quarta-feira, 3 de julho de 2013

Os castelos de Kafka



Por Alan Santiago
Do Jornal de Hoje

Certa vez, Max Brod perguntou ao amigo Franz Kafka: “Existiria então esperança fora desse mundo de aparências que conhecemos?”. Um dos maiores escritores do século XX, nascido em Praga no dia 3 de julho de 1883, há exatos 130 anos, riu e respondeu em seguida: “Há esperança suficiente, esperança infinita – mas não para nós”.

Reproduzido em ensaio do filósofo alemão Walter Benjamin, o diálogo é lapidar pela desesperança a que, lançado o próprio autor, Kafka acabou atribuindo a seus personagens.

As figuras que aparecem nos romances – nos inacabados O Castelo (1926) e O Processo (1925) – e contos – em, por exemplo, “O Veredito” (1912) e “Na Colônia Penal” (1919) – estão sempre diante de uma sociedade monstruosa, fragmentada e por isso mesmo inconciliável.

Cresce numa família de classe média, numa República Tcheca ainda território do Império Austro-húngaro. De origem pobre, o pai, Hermann Kafka, fez de tudo para abandonar o passado de penúria. Conseguiu. Após um tempo como representante comercial, se torna dono de uma próspera loja de miudezas e roupas.

A mãe, Julie Löwy, que dedicava inúmeras horas do dia aos negócios da família, deu à luz seis filhos – do qual Kafka foi o mais velho. Com a morte de dois irmãos, ele tornava-se o único homem entre os filhos.

Os Kafka acabaram duplamente afetados pelo que eram: desacreditados por falar alemão em meio à multidão tcheca; julgados dentro da comunidade por sua origem judia.

Essa encruzilhada de identidades e linguagens levou os filósofos Gilles Deleuze e Felix Guattari, em Kafka – por uma literatura menor (1975), a afirmar que os judeus de Praga, ao mesmo tempo uma parte da minoria e excluídos dela, eram tratados como “ciganos que roubam uma criança alemã do berço”.

A desterritorialização de Kafka com o mundo iria também se aprofundar em relação à própria família. Principalmente, porque vão se agravando ao longo dos anos os conflitos com o pai.

Um deles acontece quando, em 1911, engajado numa fábrica de amianto com o cunhado, Kafka vê seu tempo livre, que dedicava à literatura, corroído pelo acúmulo de expedientes entre a fábrica e a companhia de seguros, onde também trabalhava.

Conflitos

Em 1918, o pai tripudia da vontade do filho, já aos 36 anos, de casar com Julie, que conheceu pouco antes. Kafka já havia passado por outras tentativas infrutíferas de casamento; duas vezes inclusive com a secretária Felice Bauer. 

“Eu simplesmente não consigo entendê-lo, você é um homem feito, você vive na cidade e ainda assim não consegue fazer melhor do que casar com a primeira garota que a aparece”, desdenhou o pai.

No ano seguinte, Kafka dedica a Hermann Um Médico Rural, coleção de contos que inclui a história do doutor tentando sem sucesso visitar uma criança doente numa noite fria. Quando veio lhe mostrar o livro, o pai afirmou: “Coloque em cima do criado-mudo”.

As palavras derrotaram o escritor. Naquele mesmo ano, escreveria Carta ao Pai (1919), uma missiva totalmente amargurada que tentava acertar as contas com o patriarca, mas que nunca chegou a enviar ao ser dissuadido pela mãe e a irmã.

Para Benjamin, há “muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos para Kafka. Essa semelhança não os honra. Ela é feita de estupidez, degradação e imundície”. Em muitos escritos, Kafka qualificava o pai de tirano e autoritário.

Em O Veredito, a figura paterna por sua força acaba condenando o personagem à morte. Em A Metamorfose (1915), onde o personagem principal acorda transformado num inseto, o conflito se estabelece também com o pai, que tenta a todo custo tirar a vida do rebento, agora um bicho. A propósito, é dessa novela um dos inícios mais célebres da literatura universal: “Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto”.

Essa estrutura lógica vai se repetir, por exemplo, em O Processo, onde o bancário Joseph K. tenta entender o motivo de uma pendenga judicial que o levará à pena capital, ou no conto “Na Colônia Penal”, em que o condenado tem a sentença grafada no corpo sem saber porque está sofrendo aquelas torturas.

A figura paterna massacrante e terrível estaria sempre à espreita na obra de Kafka, seja na reprodução da relação mesma entre pai e filho, seja no símbolo da máquina estatal irracional e opressora.

“Kafka apresenta possibilidades de comportamento humano e estruturas possíveis de vida num mundo que parece misterioso e absurdo porque a estrutura desse mundo é, por sua vez, hostil realização de uma vida estruturada”, destaca Otto Maria Carpeaux no quarto volume de seu monumental História da Literatura Ocidental.

Em outras palavras, o homem kafkiano é um atestado dos problemas impostos pela modernidade que tenta racionalizar o mundo, reduzi-lo e enquadrá-lo naquilo que pode compreender ou mensurar. A modernidade desencantou o mundo, como diz o sociólogo Max Weber, e a literatura de Kafka está, de alguma forma, se debatendo diante disso.

Testamento traído

Kafka morreu em 1924 no sanatório Kerling, perto de Viena, onde se tratava de uma tuberculose, diagnosticada na década anterior. Depois disso, foi encontrado um bilhete em sua gaveta, em Praga.

O texto, endereçado a Max Brod, fazia um último pedido: “Tudo que deixei para trás... por meio de diários, manuscritos, cartas (minhas próprias e de outros), rascunhos e tudo mais, (que) sejam queimados não lidos”.

Brod desobedeceu, evidentemente. Ao contrário, fez um esforço para que a grandiosidade literária de Kafka fosse reconhecida. Escritor de mais de 80 livros, ele acabou eclipsado pelo talento do amigo.

Em 1925, ele já lançaria O Processo. Nos anos seguintes, O Castelo e Amerika (cujo título inicial era O Desaparecido), acompanhado dos outros textos, fragmentos, cartas e diários.

Em agosto de 1924, Kafka resumia sua desesperança, aquela mesma que levou à literatura, no dia 6 daquele mês: “O impulso de representar minha vida onírica deslocou todo o resto para um plano secundário, que definhou assustadoramente e não para de definhar. Nada mais poderá me satisfazer, nunca”.


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