terça-feira, 28 de maio de 2013

Questões de vida e morte - Tudo é sempre igual

Rembrandt Harmenszoon van Rijn: Autorretrato (detalhe)


Por Karl Ove Knausgard
Da Revista Piauí



Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para. Cedo ou tarde, mais dia, menos dia, cessa aquele movimento repetitivo e involuntário, e o sangue começa a escorrer para o ponto mais inferior do corpo, onde se acumula numa pequena poça, visível do exterior como uma área escura e flácida numa pele cada vez mais pálida, tudo isso enquanto a temperatura cai, as juntas enrijecem e as entranhas se esvaem. Essas transformações das primeiras horas se dão lentamente e com tal constância que há um quê de ritualístico nelas, como se a vida capitulasse diante de regras determinadas, um tipo de acordo de cavalheiros que os representantes da morte respeitam enquanto aguardam a vida se retirar de cena para então invadirem o novo território. Por outro lado, é um processo inexorável.

Bactérias, um exército delas, começam a se alastrar pelo interior do corpo sem que nada possa detê-las. Houvessem tentado apenas algumas horas antes, e teriam enfrentado uma resistência cerrada, mas agora tudo em volta está calmo, e elas avançam pelas profundezas escuras e úmidas. Chegam aos canais de Havers, às glândulas de Lieberkühn, às ilhotas de Langerhans. Chegam à cápsula de Bowman nos rins, à coluna de Clarke na medula, à substância cinzenta no mesencéfalo. E chegam ao coração. Ele continua intacto, mas se recusa a pulsar, atividade para a qual toda a sua estrutura foi construída. É um cenário desolador e estranho, como uma fábrica em que os trabalhadores tivessem sido obrigados a evacuar às pressas, os veículos parados a projetar a luz amarela dos faróis na escuridão da floresta, os galpões abandonados, os vagões carregados sobre os trilhos, um atrás do outro, estacionados na encosta da montanha.

No exato instante em que a vida abandona o corpo, ele passa para os domínios da morte. As lâmpadas, as malas, os tapetes, as maçanetas, as janelas. A terra, os campos, os rios, as montanhas, as nuvens, o céu. Nada disso nos é estranho. Estamos permanentemente rodeados por objetos e fenômenos do mundo dos mortos. Ainda assim, poucas coisas nos causam mais desconforto do que ver alguém preso a essa condição, ao menos se julgarmos pelos esforços que empreendemos para manter os cadáveres longe dos nossos olhos. Nos grandes hospitais eles não são apenas escondidos em ambientes isolados, os corredores que levam até eles são ermos, com elevadores e acessos privativos, e, mesmo que acidentalmente topemos com eles, serão apenas corpos empurrados sobre macas, sempre cobertos por lençóis. Quando deixam o hospital, fazem-no por uma saída própria e são transportados em carros com vidros escurecidos, nas igrejas são velados em salões sem janelas, durante o funeral estão em caixões lacrados, até afundarem numa cova ou serem consumidos no calor de um forno.

Difícil enxergar um objetivo prático em tudo isso. Os cadáveres poderiam muito bem, por exemplo, ser conduzidos descobertos pelos corredores dos hospitais e transportados em táxis comuns sem representar risco a quem quer que fosse. O homem idoso que morre numa sessão de cinema poderia, da mesma forma, permanecer no seu assento até o filme terminar, ou durante a sessão seguinte. O professor que sofre um ataque súbito e tomba no pátio da escola não tem necessariamente que ser retirado dali no mesmo instante, não faz mal nenhum que o corpo continue no chão até que o zelador tenha tempo de cuidar dele, ainda que mais para o fim da tarde, talvez mesmo à noite. Se um pássaro decidir pousar sobre ele para bicá-lo, que diferença fará? Porventura o destino que o aguarda na cova será melhor somente porque não o presenciaremos?

Contanto que o corpo não esteja bloqueando uma rua, não é preciso pressa, pois ele não vai morrer outra vez. Nesse caso, os dias de frio extremo no inverno são especialmente propícios. Mendigos que morrem congelados em bancos de praça ou debaixo de marquises, suicidas que saltam de prédios altos ou de pontes, senhoras idosas que despencam de escadarias, vítimas presas nas ferragens de veículos, o garoto embriagado que cai na água depois de uma noitada na cidade, a garotinha que vai parar debaixo do pneu de um ônibus, por que a pressa em ocultá-los? Decoro? O que seria mais decoroso que permitir ao pai e à mãe daquela garota encontrá-la uma ou duas horas mais tarde, deitada na neve ao lado do local do acidente, a cabeça esmagada tão visível quanto o restante do corpo, o cabelo empapado de sangue e o casaco imaculado? A céu aberto, sem segredos, do jeito que estava. Mas mesmo uma hora na neve é impensável.

Uma cidade que não mantenha seus mortos longe dos olhos, que os deixe jazer nas ruas e calçadas, parques e estacionamentos, não é uma cidade, e sim um inferno. Não importa que esse inferno reflita de modo mais realista e profundo nossa conduta. Sabemos que ela é assim, mas nos recusamos a encará-la. Eis o ato coletivo de repressão simbolizado no ocultamento dos nossos mortos.

O que exatamente está sendo reprimido não é, porém, tão fácil dizer. A morte em si não pode ser, pois sua presença na sociedade é grande o bastante. O número de mortes diariamente anunciado nos jornais ou mostrado nos noticiários de tevê varia conforme as circunstâncias, mas a média anual tende a ser uma constante, e, sendo divulgado por tantos meios de comunicação, é impossível ignorá-lo. Essa morte, contudo, não parece ameaçadora. Ao contrário, é algo que nos apetece, pagamos de bom grado para vê-la. Se acrescentarmos a enorme quantidade de mortes produzidas pela ficção, torna-se ainda mais difícil entender o sistema que mantém os mortos longe dos nossos olhos.

Se o fenômeno da morte não nos assusta, por que o desconforto diante de um cadáver? Isso pode significar que ou há dois tipos de morte ou há uma contradição entre nossa concepção de morte e a morte como ela é de fato, o que no fim dá na mesma: o que importa aí é que nossa concepção de morte está tão entranhada na nossa consciência que não só nos abalamos ao perceber que a realidade diverge dela, mas também procuramos ocultar isso de todas as maneiras. Não por algum tipo de vontade consciente, como ocorre com as cerimônias fúnebres, cuja forma e conteúdo hoje em dia são discutíveis, e portanto passaram da esfera do irracional para a do racional, do coletivo para o individual, não, o modo como nos desfazemos de cadáveres jamais foi objeto de discussão, apenas esse é o modo como temos agido, diante de uma necessidade cuja razão ninguém sabe explicar, mas que todos intuem: se seu pai morre no gramado durante uma forte ventania na manhã de um domingo de outono, você o carrega para dentro de casa se conseguir, caso contrário ao menos o cobre com uma manta.

Porém, esse impulso não é o único que temos em relação aos mortos. Tão evidente quanto o impulso de esconder corpos é o fato de que precisamos levá-los para o térreo o mais rápido possível. É quase inconcebível um hospital que transporte seus cadáveres para o topo do prédio, um hospital em que as câmaras refrigeradas e as salas de necropsia estejam situadas nos andares mais altos. Os mortos são mantidos o mais perto possível do térreo. E o mesmo princípio é válido para as empresas que se encarregam deles: uma seguradora pode muito bem ter seus escritórios no 8º andar, mas uma funerária jamais. Todas as funerárias funcionam o mais próximo possível do nível da rua. Por que deve ser assim é difícil dizer, poderíamos ser tentados a acreditar que isso se baseou numa antiga convenção, a qual inicialmente tinha uma razão prática, o frio do porão, por exemplo, mais adequado para conservar corpos, e que esse princípio durou até nossa era de refrigeradores e câmaras frias, não fosse a noção de que transportar cadáveres para o alto de edifícios parece algo contrário às leis da natureza, como se altura e morte fossem incompatíveis. Como se fôssemos tomados por uma espécie de instinto ctônico, algo no nosso íntimo que nos compele a guiar a morte à terra de onde viemos.

Pode, portanto, parecer que a morte se divide em dois sistemas distintos. Um é associado ao ocultamento e à discrição, à terra e à escuridão, o outro tem a ver com a abertura e a leveza, com o éter e a luz. Um pai e seu filho são mortos quando o pai tenta resgatar a criança da linha de tiro numa cidade qualquer do Oriente Médio, e a imagem dos dois abraçados enquanto os projéteis atravessam a carne, fazendo chacoalhar seus corpos por assim dizer, é capturada pelas câmeras, transmitida para um dos milhares de satélites em órbita na Terra, e ganha as telas de tevê do mundo, de onde penetra em nossa consciência como mais uma imagem da morte ou de moribundos. Essas imagens não têm peso, profundidade, tempo ou lugar, nem têm ligação alguma com os corpos dos quais provêm. Não estão em lugar nenhum e estão em todos os lugares. A maioria delas apenas passa por nós e se vai, algumas poucas, por razões insondáveis, permanecem nos recantos escuros do nosso cérebro.

Uma esquiadora amadora cai e uma artéria da sua coxa se rompe, o sangue escorre deixando uma trilha vermelha na colina branca, ela morre bem antes de a descida do corpo cessar. Um avião decola, as chamas irrompem das asas assim que ele ganha altura, o avião explode numa bola de fogo atrás dos telhados das casas emoldurados pelo azul do céu. Certa noite, um barco pesqueiro afunda no norte da Noruega, sete membros da tripulação morrem afogados, na manhã seguinte o acidente é notícia em todos os jornais, e é considerado um mistério, o tempo estava bom e nenhum chamado de emergência partiu do barco, ele simplesmente desapareceu, algumas estações de tevê deixaram isso bem claro naquela noite, sobrevoando em helicópteros o local da tragédia e exibindo imagens do mar vazio. O céu está nublado, apesar das ondas a água cinza-esverdeada está calma, como se tivesse um temperamento bem diferente da arrebentação, que espalha aqui e ali uma espuma branca pela superfície.

Sozinho eu assisto àquilo, num dia qualquer de primavera, acho, pois meu pai está cuidando do jardim. Fixo o olhar na superfície do mar, sem ouvir o que diz o repórter, e de repente emerge o contorno de um rosto. Não sei por quanto tempo ele permanece ali, segundos talvez, mas tempo suficiente para me causar um enorme impacto.

No mesmo instante em que o rosto desaparece, levanto-me e procuro alguém a quem contar o que vi. Minha mãe está no plantão noturno, meu irmão está jogando futebol, e as demais crianças da vizinhança não vão me dar ouvidos; então só resta papai, penso, e desço as escadas depressa, enfio os pés nos sapatos, os braços nas mangas do casaco, abro a porta e dou a volta na casa correndo. Estamos proibidos de correr no jardim; então, antes que ele possa me ver, diminuo a velocidade e passo a andar. Ele está nos fundos da casa, debaixo do que se tornará uma horta, batendo com uma marreta num afloramento de rocha. Embora o vão esteja a poucos metros de profundidade, a terra escura do solo que ele escavou e a densa mata de sorveiras que cresce atrás da cerca ao fundo parecem ter atraído toda a escuridão do crepúsculo para o nível do chão. Quando ele se ergue e vira para mim, seu rosto é quase uma sombra.

No entanto, isso é mais que suficiente para que eu saiba qual o seu estado de ânimo. Não se trata de algo que esteja nas suas expressões faciais, e sim na postura corporal, nem é à razão que recorro para descobri-lo, mas à intuição.

Ele deposita a marreta no chão e tira as luvas.

“E aí?”, diz.

“Acabei de ver na tevê um rosto no mar”, respondo, parado no gramado acima da cabeça dele. Pouco antes, o vizinho derrubou um pinheiro e o ar está tomado pelo forte aroma de resina que emana das achas empilhadas do outro lado do muro de pedra.

“Um mergulhador?”, pergunta papai. Ele sabe que me interesso por mergulho submarino, e não consegue imaginar outra coisa que me interessasse a ponto de eu sair de casa para lhe contar.

Balanço a cabeça.

“Não era uma pessoa. O que eu vi no mar foi uma espécie de imagem.”

“Uma espécie de imagem, é?”, diz ele, tirando do bolso da camisa um maço de cigarros.

Faço que sim com a cabeça e me viro para ir embora.

“Espere um pouco”, ele diz.

Acende um fósforo e inclina a cabeça na direção da chama, que lança uma pequena réstia de luz no crepúsculo cinzento.

“Muito bem”, diz.

Depois de uma tragada profunda, apoia um pé na rocha e olha para a floresta do outro lado da rua. Ou talvez para o céu acima das árvores.

“Foi Jesus que você viu?”, pergunta, voltando-se para mim. Não fosse o tom de voz amistoso e a longa pausa antes da pergunta, eu teria achado que ele estava zombando. Para ele é um tanto constrangedor o fato de eu ser cristão, só o que quer de mim é que eu não me isole dos outros garotos, e, entre todos os garotos da vizinhança, seu filho caçula é o único que se diz cristão.

Mas ele está falando sério.

Sinto um sopro de felicidade por ele se interessar de verdade, embora ainda me sinta um pouco ofendido pelo fato de me subestimar dessa forma.

Balanço a cabeça.

“Não foi Jesus que eu vi.”

“É quase um alívio ouvir isso”, diz papai, sorridente. Dá para ouvir o ruído de pneus de bicicleta rolando sobre o asfalto no alto da colina. O som aumenta, e tudo está tão quieto que podemos ouvir claramente o eco daquele ruído, e logo em seguida a bicicleta cruza a rua diante de nós.

Meu pai dá mais uma tragada antes de jogar o cigarro, fumado pela metade, por cima da cerca, e então tosse algumas vezes, calça as luvas e novamente empunha a marreta.

“Não pense mais nisso”, diz, olhando para mim.


Eu tinha 8 anos naquele fim de tarde, meu pai 32. Embora até hoje eu não possa afirmar que o compreendia ou sabia que tipo de pessoa ele era, o fato é que agora sou sete anos mais velho que ele na época, e isso torna mais fácil entender certas coisas. Por exemplo, como é abissal a diferença entre nossas vidas. Enquanto meus dias eram repletos de significado, cada passo levando a uma nova oportunidade, e cada oportunidade me preenchendo, de um jeito hoje difícil de entender, o significado dos seus dias não se limitava a eventos individuais, mas abrangia áreas tão extensas que não era possível compreendê-las senão em termos abstratos. “Família” era um; “carreira”, outro.

Poucas oportunidades, talvez nenhuma, se abriram para ele no decorrer da sua existência, ele tinha sempre que saber de antemão o que elas lhe trariam e como iria reagir. Fora casado por doze anos, trabalhara como professor de uma escola fundamental em oito deles, tivera dois filhos, uma casa e um carro. Elegera-se para a Câmara e fora escolhido representante do partido de esquerda no conselho municipal. Durante os meses de inverno ocupava-se da filatelia, não sem algum progresso: em pouco tempo se tornara um dos filatelistas mais destacados da região, enquanto nos meses de verão era a jardinagem que lhe tomava a maior parte do tempo livre.

Do que ele pensou daquele entardecer de primavera não faço a menor ideia, tampouco sei da imagem que tinha de si mesmo ao se erguer na escuridão empunhando uma marreta, mas estou convencido de que ele tinha a sensação de que compreendia muito bem suas circunstâncias. Conhecia todos os vizinhos e sabia qual a posição social que ocupavam em relação a ele, e imagino que também soubesse um pouco de assuntos que preferiam manter em segredo, tanto porque ele lecionava aos seus filhos como porque tinha um olho clínico para fraquezas alheias.

Como membro da nova classe média escolarizada, era igualmente bem informado sobre o mundo, que lhe chegava todos os dias via jornal, rádio e televisão. Dominava botânica e zoologia, pois tinha se interessado por essas disciplinas quando jovem e, embora não fosse muito versado nas demais ciências, lembrava-se dos fundamentos destas da época do ginásio. Saía-se melhor em história, que, a exemplo de norueguês e inglês, estudara na universidade. Em outras palavras, não era um expertem nada, exceto talvez em pedagogia, mas, enfim, sabia um pouco de tudo. Nesse aspecto era um professor típico, porém numa época em que lecionar numa escola fundamental conferia certo status.

O vizinho do outro lado do muro de pedra, Prestbakmo, era professor da mesma escola, assim como o que morava no alto da colina repleta de árvores atrás da nossa casa, Olsen, enquanto um dos vizinhos que morava no fim do anel viário, Knudsen, era o supervisor de ensino de outra escola fundamental. Então, quando meu pai erguia a marreta acima da cabeça e a deixava cair sobre a rocha naquele entardecer de primavera da metade da década de 70, fazia isso num mundo que conhecia bem e que lhe inspirava confiança. Somente ao atingir aquela mesma idade eu fui entender que é preciso pagar um preço por isso. Quando sua perspectiva de mundo se amplia, não mitiga apenas a dor que acarreta, mas também o sentido dessa dor.

Compreender o mundo requer que se mantenha uma certa distância dele. Ampliamos aquilo que é pequeno demais para ser visto a olho nu, como moléculas e átomos, enquanto minimizamos grandezas como formações de nuvens, deltas de rios, constelações. Somente ao trazer as coisas para a dimensão dos nossos sentidos é que somos capazes de fixá-las. E a essa fixação chamamos conhecimento. Ao longo de toda a infância e juventude lutamos para manter a distância adequada das coisas e fenômenos. Lemos, aprendemos, experimentamos, corrigimos. E aí um dia chegamos ao ponto em que todas as distâncias de que necessitamos foram determinadas, todos os sistemas de que necessitamos foram estabelecidos. É quando o tempo começa a passar mais rápido. Ele não encontra mais obstáculos, tudo está determinado, o tempo se esvai pela nossa vida, os dias passam num piscar de olhos, e, antes que nos demos conta do que está acontecendo, completamos 40, 50, 60 anos...



***



Hoje é dia 27 de fevereiro de 2008. São 23h43. Eu, Karl Ove Knausgård, nasci em dezembro de 1968, portanto, no instante em que escrevo, tenho 39 anos de idade. Tenho três filhos, Vanja, Heidi e John, e sou casado pela segunda vez, com Linda Boström Knausgård. Os quatro estão dormindo nos quartos ao meu redor, num apartamento em Malmö, onde há um ano e meio fixamos moradia. Porém, exceto por alguns pais das crianças da escola de Vanja e Heidi, não conhecemos ninguém por aqui. Isso não faz falta, ao menos para mim, a vida social não me traz nada.

Nunca expresso o que realmente penso, o que realmente quero dizer, mas sempre concordo mais ou menos com o que meu interlocutor diz, finjo que o que ele diz me interessa, a não ser quando bebo, nesse caso costumo agir de maneira oposta e acordar no dia seguinte com a sensação de ter ultrapassado os limites, algo que só tem aumentado com o passar dos anos, e agora pode se prolongar por semanas. Quando bebo, minha mente se turva e perco totalmente o controle sobre minhas ações, que com frequência se tornam desesperadas e idiotas, mas sobretudo desesperadas e perigosas. Por isso parei de beber.

Não quero que se aproximem de mim, não quero que me vejam, e é assim que as coisas têm sido: ninguém se aproxima e ninguém me vê. É isso que deve ter ficado gravado no meu rosto, é isso que deve tê-lo feito tão duro e com aspecto de máscara, é quase impossível associá-lo a mim mesmo quando me acontece de deparar com ele numa vitrine de loja.



A única coisa que não envelhece no rosto são os olhos. Têm o mesmo brilho no dia em que nascemos e no dia em que morremos. Seus vasos sanguíneos podem se romper, é verdade, e as córneas podem se tornar baças, mas sua luz jamais se modifica. Existe uma pintura em Londres que, toda vez que a vejo, mexe comigo. É um autorretrato do Rembrandt velho. As pinturas tardias de Rembrandt em geral se caracterizam por uma crueza sem precedentes, e nelas tudo se subordina à expressão do momento, a um só tempo reluzente e sagrado, e continuam sem paralelo nas artes, com a possível exceção do patamar que Hölderlin atingiu nos seus poemas tardios, não importa quão diferentes e incomparáveis sejam, pois naquilo que a luz de Hölderlin, expressa através da linguagem, é etérea e celestial, a luz de Rembrandt, expressa através da cor, é terrena, metálica e material, mas precisamente esse quadro, exposto na National Gallery, foi pintado com um certo realismo clássico, mais próximo da realidade, semelhante ao estilo do jovem Rembrandt. Porém, o que o quadro retrata é o Rembrandt velho. É a senectude. Todos os detalhes da face, todos os traços nela impressos pela vida, são mostrados. O rosto é enrugado, cheio de vincos, sem viço, maltratado pelo tempo. Mas os olhos brilham e, embora não sejam jovens, parecem imunes ao tempo que imprimiu sua marca no rosto. É como se outra pessoa olhasse para nós de algum lugar dentro do rosto, onde tudo é diferente. Aproximar-se mais que isso de outra alma humana é difícil. Pois tudo que concerne à pessoa de Rembrandt, seus bons hábitos e seus vícios, os odores e sons de seu corpo, sua voz e expressão, seus pensamentos e opiniões, sua conduta, suas características físicas e defeitos, tudo que distingue um ser humano de outros, já não está ali, o quadro tem mais de trezentos anos, e Rembrandt morreu no mesmo ano em que ele foi pintado, então o que o quadro retrata, o que Rembrandt pintou, é a essência desse ser, aquilo para o qual ele despertava a cada manhã, que logo ocupava seus pensamentos mas não era propriamente um pensamento, que ele sentia primeiro mas não era exatamente um sentimento, e aquilo que a cada noite o fazia adormecer, até que certo dia para sempre.

Aquilo que num ser humano o tempo não atinge e de onde provém o brilho dos olhos. A diferença entre esse quadro e os outros que o Rembrandt velho pintou é a diferença entre ver e ser visto. Isto é, nessa pintura ele se vê ao mesmo tempo que é visto, e sem dúvida só no barroco, com seu jogo de espelhos, play within the play, a vida no palco e a crença na inter-relação de todas as coisas, quando o engenho humano atingiu um nível jamais visto, nem antes nem depois, é que tal pintura foi possível. No entanto, ela existe na nossa época, e é através de nós que ela vê.



Na noite em que Vanja nasceu, durante várias horas ela fixou o olhar em nós. Seus olhos eram como duas lanternas negras. O corpo coberto de sangue, o cabelo comprido emplastado na cabeça, e, quando ela se mexia, era com os movimentos lentos de um réptil. Mais parecia uma criatura da floresta, deitada sobre a barriga de Linda, nos fitando. Não conseguíamos extrair nada nem dela nem daquele olhar. Mas o que ele encerrava? Placidez, seriedade, escuridão. Mostrei a língua, um minuto transcorreu, então ela mostrou sua língua. Nunca houve tanto futuro na minha vida como então, nunca tamanha alegria.

Hoje ela tem 4 anos, e tudo está diferente. Seus olhos são alertas, alternando ciúme e felicidade com a velocidade de uma piscadela, tristeza e raiva, ela está preparada para o mundo e pode ser tão insolente que eu perco completamente a cabeça e às vezes grito com ela ou lhe dou umas sacudidas até que comece a chorar, embora costume apenas rir. A última vez que isso aconteceu, a última vez que fiquei zangado a ponto de lhe dar uma sacudida e ela apenas riu, tive a presença de espírito de pôr a mão sobre seu peito.

Seu coração batia forte. Ah, como batia.



Agora são oito e cinco da manhã. É dia 4 de março de 2008. Estou no escritório, cercado de livros do chão ao teto, ouvindo a banda sueca Dungen e refletindo sobre o que escrevi e aonde isso vai levar. Linda e John dormem no quarto ao lado, Vanja e Heidi estão na escolinha, onde as deixei faz meia hora. O enorme hotel Hilton ainda está escuro, seus elevadores sobem e descem pelos três andares envidraçados. Bem ao lado há um prédio de tijolos vermelhos que, a julgar pelos balcões, arcos e águas-furtadas, deve ser do fim do século XIX ou começo do XX. Mais atrás, pode-se vislumbrar o parque Magistrats, com suas árvores e seu gramado verde, onde uma casa cinza, em estilo eclético, bloqueia a visão e a conduz em direção ao céu, que pela primeira vez em várias semanas está limpo e azul.

Depois de morar aqui durante um ano e meio, conheço bem essa paisagem e tudo que ela expressa no correr dos dias, mas não me sinto ligado a ela. Nada do que vejo aqui significa algo para mim. Talvez fosse exatamente isso que eu estivesse procurando, pois existe alguma coisa que me atrai nessa ausência de vínculo, talvez eu até precise dela, mas não foi uma escolha consciente. Há seis anos eu residia e escrevia em Bergen e, embora não tivesse a intenção de passar o resto da vida ali, também não nutria planos de abandonar nem a cidade nem a mulher com quem vivia. Ao contrário, planejávamos ter filhos, talvez nos mudar para Oslo, onde eu escreveria alguns romances e ela continuaria sua carreira em rádio e tevê.

Mas o futuro que prevíamos, o qual não passava de um prolongamento do nosso presente, com sua rotina diária e refeições com amigos e conhecidos, suas viagens de férias e visitas a pais e sogros, tudo adornado com o sonho de ter filhos, não resultou em nada. Algo aconteceu, e de um dia para outro me mudei para Estocolmo, primeiro para ficar algumas semanas, e de repente aquilo se tornou minha vida. Não apenas a cidade e o país se modificaram, mas também todas as pessoas. Se isso parece estranho, mais estranho ainda é o fato de eu jamais ter refletido sobre isso. Como vim parar aqui? Por que teve de ser assim



Quando cheguei a Estocolmo, conhecia duas pessoas, nenhuma delas muito bem: Geir, a quem conhecera em Bergen e vira durante poucas semanas na primavera de 1990, portanto doze anos antes, e Linda, a quem encontrara num seminário para escritores novatos em Biskops-Arnö na primavera de 1999. Enviei um e-mail para Geir perguntando se poderia dividir a residência com ele enquanto não arranjasse um local para morar, ele respondeu que sim, e então pus um anúncio nos classificados de dois jornais suecos.

Recebi mais de quarenta respostas, das quais selecionei duas. Uma era na rua Bastu, a outra na Brännkyrk. Depois de analisá-las, me decidi pela última, até bater os olhos na lista de inquilinos no hall de entrada, onde estava escrito o nome de Linda. Quais as probabilidades de isso ocorrer? Estocolmo tem mais de 1 milhão e meio de habitantes. Se o apartamento tivesse chegado até mim por intermédio de amigos ou conhecidos, as chances teriam sido muito maiores, pois todos os círculos literários são relativamente pequenos, não importa o tamanho da cidade, mas eu havia chegado até ele por meio de um classificado anônimo, um entre centenas de milhares, e, claro, a proprietária que respondeu ao anúncio não conhecia nem a mim nem a Linda. A partir de então decidi que seria melhor ficar com o outro apartamento, pois, se escolhesse aquele, Linda talvez achasse que eu a estava assediando. Mas era um sinal. Que se provou acertado, pois agora sou casado com Linda e ela é a mãe dos meus três filhos. Agora é ela a mulher com quem divido a vida.

O único rastro visível da minha vida anterior são os livros e discos que ficaram comigo. Todo o resto eu deixei para trás. E, se antes passei um bom período remoendo o passado, talvez um período doentiamente longo, me ocorre agora, o que implica não apenas ter lido Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, mas quase ter submergido no romance, hoje o passado mal aparece em meus pensamentos. Acredito que a principal razão disso são as nossas crianças, já que a vida cotidiana com elas preenche todos os espaços. Mesmo o passado mais recente elas se encarregam de pôr de lado: pergunte-me o que fiz há três dias e eu não vou lembrar. Pergunte-me como Vanja era há dois anos, Heidi há dois meses, John há duas semanas, e não vou lembrar.

Muita coisa acontece no nosso diminuto dia a dia, tudo sempre obedecendo à mesma rotina. Isso, mais que qualquer coisa, alterou minha percepção do tempo. Enquanto antes eu via o tempo como um trecho do percurso e o futuro como uma meta distante, promissora na melhor das hipóteses, ou ao menos jamais entediante, ele agora está entrelaçado com o aqui e agora de maneira totalmente diversa. Se tivesse que representar isso com uma imagem visual, ela seria a de um barco num dique: a vida vai, lenta e inelutavelmente, sendo erguida pelo tempo que jorra de todos os lados. A não ser pelos detalhes, tudo é sempre igual. E, a cada dia que passa, aumenta o desejo pelo momento em que a vida chegará ao topo, o momento em que as comportas se abrem e ela enfim toma seu rumo. Ao mesmo tempo eu me conscientizo de que essa repetição, essa reclusão, essa imutabilidade são necessárias, elas me protegem, pois, nas poucas vezes em que as abandonei, as antigas mazelas retornaram.

De súbito me vi tomado por toda sorte de pensamentos sobre o que se disse, o que se viu, o que se pensou, como se tivesse sido arrastado para o ambiente incontrolável, estéril e na maioria das vezes degradante em que vivi durante tantos anos. Lá existe igualmente uma nostalgia, um sentimento tão forte quanto o que existe aqui, com a diferença de que lá esse sentimento tem um propósito realizável, aqui não. Aqui tenho que encontrar outros propósitos e me contentar com eles. À arte de viver é que estou me referindo. No papel isso não é problema, nele posso facilmente conceber uma imagem de Heidi, por exemplo, pulando do berço às cinco da manhã e cambaleando pelo chão da casa no escuro, segundos antes de acender a luz, parar diante de mim, semiacordado e mal a enxergando, e dizer Cozinha! Sua fala ainda é idiossincrática: as palavras têm um significado diferente, e “cozinha” quer dizer müsli com iogurte de mirtilo. Da mesma forma, velas significam “Feliz aniversário!”. Heidi tem olhos grandes, boca grande, um apetite enorme, é uma criança ávida em todos os sentidos, e a felicidade robusta e autêntica que demonstrou no seu ano e meio de vida foi eclipsada, este ano, pelo nascimento de John, por emoções desconhecidas até então. Nos primeiros meses ela aproveitou quase todas as oportunidades que teve para tentar machucá-lo. Cicatrizes de arranhões no rosto dele eram mais regra que exceção.

Quando voltei para casa depois de uma viagem de quatro dias a Frankfurt, no outono, John parecia ter acabado de chegar de uma guerra. Foi difícil, porque não queríamos separá-los, então passamos a tentar decifrar o humor de Heidi e, conforme fosse, controlar seu acesso a John. Mas, mesmo que ela estivesse muito bem-humorada, de repente sua mão o atingia com um tapa ou um arranhão. Além disso, ela passou a embirrar com uma intensidade tal que eu julgaria impossível apenas dois meses antes, ao mesmo tempo também veio à tona uma vulnerabilidade insuspeita: ao menor indício de austeridade no meu tom de voz ou no meu comportamento, ela abaixava a cabeça, dava as costas para mim e se punha a chorar, como se desejasse nos mostrar sua raiva e ocultar seus sentimentos. Quando escrevo estas linhas, sou tomado por uma ternura enorme para com ela. Mas aqui é o papel. Na realidade, quando isso ocorre de fato, ela parada diante de mim de manhã, tão cedo que as ruas estão desertas e não se ouve um som sequer na casa, ela empolgada com o raiar de mais um dia, eu tentando me manter em pé, vestindo as roupas da véspera e acompanhando-a até a cozinha, onde a esperam o iogurte de mirtilo e o müsli sem açúcar, não é ternura que sinto, e, quando ela ultrapassa meus limites, por exemplo, ao me irritar seguidamente durante um filme ou tentando entrar no quarto onde John está dormindo, em resumo, toda vez que se recusa a aceitar um não como resposta, prolongando uma situação ao infinito, não raro minha irritação se transforma em raiva, e, quando lhe dou uma bronca e lágrimas escorrem pelo seu rosto e ela abaixa a cabeça e encolhe os ombros, acho que ela teve o que mereceu.

A constatação de que ela tem apenas 2 anos não encontra espaço na minha mente até o cair da noite, quando eles estão dormindo e eu fico pensando por que agi daquele modo. Mas este sou eu observando tudo de fora. Quando estou imerso naquilo, não tenho a menor chance. O que importa então é conseguir chegar à manhã seguinte, as fraldas que precisam ser trocadas a cada três horas, as roupas que precisam ser vestidas, o desjejum que precisa ser servido, os rostos que precisam ser lavados, os cabelos que precisam ser penteados e presos, os dentes que precisam ser escovados, as brigas que precisam ser apartadas, os tapas que precisam ser evitados, os aventais e as botas que precisam ser colocados, antes que eu, levando o carrinho duplo dobrável numa das mãos e tentando conduzir as duas meninas com a outra, entre no elevador, que não raro ecoa o barulho das birras e brigas na descida até o térreo, saia no hall, onde as faço sentar no carrinho e ponho suas luvas e gorros, e caminhe pela rua, já lotada de gente que vai para o trabalho, para dez minutos depois deixá-las na escolinha, e assim ter as cinco horas seguintes livres para escrever, até que a exigente rotina das crianças assuma novamente o controle.

Sempre tive uma grande necessidade de estar sozinho, preciso ter meu quinhão de isolamento, e, quando não consigo, como nos últimos cinco anos, a frustração que surge pode às vezes se transformar em pânico ou agressividade. E, quando aquilo que me levou para a frente durante toda a vida adulta, a ambição de um dia escrever algo brilhante, de algum modo se vê ameaçado, meu único pensamento, que me corrói as entranhas, é o de que preciso fugir. O tempo está escapando de mim, escorrendo entre meus dedos como areia, enquanto eu... faço o quê?Limpo o chão, lavo roupa, preparo o jantar, faço faxina, compras, brinco com as crianças em playgrounds, trago-as para casa, dou banho nelas, cuido delas até a hora de dormir, ponho-as na cama, penduro roupas no varal, dobro outras e guardo nas gavetas, arrumo a casa, arrumo a mesa, cadeiras e armários. É uma luta, embora nada heroica, é uma luta contra uma força superior, pois, não importa o quanto eu trabalhe em casa, os quartos ficam desarrumados e sujos, e as crianças, que não perco de vista quando estão acordadas, são as mais teimosas que jamais vi, há momentos em que a casa se transforma num verdadeiro hospício, talvez porque nunca tenhamos conseguido atingir o equilíbrio necessário entre distância e intimidade, tanto mais importante quanto mais fortes as personalidades envolvidas. E aqui temos um bom punhado delas.

Quando Vanja estava com uns 8 meses, passou a ter violentos acessos de raiva, às vezes semelhantes a convulsões, por algum tempo era impossível nos aproximarmos, ela gritava sem parar. A única coisa que podíamos fazer era segurá-la até que ela cedesse. O que provocava isso não é fácil precisar, mas acontecia com mais frequência depois que ela era exposta a estímulos novos, como, por exemplo, quando viajamos para visitar sua avó nos arredores de Estocolmo e ela brincou bastante com outras crianças, ou quando passeamos o dia inteiro pela cidade. Então, aflita e fora de si, ela berrava a plenos pulmões, incansavelmente. Não é simples conciliar sensibilidade e obstinação. E as coisas não ficaram mais fáceis para ela quando Heidi nasceu.

Eu gostaria de poder dizer que mantinha o domínio da situação, mas lamento não poder fazê-lo, pois minha raiva e meus sentimentos também eram postos à prova nessas situações, que se intensificavam, com frequência em público: acontecia de eu, em minha fúria, erguê-la do chão, onde desabara em pleno shopping center em Estocolmo, jogá-la sobre os ombros como se fosse um saco de batatas e carregá-la pelas ruas, enquanto ela esperneava, me batia e uivava como se estivesse possuída. Às vezes eu reagia aos seus uivos gritando de volta, sacudindo-a na cama e segurando-a até que aqui-lo terminasse, fosse o que fosse que a estivesse atormentando. Ela mal tinha aprendido a andar e já sabia exatamente o que me deixava louco, um tipo particular de grito, não era um choro, nem um soluço, nem um berro, mas um grito sem causa aparente, direcionado, agressivo, que me tirava completamente do sério, eu me levantava e no instante seguinte estava diante da pobre garota, sacudindo-a até que seus gritos se convertessem em lágrimas, seu corpo amolecesse e ela aceitasse ser confortada.

Em retrospecto, percebo como ela, com apenas 2 anos de existência, exerceu uma enorme influência em nossa vida. Só o que importava era aquilo que ela fazia. Isso, claro, não diz nada sobre ela, mas diz tudo sobre nós. Tanto Linda como eu vivemos perto do caos, ou de uma sensação de caos, tudo podia ruir a qualquer momento, e tínhamos que nos limitar às demandas da vida com crianças pequenas. Não fazíamos planos. Até a compra do jantar era uma surpresa a cada dia. As contas que deviam ser pagas no fim do mês eram outra. Não fossem alguns depósitos esporádicos feitos na minha conta, fruto de direitos autorais, vendas de clubes de livros ou, em menor quantidade, de livros didáticos, ou ainda, como neste outono, a segunda parcela de honorários estrangeiros que eu havia esquecido, e teríamos fracassado.

Mas essa improvisação constante só aumenta a importância do momento, que, claro, com o passar do tempo vai se tornando extremamente significativo, uma vez que nada nele é automático, e durante os momentos prazerosos, que naturalmente também existem, nossos laços afetivos são fortalecidos, numa felicidade intensa. Ah, como irradiamos alegria. As crianças se enchem de vida e ficam instintivamente propensas à felicidade, o que nos dá uma energia extra e ficamos bem com elas, e elas esquecem as birras em alguns segundos.

A parte penosa de tudo isso é saber que só ficar bem com elas não tem a menor importância quando estou preso numa espécie de areia movediça, arrastado por uma torrente de lágrimas e frustração. E cada gesto meu serve apenas para me fazer afundar cada vez mais. E tão penoso quanto isso é saber que estou lidando com crianças. Que são crianças que estão me fazendo afundar. E isso é profundamente humilhante. Em tais situações me sinto por demais distante de quem desejo ser. Não tinha consciência de nada disso antes de ter filhos. Achava que tudo estaria bem se eu fosse bom para eles. O que é mais ou menos verdade, mas nenhuma das minhas experiências anteriores me preveniu da invasão de privacidade que ter filhos implica. A intimidade extrema que temos com eles, a maneira como nosso temperamento e humor, por assim dizer, se mesclam aos deles, tanto que nossos defeitos deixam de ser particulares, não podem mais ser encobertos, mas de certo modo assumem uma forma exterior e se voltam contra nós.

O mesmo vale, claro, para nossas qualidades. Pois, exceto quando a pressão chegou ao limiar do insuportável, logo após o nascimento de Heidi e em seguida o de John, quando nossa vida escapou dos eixos e degenerou em momentos de crise pura e simples, a vida deles hoje é constituída em bases estáveis e seguras, e, mesmo que às vezes eu perca a paciência e os repreenda, eles confiam em mim e procuram minha companhia sempre que precisam. Não há nada de que gostem mais do que sair em família, algo que para eles se converte numa aventura: uma ida até Västra Hamnennum dia ensolarado, cortando caminho pelo parque, onde uma pilha de lenha é suficiente para entretê-los por meia hora, andando em seguida ao lado dos iates ancorados na marina, logo depois almoço nas escadas do píer, panini de um café italiano próximo, desnecessário mencionar que nem havíamos planejado fazer piquenique, e, depois de tudo, mais uma hora correndo, brincando e se divertindo, Vanja correndo do seu jeito típico, ziguezagueante, revelado quando ela completou 1 ano e meio, Heidi atabalhoada e entusiasmada 2 metros atrás da irmã mais velha, ansiosa por aqueles raros momentos de companhia, antes de tomarmos o rumo de volta para casa.

Se acontecer de Heidi cair no sono no carrinho, sentamos num café com Vanja, que adora estar sozinha conosco, com sua limonada, falando sem parar e fazendo todas as perguntas possíveis: por que o céu não cai, se não dá para impedir a chegada do outono ou se macacos têm esqueleto. A sensação de felicidade que experimento não me ocorre exatamente como um turbilhão, está mais próxima do prazer e da tranquilidade, não importa, tudo é felicidade. Em certos momentos, talvez, seja até êxtase.

E isso não é o bastante? Não é o bastante? Sim, se o objetivo fosse a felicidade, seria o bastante. Mas a felicidade não é meu objetivo, jamais foi, para que vou querê-la? Tampouco a família é meu objetivo. Se fosse, poderia devotar a ela toda a minha energia, seria fantástico, não tenho dúvidas. Poderíamos morar num lugar qualquer da Noruega, esquiar e patinar no inverno, carregando lanches e garrafas térmicas na mochila, velejar no verão, mergulhar, pescar, acampar, viajar com outras famílias para o exterior nas férias, ter uma casa arrumada, passar mais tempo na cozinha preparando receitas deliciosas, aproveitar o tempo com amigos, felizes e contentes. Ah, tudo isso pode soar caricato, mas todo dia eu vejo famílias que conseguem funcionar dessa maneira. As crianças são limpas, vestem-se com elegância, os pais são felizes e, embora às vezes levantem a voz, jamais se portam como idiotas com elas. Viajam nos fins de semana, alugam casas na Normandia no verão, e suas geladeiras jamais ficam vazias. Trabalham em bancos ou hospitais, empresas de informática ou na administração municipal, no teatro ou em universidades. Por que eu, um escritor, devo ser excluído desse mundo? Por que eu, um escritor, tenho que empurrar carrinhos de bebê que mais parecem ter sido encontrados no lixo? Por que eu, um escritor, tenho que chegar à escolinha com os olhos injetados e o rosto transformado numa máscara de frustração? Por que eu, um escritor, tenho que deixar nossos filhos fazerem tudo que lhes dá na telha, não importam as consequências?

De onde vem essa bagunça que tomou conta da nossa vida? Sei que posso mudar tudo isso, sei que podemos ser uma família daquelas, basta querer e a vida se encarregará do resto. Mas não quero. Faço tudo que posso pela família, é meu dever. Resistir é a única coisa que a vida me ensinou, sem jamais fazer perguntas, incendiando toda essa angústia através da escrita. Não faço a menor ideia de onde vem esse ideal e, quando o vejo diante de mim, preto no branco, acho tudo um tanto perverso: por que o dever antes da felicidade?

A pergunta sobre a felicidade é banal, mas não a que se segue, a pergunta sobre o sentido. Meus olhos se enchem de lágrimas quando olho para uma bela pintura, mas não quando olho para os meus filhos. Isso não significa que não os ame, pois os amo do fundo do coração, significa apenas que o que eles me trazem não é suficiente para dar sentido à vida. Ao menos não à minha. Logo vou completar 40 anos, ao completá-los logo terei 50. Aos 50, logo terei 60. Aos 60, 70. E pronto, acabou.




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