quinta-feira, 11 de julho de 2013

Confúcio sabia das coisas



Por Guilherme Bryan e Simone Alauk
Da Revista  da Cultura

A religião xintoísta nasceu junto com a história do Japão. As escrituras sagradas, conhecidas como Kojiki, apresentam relatos diversos sobre o surgimento do país. Seus membros explicam que a divindade pode ter forma humana, animal, ou de qualquer elemento composto da natureza, e que a preservação do conhecimento se mantém como uma maneira de respeitar os antepassados. “Toda a sabedoria que seus descendentes possuem vem do Kojiki, que ensina a respeitar tudo e todos”, comenta o ministro xintoísta Tenso Osaka. Essa religião mistura crenças de diversos outros povos orientais, tendo como maior influência o budismo, cujos preceitos reforçam a necessidade de vivenciar o presente, em vez de olhar para o passado ou para o futuro apenas. No entanto, de acordo com ensinamentos atribuídos a Siddhartha Gautama, o Buda, valer-se da memória de modo produtivo e criativo seria uma tática extremamente importante para viver de modo mais saudável.

“O principal objetivo do budismo é fazer com que a pessoa, por meio da prática da meditação, da ética e do desenvolvimento da sabedoria, vá, pouco a pouco, entrando em contato com as atividades mentais dela, uma das quais é a memória. Devido a uma série de padrões carregados de elementos não saudáveis, como a cobiça, o ódio e a ignorância, o ser humano tende a repetir certos hábitos mentais e corporais, além de criar ações que trarão ainda mais sofrimentos. Então, todo o treinamento ensinado por Buda é no sentido de ganhar cada vez mais concentração e plena atenção para compreender as tendências mentais que surgem, abandonando as que não são saudáveis e fortalecendo as que são”, explica Arthur Shaker, doutor em Antropologia pela Unicamp e fundador do centro de meditação budista Theravada, Casa de Dharma, em São Paulo. “Uma tendência comum à nossa mente é a dispersão, a distração. Está nesse caso fugir do momento presente e se distrair com o passado ou o futuro. Desse modo, o passado pode se tornar presente na mente e desencadear uma série de estados emocionais, como lembrar um trauma e reviver um sentimento doloroso, ou deixar de poder experimentar o que realmente acontece no presente”, salienta.

A própria noção de história também é encarada de modo diferente pelo budismo, com relação ao mundo ocidental. “Na visão não só do budismo, mas também do hinduísmo, o universo tem ciclos de surgimento, desenvolvimento e desaparecimento. Já houve incontáveis universos que surgiram e desapareceram, com diversas humanidades que não temos nem como acessar. Então, a memória da humanidade serve para termos um quadro mais amplo de como ela lidava, dentro de suas condições, com o principal assunto do budismo, que é a questão do sofrimento humano. Desse modo, usar o passado pode ser interessante para rever, compreender e superar o sofrimento, mas também pode virar uma prisão, em que não se vive o momento presente”, acrescenta Shaker.

A questão da vivificação do presente também é destacada por Jisho Handa, monge do Templo Busshinji, em São Paulo. “Do ponto de vista do budismo, principalmente zen, tudo o que se refere a passado ou futuro é ilusão. O presente é que o há de mais importante a ser vivenciado. Entretanto, a memória é algo que existe no nosso mundo, mesmo que ilusório, chamado samsara, ou seja, o mundo fenomênico. A questão então é saber como lidar com ela. Mesmo considerando o passado uma ilusão, é preciso se relacionar com ele como um filme passando na nossa mente, e não se apegar, somente assistir”, garante, destacando que existem cerimônias devotadas aos ancestrais para se aprender a trabalhar melhor as lembranças.

O hinduísmo, em sua primeira fase, cultuava deuses tribais como Dyaus (“deus do céu ou deus supremo”). Após algumas adaptações vindas do budismo, surgiu o hinduísmo bramânico, que cultuava a trindade composta por Brahma (“divindade da alma universal”), Vishnu (“divindade preservadora”) e Shiva (“divindade destruidora”). “Cada tradição tem sua forma única de lidar com a memória. Algumas levam isso muito à risca, mas a visão hinduísta é bem diferente da ocidental. Memória não é necessariamente ter um museu e guardar relíquias, mas, sim, registrar ou ter registrado na mente e em livros o mais importante, o significado”, explica Erick Schulz, vice-presidente da Associação Brasileira de Ayurveda.

Ou seja, as recordações funcionam como um livro de capítulos e significados, diferindo, assim, do sentido de memória ocidental. “Antes dos livros, tudo era memorizado e passado de pessoa a pessoa; durante milhares de anos foi assim e continua sendo. Por exemplo, as crianças vão aos Ashrans (centro de estudos) ainda muito jovens e ficam lá estudando textos e tendo aulas orais durante um período que vai de dez a 30 anos. Alguns alunos chegam a decorar até 30 mil versos”, comenta Schulz.

Como usar e registrar as memórias também foram preocupações do pensador e filósofo chinês Confúcio, que viveu durante o Período das Primaveras e Outonos, e desenvolveu o denominado confucionismo, que sublinhava questões como a moral, a justiça e a sinceridade. “Confúcio nunca escreveu nada. Então, o que temos são tradições confucianas, que absorvem aquilo que foi ouvido pelos discípulos quando em aula com ele. Aí já expõe um elemento importante daquilo que ele pretende com os ensinamentos. Ele acredita que é fundamental a preservação do que se ouve e do que se fala por meio da memória, mesmo com os problemas de recepção, esquecimento e imprecisão”, analisa Jézio Gutierre, destacando a máxima de que aqueles que não aprenderam com o passado estão condenados a repeti-lo no presente.




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