sexta-feira, 5 de julho de 2013

Cantor albino Salif Keita luta contra o preconceito



Por Rafael Andrey
Da Revista Serafina

Um homem negro com a pele branca, um homem branco com o sangue negro. Esse é Salif Keita, 63, um dos músicos africanos mais respeitados da atualidade. Salif tem albinismo, anomalia genética caracterizada pela falta de pigmentação na pele e que afeta, aproximadamente, uma em cada 13.000 pessoas -e é mais comum entre povos africanos.

Albinos costumam ter a visão comprometida por astigmatismo e fotofobia. A ausência total ou parcial de pigmentação da pele também os torna mais suscetíveis a queimaduras provocadas pelo sol e ao câncer de pele.

Além disso, sofrem com preconceito, agressões verbais e até crendices. Em alguns países da África, como a Tanzânia e o Burundi, acredita-se que partes do corpo de albinos possuem propriedades mágicas e atraem riqueza se usadas em certas poções produzidas por curandeiros.

Entusiastas mais exaltados garantem que a bruxaria é ainda mais poderosa caso a vítima grite durante a amputação. Por isso, muitas vezes, as mutilações acontecem com a pessoa ainda viva. A crença alimenta um lucrativo mercado negro de braços, pernas e mãos brancas.

Ser albino, para Salif Keita, obviamente, não foi uma escolha. Já a música, diz ele, foi a única opção. É descendente direto de Sundiata Keita (1217-1255), o fundador do Império Mali, que se espalhou entre os séculos 13 e 17 por áreas que hoje englobam nove países africanos.

A cidade de Timbuktu, símbolo maior do império, foi durante muito tempo um dos principais polos culturais fora da Europa. Salif Keita tinha tudo para levar uma vida fácil.

Mas nem a origem nobre foi capaz de neutralizar o preconceito contra o albinismo. Salif tinha dificuldade em conseguir emprego. "Cheguei a falar para minha mãe que tinha apenas três saídas: ou virava ladrão, ou me suicidava, ou virava músico", disse Salif. Ganhou a última.

No sistema de castas malinês, a música é uma função desempenhada por extratos mais baixos da sociedade. "De certo modo eu traí minha família, mas foi uma bela traição", conta ele, hoje conhecido como "a voz dourada da África".

Com sua banda, Les Ambassadeurs, Salif trocou o Mali pela Costa do Marfim durante a década de 1970. O sucesso internacional veio pouco tempo depois, no começo dos anos 1980, quando o artista se mudou para Paris em busca de maior audiência para seus trabalhos.

De lá para cá, já tocou com nomes consagrados, como o saxofonista Wayne Shorter, o guitarrista Carlos Santana e, mais recentemente, em seu último disco, a contrabaixista e cantora Esperanza Spalding.

Homenagem desconhecida

"Quando ouvi Salif Keita, dancei", canta Chico César na música "À Primeira Vista", de 1996, um dos maiores hits da carreira do cantor brasileiro. O africano não fazia a menor ideia da homenagem, embora já tenha tocado com Chico e seja admirador de seu trabalho.

O último disco de Salif, "Talé", lançado no final de 2012, foi produzido pelo francês Phillipe Cohen Solal, mais conhecido por seu trabalho à frente do grupo de tango eletrônico Gotan Project.

Quem clicou Salif Keita para Serafina foi o fotógrafo mineiro Gustavo Lacerda, que desenvolve um projeto em que registra imagens de albinos. "Tinha interesse em trabalhar com pessoas que estivessem à margem da sociedade", conta. "Em geral, são pessoas tímidas, que se mostram apreensivas por estarem ali, sendo fotografadas."

Salif não é, por assim dizer, exatamente tímido. Em passagem por São Paulo, no mês passado, quando fez dois shows no Sesc Pompeia, o cantor puxou um coro de "Parabéns" pelo seu próprio aniversário (que não era naquele dia) e ainda agradeceu aos fãs brasileiros em espanhol: "Muchas gracias".

Fora do palco, entretanto, é outra história. Aparentando mais do que os seus 63 anos, Salif fala muito mansamente, sorri pouco e é extremamente educado. Mas está cansado da vida de artista.

"Hoje em dia, venda de discos não dá dinheiro, existe muita pirataria", reclama. "Só consigo lucrar com shows e turnês." Aconselharia a música como carreira para suas filhas?

"De jeito nenhum. Não quero que elas morram de fome", dramatiza o cantor, que tem duas filhas albinas. Uma delas é a atleta paraolímpica Nantenin Keita, 28, medalha de prata e bronze nos Jogos de Pequim (2008) e bronze em Londres (2012) -todas conquistadas na categoria de corrida T13, exclusiva para cegos.

Atualmente, o músico dedica parte de seu tempo e de seu dinheiro à manutenção da Fundação Global Salif Keita. Fundada em 2005 e com sede nos Estados Unidos, a instituição se dedica ao tratamento e inclusão social de pessoas com albinismo.

Dos antepassados, Salif herdou duas coisas, a herança genética que lhe causou o albinismo e a "nobreza", que ele mesmo questiona. "O que é nobreza? Fazer guerra, se comunicar pela violência? Você vira nobre por seus gestos. Quem vai dizer o contrário?", indaga o homem negro de pele branca e sangue azul.


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