quarta-feira, 8 de maio de 2013

Bicentenário de nascimento de Kierkegaard


Por Juvenal Savian Filho
Da Revista Cult

No dia 5 de maio de 2013 comemorou-se o bicentenário de nascimento de Soren Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês de grande influência sobre o pensamento contemporâneo, no entanto pouco estudado no Brasil e mesmo no restante do mundo. Curiosamente, é um autor bastante mencionado, segundo um costume curioso: muita gente costuma citá-lo, mas quase ninguém o leu. Fala-se de Kierkegaard como aquele que queria ser “indivíduo”, crítico mordaz de Hegel e do cristianismo vivido na Dinamarca do século 19, pai do existencialismo e por aí afora.

De modo geral, sob esses clichês repousa uma espécie de pressuposto: Kierkegaard seria um destruidor da razão sistemática, principalmente a do viés hegeliano. Porém, se Hegel o visse sob esse rótulo, certamente daria uma piscadela e, com um sorriso autoconfiante, veria em seu antípoda a exceção que confirma a regra; afinal, como se diz, não há nada mais hegeliano do que a contraposição a uma tese, em busca de nova síntese. A parte o clichê, não deixa de ser verdade que Kierkegaard se opôs ao sistema de Hegel, dizendo que este construiu um palácio racional suntuoso, mas continuava morando no casebre dos fundos, pois sua filosofia não dava conta da vida e de tudo aquilo que ajuda alguém a tornar-se realmente indivíduo sem se perder em abstrações que o separam de si mesmo. Em benefício da experiência pessoal vai o elogio de Kierkegaard ao pensamento produzido na carne da existência, com uma ênfase explícita na biografia; não a biografia burguesa e da autoexposição narcísica, mas aquela em que a narrativa apresenta o itinerário pelo qual o indivíduo chega a universalizar-se, alcançando no final o sentido que agia desde o início; um testemunho do que é e do que pode ser a experiência humana. É justamente dessa perspectiva que se pode ver como o pensamento kierkegaardiano ainda merece ser explorado.

Com uma história familiar nada fácil e procedendo da região entediantemente gelada da Jutlândia (desértica, porém fecunda de desespero, onde o que há de mais espetacular é ver o voo de um pato selvagem), o pensador solitário, em vez de destruir o que critica, reconhece a força que pulsa mesmo sob o que considerava equivocado. Assim, alguém realmente anti-hegeliano estaria mais longe de Kierkegaard do que se costuma pensar, tal como um anticristão ou um ateu estão mais longe de Nietzsche do que se supõe. O sentido do pensamento kierkegaardiano talvez se deixe captar como uma construção sem pretensão sistemática, sem a ilusão de que se pode tudo explicar por uma ordem lógica, como quando se cai no ridículo de perguntar a alguém que ama: “por que você ama?”. Se esse alguém der uma razão por que ama, sai da dinâmica do amor, a gratuidade que não precisa de porquês. Isso só se vive na carne, e apenas imperfeitamente é possível exprimi-lo pelo trabalho conceitual. O sacrifício de sua noiva Regine Olsen, ao modo do sacrifício de Isaac oferecido por Abraão, permite vislumbrar a intensidade de uma das faces do que pretendia Kierkegaard ao falar de filosofia feita em primeira pessoa.

A certeza da dúvida

Porém, aceitar a impossibilidade de tudo incluir em um sistema explicativo não significa necessariamente ceder à ilusão de duvidar sempre e de tudo. É verdade que, paradoxalmente, Kierkegaard assume a ironia socrática como capacidade de negação universal e ilimitada, porque, engajando profundamente o indivíduo na existência, ela evita que ele seja sugado por um sistema de ideias e mostra que razões e justificações nascem sempre depois de uma decisão existencial, nunca a fundamentando, mas resultando dela. Como bem dizia Jacques Derrida – em paráfrase do mestre dinamarquês –, o instante da decisão é uma loucura. Todavia, o indivíduo não hipócrita, quer dizer, que não se esconde atrás de razões, mas admite a precariedade intelectual da vida, pode ainda assim perscrutar suas decisões, falando em porquês, assumindo suas escolhas e procurando sobretudo o sentido delas. Sob esse ângulo, a filosofia, por mais apaixonada que seja pela dúvida (a forma mais indicada de manter a lucidez), merece não deixar de ver que uma dúvida repetida indefinidamente torna-se fanatismo, volta-se contra si mesma, destrói-se e acaba por produzir certezas (no mínimo, a certeza da dúvida). Algo, se assim se pode dizer, como um absoluto da dúvida, mesmo que metodológico, não significaria viver autenticamente a experiência de duvidar (maneira existencial), mas a transforma em doutrina (em busca apenas de uma ordem de razões), deixando a vida escapar por entre os dedos. É nesse espírito que Kierkegaard parece pôr em paralelo a dúvida e a fé, única possibilidade de compreender o engajamento na existência produzido pela ironia. Daí que, com atenção e sensibilidade fora do comum, e contrariando o irracionalismo apressado que se lhe costuma associar, Kierkegaard tenha tratado de temas filosóficos extremamente exigentes. Três grupos gerais poderiam ser identificados em sua obra: algo como uma “psicologia filosófica”, na qual investiga e correlaciona as tonalidades afetivas (angústia, desespero); uma reflexão sobre o tempo (com os conhecidos estágios da existência – o estético, típico da sensibilidade; o ético, que relaciona o ser humano ao dever; o religioso, centrado no vínculo indissociável entre o homem e seu destino divino –, os quais não podem ser vistos de maneira cronológica ou lógica, mas do ponto de vista da existência encarnada); e uma investigação sobre a linguagem, centrada na comunicação, no silêncio e na subjetividade daquele que fala.

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