesse em trabalhar com esse pessoal nunca mais. O surpreendente nessa história é que se tentou alavancar um instituto na UFRNcom tudo o que tínhamos feito durante oito anos. Isso é muito deselegante.”



A abertura da Copa do Mundo está marcada para 12 de junho de 2014, daqui a pouco mais de 900 dias. Miguel Nicolelis acredita que esse seja um prazo suficiente para multiplicar por dez a quantidade de neurônios que precisa registrar, iniciar os testes com seres humanos e conseguir que seus sinais cerebrais comandem um artefato robótico com um número de graus de liberdade três vezes maior do que os macacos são capazes de controlar em laboratório. Esses obstáculos não o assustam – contanto que venha o apoio governamental.

“Dá tempo, claro”, assegurou. “O pessoal foi para a Lua em sete anos, na década de 60. Já fiz coisa pior.” Mas a desculpa está pronta caso os planos não vinguem. “Ninguém vai ser posto na cadeia se não der certo, ou se fizermos um ano depois, ou só nas Olimpíadas”, preveniu-se. “É importante ter metas em ciência. Com a pressão positiva, as coisas acontecem.”

Entre os neurocientistas brasileiros, mesmo quem divergiu de Nicolelis acha o plano plausível, a começar pelo veterano Roberto Lent, com quem ele trocou farpas públicas há alguns anos. “É uma ideia perfeitamente exequível, em tese, só não sei se nesse prazo”, afirmou. “Em todo caso, não é uma bazófia.”

Na avaliação de Suzana Herculano-Houzel, colega de Lent na Universidade Federal do Rio de Janeiro, é só uma questão de tempo. “Nicolelis sabe muito bem o que precisa fazer para chegar lá, e domina a base por trás disso”, disse. “O único obstáculo entre ele e o menino são as agências reguladoras e comitês de ética.”

Mas a proposta suscita também críticas entre neurocientistas. Uma preocupação recorrente é com a vida útil dos eletrodos implantados. A inserção desse corpo estranho no cérebro leva a uma reação inflamatória, na qual células se depositam ao longo do eletrodo e terminam por impedir que ele capte a atividade elétrica. O prazo de validade restrito dos eletrodos poderia ser um obstáculo ao uso da técnica em pacientes humanos.

Nicolelis acredita que outro estudo, publicado em novembro na revista PLoS ONE,representa o sinal verde para experimentos com humanos. Assinado por ele e outros nove pesquisadores, o estudo analisou o impacto do implante de eletrodos no cérebro de ratos. O grupo queria entender como o tecido cerebral reagia à permanência desse corpo estranho até seis meses depois do implante. A conclusão foi animadora: só foi constatada a morte de neurônios nas imediações dos eletrodos, e a reação inflamatória se limitou ao tecido em torno do local no qual foi feito o implante.

“O tecido do cérebro dos ratos é muito parecido com o dos humanos”, comparou ele. “As reações alérgicas e imunológicas são idênticas.” Já a avaliação de Sidarta Ribeiro, que é coautor do estudo e acompanhou o trabalho experimental feito em Natal, é mais cautelosa: “O estudo mostrou que, se por um lado a reação inflamatória foi restrita e localizada, por outro lado houve perda acentuada do sinal neuronal após vinte semanas de implante.”

Na avaliação de Sérgio Neuenschwander, é cedo para testar em seres humanos um método que ele considera não estar aprimorado. “Há problemas fundamentais não resolvidos. Essa é uma técnica que não é madura e, de longe, não atende ao que se diz dela. Esse é um projeto político pessoal, e não científico e tecnológico.”



Miguel Nicolelis é um cientista de inúmeras realizações, e um número ainda maior de projetos mirabolantes. Durante uma visita às obras do Campus do Cérebro, ele esboçou planos ambiciosos de cuja realização parece não duvidar. Falou do novo livro que pretende escrever, de título provisório Made in Macaíba, do plano de incremento do supercomputador do Instituto (ainda encaixotado), que faria dele o mais veloz do mundo, do parque neurotecnológico que pretende instalar em Natal e da universidade que quer criar (“Cansei do modelo universitário brasileiro, vou ter a minha própria”).

De todas as suas ideias extravagantes, porém, o projeto para 2014 talvez seja o que melhor sintetize o seu espírito “miguelomaníaco”, a palavra com que seus detratores qualificam seus arroubos. Até porque aquilo que Nicolelis se propõe a fazer na abertura da Copa não é um experimento científico, mas a demonstração pública de uma técnica que terá de ser testada em laboratório. A conotação ufanista da empreitada é inescapável: a ciência verde-amarela fará o menino levantar-se e andar, para deslumbre das 68 mil pessoas nas arquibancadas e das centenas de milhões de espectadores ao redor do planeta.

A demonstração pública é “um pouco perturbadora”, na avaliação do neurocientista Martín Cammarota, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. “Tomara que ele consiga fazer caminhar todos os paraplégicos do mundo, mas não façamos disso um show midiático”, disse ele. “Eu acharia de mau gosto. Espero que as autoridades brasileiras tenham a clarividência de não permitir tamanho desatino.”



Para que uma criança seja capaz de comandar o exoesqueleto com o pensamento no dia do jogo, o procedimento terá de ser ensaiado à exaustão em laboratório inúmeras vezes. “Precisamos de um ano de estudos clínicos para estarmos confiantes de que é possível fazer uma demonstração”, estimou Nicolelis.

Ele precisa encontrar o que chama de “um parceiro clínico” – um hospital de grande porte, possivelmente em São Paulo, onde serão feitos os procedimentos cirúrgicos para implante dos eletrodos no cérebro da criança e as atividades de reabilitação, fisioterapia e terapia ocupacional. É também lá que serão realizados os testes com a veste robótica.

Para que o projeto vá adiante, o protocolo de pesquisa precisa ser aprovado por um comitê de ética local e pela maior autoridade do país na área, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, ou Conep. Ali, o projeto será analisado por uma plenária composta por cientistas de diversas áreas e representantes da sociedade civil. A tramitação do projeto pode levar até quatro meses, de acordo com a coordenadora da Comissão, a cirurgiã-dentista Gysélle Tannous.

Ela explicou os critérios que a Conep leva em conta: “Analisamos a segurança que o projeto oferece aos sujeitos de pesquisa, como eles são monitorados e informados sobre os potenciais riscos, como serão controlados e se a pesquisa garante condições mínimas de acompanhamento posterior dos participantes.” Tannous frisou que é imprescindível que a pesquisa conte com o consentimento dos participantes, respeite sua autonomia e preserve sua identidade, se eles assim desejarem.

Ela ressaltou, no entanto, que a Comissão não costuma analisar projetos  que envolvem demonstrações públicas como a proposta por Nicolelis. Nesse caso a exposição da criança pode ser problemática. “O direito à preservação do sigilo sobre a identidade tem que ser dado a priori ao sujeito da pesquisa”, disse Tannous. “Se ele tiver que se expor para participar do projeto, provavelmente haverá dificuldades éticas na sua aprovação.”

A aprovação de seu protocolo experimental não preocupa Nicolelis. Ele diz ter levado em conta os possíveis questionamentos éticos ao seu projeto: “Só iremos adiante se todos estiverem de acordo e se sentirmos que essa pessoa vai se beneficiar. Evidentemente ela tem que ser informada e tem que estar de acordo. Se chegarmos à conclusão de que é prematuro, não faremos.”



O grupo de Nicolelis em Duke não é o único que trabalha com interfaces cérebro-máquina baseadas em eletrodos implantados no cérebro. Em 2008, o time do americano Andrew Schwartz, da Universidade de Pittsburgh, ganhou manchetes ao conseguir que um macaco, usando o pensamento, comandasse um braço robótico com várias articulações de forma que este levasse um pedaço de marshmallow até a boca. O New York Times qualificou o feito de “a mais impressionante demonstração da interface cérebro–máquina até então”.

Atualmente, Schwartz também trabalha num projeto que pretende testar a interface em humanos que perderam a mobilidade. Seus objetivos, porém, são mais modestos: fazer com que pacientes movam um braço mecânico.

Questionado sobre as contribuições do colega de Pittsburgh, Nicolelis disse: “Andy Schwartz é um cara muito inteligente e muito bom, mas trabalhava com um só eletrodo. Ele adaptou sua linha de pesquisa à ideia de Chapin e à minha; não fez nenhuma contribuição original.”

Uma interface cérebro–máquina do tipo proposto por Nicolelis já foi testada em humanos pelo grupo de John Donoghue, pesquisador da Universidade Brown e da empresa Cyberkinetics. Ele implantou uma matriz com 100 eletrodos no cérebro de Matthew Nagle, ex-jogador de futebol americano que ficou tetraplégico após levar uma facada. Treinado para usar a interface cérebro–máquina após se recuperar da cirurgia, Nagle mostrou-se capaz de comandar um cursor na tela de um computador com a atividade cerebral.

Nicolelis não pareceu ter em alta consideração os avanços do grupo de Brown. “John Donoghue é um cara voltado para a iniciativa privada e fez isso para ganhar dinheiro”, desdenhou. “Cientificamente, não tem contribuição nenhuma.”

Há ainda os que trabalham com uma técnica não invasiva: a eletroencefalografia, o primeiro método para registrar a atividade elétrica do cérebro. Desenvolvido na década de 20, ele se vale de eletrodos de superfície colados no couro cabeludo. O sinal registrado vem de muitos milhares de neurônios e é filtrado pelo crânio, o que limita sua resolução.

Com a técnica, o paciente veste um capacete que capta sua atividade cerebral, em vez de fazer uma cirurgia. A técnica já foi usada para que pacientes sem mobilidade nos membros pudessem escrever num computador – ainda que no ritmo de cinco a dez caracteres por minuto – ou controlar uma cadeira de rodas virtual.



Quando o grupo do brasileiro conseguiu que um macaco na Carolina do Norte comandasse com os sinais cerebrais um robô humanoide no Japão, Nicolelis escolheu um caminho paralelo ao que os cientistas preferem para comunicar suas descobertas. Em vez de escrever um artigo científico e submetê-lo a uma revista técnica, que só o publicaria após a análise e aprovação de outros especialistas, o grupo anunciou o feito pela imprensa. Nicolelis fez um trato com o New York Times, que mandou um repórter a Durham e outro a Kyoto e relatou a proeza com exclusividade.

Embora o sistema tradicional de revisão por pares venha sofrendo um número crescente de questionamentos nos últimos anos, as tentativas de fazer ciência à margem desse processo não costumam ser vistas com bons olhos pelos cientistas. Em Muito Além do Nosso Eu, Nicolelis assim justificou a decisão: “Os benefícios de ter os dados divulgados amplamente excediam em muito qualquer risco de o experimento não dar certo ou de algum de nossos pares do mundo acadêmico se sentir melindrado por nosso pequeno desvio do processo tradicional de validação científica.”

A revisão por pares é um processo lento. O intervalo entre o envio e a publicação de um artigo pode chegar a muitos meses. Num projeto que corre contra o tempo na busca de seus objetivos, a demora é um obstáculo. Perguntei-lhe se pretendia usar o caminho da revisão por pares em seus planos para a Copa de 2014, e Nicolelis respondeu: “Vou fazer mezzo a mezzo. Evidentemente, como cientistas profissionais, temos que comunicar os resultados aos nossos pares. Mas acho que podemos combinar ambas as modalidades sem problema algum.”

Na hipótese de concretizar seus planos, Nicolelis diz que acompanhará para o resto da vida o menino que chutar a bola na abertura da Copa. Mas dificilmente o estágio de desenvolvimento da tecnologia permitirá que ele usufrua no dia a dia da mobilidade que o cientista quer mostrar ao mundo. Afinal, o que se terá em 2014, se tudo der certo, será uma veste robótica experimental, algo distante de um artefato produzido em escala e que a criança possa levar para casa e vestir de novo na manhã seguinte.

Retomando a metáfora cara a Nicolelis, o engenheiro eletricista Luiz Antonio Baccalá, colega de escola, colaborador e conselheiro do neurocientista, comparou: “Uma coisa é você levar um homem à Lua e ele voltar, outra é um ônibus que vá toda semana até lá. Ainda estamos um pouco longe de algo mais sistemático nessa área.”

Se tudo acontecer conforme Nicolelis prevê, o pontapé inicial da Copa de 2014 será o ápice de sua carreira científica. Nesse caso, ele terá o dissabor de ter como palco da consagração o Itaquerão, o estádio do Corinthians, arquirrival do seu time. Mas ele planejou uma brincadeira para contornar o mal-estar: “O menino vai chutar a bola, pôr a mão no bolso, tirar um boné do Palmeiras e colocar na cabeça.”

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