terça-feira, 18 de junho de 2013

Levante contra as mazelas de um país vagabundo


Por Edival Lourenço
Da Revista Bula


Esta crônica é uma tentativa, com o risco dos enganos de praxe, de listar algumas razões pelas quais estourou esse movimento ruidoso, supostamente contra o reajuste das passagens de ônibus urbanos. Não houve identificação pela imprensa, nem pelos órgãos de inteligência do governo de que uma revolta latente estava prestes as explodir. Se alguém identificou, não foi divulgado, nem foram tomadas as providências necessárias para minimizar os danos materiais causados pelo movimento.

O movimento eclodiu primeiramente em Goiânia, a partir do momento em que autoridades do setor divulgaram os novos preços da passagem. De Goiânia o movimento se alastrou para quase todas as capitais, como se houvesse um rastilho de pólvora invisível nos meandros da sociedade.

Não dá para acreditar que um acréscimo de 20 centavinhos em média seria motivo para tanto barulho e quebra-quebra. A partir dessa incoerência é que o movimento precisa ser percebido. O que poderia ter fermentado no espírito dessa juventude aparentemente despolitizada, consumista, alienada, que vive com os olhos grudados nos aparelhos eletrônicos e as orelhas entupidas de música brega?

Poderíamos partir da constatação de que o país acontece na confluência de grandes equívocos. São equívocos tanto históricos quanto conjunturais. Isso, mesmo que não verbalizado, não trazido ao nível da consciência, pode gerar nas pessoas, em determinadas condições de temperatura e pressão, um sentimento de revolta, ainda que difuso, que pode ser deflagrado por algo aparentemente irrisório, como os 20 centavinhos de acréscimo nas passagens de ônibus.

Não é de hoje que é se percebe que, ao longo da história, o Brasil se especializou em perder oportunidades, até se transformar num “case” mundial de capitalismo retardatário. O Brasil foi o último país do ocidente a proceder a abolição da escravatura, com consequências sociais gravíssimas, que se alastrou até nossos dias.

O Brasil até hoje não aderiu à logística do trem. Na década de 1950 do século passado, já com atraso, estava institucionalmente encaminhado para a implantação das vias férreas, mas houve uma guinada repentina, bancada por subornos de alto coturno, e o caminhão tomou conta do país, com prejuízos enormes que se estendem por gerações. Desde priscas eras, optamos por ser fornecedores de matéria prima a outros países e o nosso processo industrial sempre foi negligenciado. Vedemos por exemplo areia de sílica a preço de areia de reboco e compramos chips a preço de ouro. Assim é com a soja, com a carne, com o ferro e outros minerais. Sem contar os contrabandos de minerais preciosos.

Na segunda metade do século passado, o governo permitiu o maior êxodo rural da história, sem que houvesse o mínimo de preparo nas cidades para receber essa gente pobre e bisonha, com a formação de uma massa de excluídos sociais que até hoje, já na terceira ou quarta geração, ainda não cicatrizou a ferida. O ensino público fundamental, além da péssima qualidade, ainda se esforça para se universalizar. Aliás, nosso ensino é um caso que intriga os especialistas que vivem às voltas para entender como poderia ter chegado a esse grau de ineficiência tão grande. No âmbito da História nossa agenda ainda está encalacrada lá pelos finais do século 18.

Afora os fatos históricos que nos envergonham e nos deprimem, nossa conjuntura é cruel. Bem recente tivemos uma ditadura brutal, seguida de uma democracia de conchavos. Aliás, democracia aqui não tem sido instrumento de promoção de segurança jurídica, de desenvolvimento, de proteção ao cidadão e coisas tais que a democracia, de ordinário, proporciona. A nossa democracia tem servido mais é para justificar a insegurança pública, a falta de remédio nos postos de saúde, o baixo crescimento econômico e a falta de tomada de decisão a hora e a tempo por parte dos órgãos governamentais. Muito pouco se pode fazer, porque nossa democracia é lenta e embaraçada, com órgãos de controle, que controlam outro controle e mais controle numa ciranda quase infinita, mas que não raro se unem para lesar o contribuinte, com ares de legalidade.

Há uma sensação de insegurança e impunidade generalizada. É baixíssimo o índice de apuração e punição aos criminosos, a tal ponto que o crime por aqui é algo que compensa. O cidadão é assaltado pelos bandidos de colarinho branco, pelos traficantes e puxadores de carros, pelos pivetes craqueiros, pelas milícias e pelo próprio Estado que nos obriga a rachar ao meio com ele os nossos parcos ganhos, com retribuições sociais pífias. O cidadão comum é esfolado vivo enquanto há benesses excessivas para certos privilegiados, esses que ajudam a montar a base do governo, dito de coalizão, com gente fazendo fortunas globais da noite para o dia com recursos públicos. Igrejas economicamente vorazes que são imunes de impostos e ainda recebem transferências de verbas públicas, ONGs que recebem dinheiro do erário, muitas vezes a título de picaretagem. (Por mais contraditório que seja, há uma ONG, a Passe-livre, que possivelmente receba dinheiro público, que está por trás desse movimento em São Paulo.) A disseminação da droga, especialmente o craque, que está fuzilando as famílias, e o governo nada fez até a gora que pudesse reverter a tendência dessa dizimação feroz de nossa juventude. A saúde pública, que por mais lugar comum que seja, está morrendo dia a dia. Nossas cidades e estradas já estão que não cabem mais nada. Entretanto, o Governo, em vez que empreender um grande projeto nacional de transporte público, faz campanha para aumentar a venda dos carros. São políticos do imediato, que pensam só na próxima eleição, mas nunca na próxima geração. Governantes que prometem, por exemplo, fazer uma obra com gasto X num tempo Y, e gastam 5 X num tempo 7 Y. Exemplos: Ferrovia Norte-Sul, aeroportos, portos, estádios.

Dizem que nosso ordenamento jurídico é de altíssima qualidade, dos mais avançados do mundo, como se isso fosse uma vantagem. Imagine as leis da Suécia para regular o Gabão. Qualidade não existe na coisa por si só. Qualidade é adequação. Não precisamos de leis avançadas, como a nossa constituição, que joga todas as possibilidades para um dia no futuro, tudo na conta da reserva do possível. Precisamos de leis adequadas, que punam os infratores, que ocupem os jovens com coisas úteis (para afastá-los do crime), que promovam o crescimento, que impeçam o desperdiço. Democracia não pode ser arbitrária, mas requer o mínimo de eficiência, o que a nossa definitivamente não tem.

Por aqui o poder constituído recende a podridão. Há podridão no legislativo, no judiciário, no executivo, na imprensa, na igreja, nos órgãos de fiscalização e controle, associações de classe. Como se o país fosse fatiado entre grupos mafiosos. Grandes núcleos de poder coordenados por “capôs”, por Dons Corleones. É como se a gente formasse um país-lixão. Esse movimento é como se fosse o chorume que escorre das bases desse processo de decomposição.

Essa revolta obviamente não é apenas contra os 20 centavos dos passes de ônibus. Mas contra esse estado de coisas. O grau de aprendizagem escolar promovida pelo governo talvez não tenha permitido que a juventude verbalize a complexidade do estado de coisas em que está assentada sua revolta. Mas não pode impedir que em algum momento a revolta exploda, como algo difuso, contra um país vagabundo que não sabe ou que não se preocupa em corrigir suas mazelas históricas e conjunturais.



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