sexta-feira, 31 de maio de 2013

Esteticamente correto

Rafael Spreguelburd (Leonardo) em cena de O Homem ao Lado


Por Marcia Tiburi
Da Revista Cult


A pobreza da experiência cultural contemporânea agrega dois grupos pseudopolíticos: os “politicamente corretos”, que Nietzsche, no século 19, chamaria de “sacerdotes da moral”, e seus críticos, sempre autoelogiados como “politicamente incorretos”, que seriam hoje “sacerdotes do imoral”, servos daquela moral, só que sob o disfarce da inversão. O “sadismozinho” diário dos antipolíticos politicamente incorretos esconde o desejo de uma crueldade socialmente inviável. A maldadezinha do cotidiano faz mal às suas vítimas, mas é autorizada ao agente, desde que ele saiba manter as aparências de que tem toda a razão e não é tão mau assim.

A manutenção das aparências como verdadeira força que mantém as condições da dominação é o que chamaremos pela expressão “esteticamente correto”.  Enceguecidos pela cultura do espetáculo, não vemos justamente o “evidente”.  O velho parecendo novo, o mau parecendo bom, o sujo parecendo limpo, o feio parecendo belo. A correção estética é a expressão da racionalidade técnica da dominação. Exemplos abundam, dos modos de vestir às academias de ginástica.

O esteticamente correto foi bem apresentado, por exemplo, em um filme chamado O homem ao lado (Gastón Duprat e Mariano Cohn, 2009). Tal como na vida, o personagem principal do filme é um respeitado designer internacional que mora na única casa desenhada por Le Corbusier em todas as Américas. A casa é impecável e dentro dela se desenvolve uma vida moralmente bem comportada, o que se vê no modo como ele e a esposa tratam a faxineira com respeito atencioso. Dos móveis aos objetos domésticos, da roupa que vestem à música que ouvem, tudo está esteticamente correto. O designer tem uma vida tão correta que chega a ser professor universitário, o que vem coroar o personagem com a aura do intelectual que é também, digamos, “epistemologicamente correto”.

Tudo se passa na mais simples normalidade, até que um vizinho bronco resolve abrir um buraco em uma parede contígua à casa para servir de janela. O caráter ilegal de seu ato se relaciona intimamente ao caráter “esteticamente incorreto” da ação. E dele mesmo. Este antagonista tem um “estilo” visual fora do padrão culto expresso também em seu senso de humor, em seu jeito de ser e falar. Os regimes de comportamento ético e estético de cada personagem expressam-se em tensão. O desenvolvimento da trama nos legará um desfecho estarrecedor, pois que esperamos de quem tem estilo que tenha uma prática que combine com ele.  O filme mostra que julgamos pelas aparências e quase sempre nos enganamos redondamente, não porque as aparências enganem, mas porque não olhamos com cuidado.

Escravidão voluntária estética

Dizer que toda ética tem sua estética pode ser traduzido por “toda moral tem o seu gosto”. O velho padrão do gosto sobrevive hoje, por exemplo, na ditadura do fashion, em que “fazer tipo” é a lei.

A beleza e o bom gosto definem o padrão do “esteticamente correto” enquanto medida a partir da qual tudo é relativo no mundo da aparência. E como a esfera da aparência é decisiva em uma sociedade espetacular, aquela em que as relações são mediadas por imagens, o poder se exerce ali silenciosamente definindo quem é bonito e quem não é. A ditadura da beleza se impõe em nosso mundo sobre quem é constantemente reduzido a seu corpo, é o caso de mulheres de todas as idades. Por isso, o homem branco e rico, pode ser barrigudo, careca e velho (para brincar com um estereótipo). Ninguém ousa taxá-lo de feio, pois sua feiura não está em jogo: ele está na origem da lei que rege o gosto como padrão onde encaixar os outros.  A preferência por inserir-se no gosto em vez de questioná-lo explica a voluntária escravidão estética desses tempos. Política de verdade não é realmente algo que esteja em questão. 


quarta-feira, 29 de maio de 2013

Psiquiatras ficam acuados em batalha sobre a saúde mental



Por Jamie Doward
Tradução de Rodrigo Leite
Do Observer


Não há prova científica de que diagnósticos psiquiátricos como os de esquizofrenia e transtorno bipolar sejam válidos ou úteis, segundo uma importante entidade que representa os psicólogos clínicos da Grã-Bretanha.

Em uma atitude inédita, e que já atraiu uma forte reação dos psiquiatras, a divisão de psicologia clínica (DCP, na sigla em inglês) da Sociedade Britânica de Psicologia divulgou na segunda-feira (dia 13) uma nota declarando que, dada a falta de provas, é hora de uma "mudança de paradigma" na forma como as questões de saúde mental são entendidas. A declaração na prática põe em dúvida o modelo biomédico de perturbação mental predominante na psiquiatria - a ideia de que as pessoas estão sofrendo de doenças tratáveis por médicos usando remédios. O DCP disse que sua decisão de se manifestar "reflete preocupações fundamentais sobre o desenvolvimento, impacto pessoal e suposições centrais dos sistemas [de diagnóstico usados pela psiquiatria]".

Lucy Johnstone, consultora de psicologia clínica que participou da redação da nota do DCP, disse que não é útil encarar as questões de saúde mental como sendo doenças com causas biológicas.

"Pelo contrário, agora há provas contundentes de que as pessoas desmoronam como resultado de uma complexa mistura de circunstâncias sociais e psicológicas - luto e perda, pobreza e discriminação, trauma e abuso", disse Johnstone. A provocativa declaração do DCP foi programada para sair pouco antes do lançamento do DSM-5, a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, feito pela Associação Americana de Psiquiatria.

O manual está sendo atacado por expandir a gama de problemas de saúde mental que são classificados como transtornos. Por exemplo, a quinta edição do livro, que passou duas décadas sem ser atualizado, classifica manifestações de tristeza, achaques nervosos e preocupações com a falta de saúde física como sendo as doenças mentais chamadas "transtorno depressivo grave", "desregulagem perturbadora do humor" e "transtorno do sintoma somático", respectivamente.

Algumas das omissões do manual são tão polêmicas quanto as suas inclusões. O termo "síndrome de Asperger" não aparece no novo manual, e em vez disso seus sintomas aparecem sob o recém-incluído "transtorno do espectro do autismo".

O DSM é usado em graus variados em diversos países. A Grã-Bretanha usa um manual alternativo, a Classificação Internacional de Doenças (CID), publicada pela Organização Mundial da Saúde. O DSM, no entanto, ainda é enormemente influente - e polêmico.

O escritor Oliver James, formado em psicologia clínica, elogiou a decisão do DCP de se manifestar contra os diagnósticos psiquiátricos, e salientou a necessidade de trocar o modelo biomédico de perturbação mental por um que examine fatores sociais e pessoais.

Em recente artigo no "Observer", James declara: "Precisamos de mudanças fundamentais na forma como a nossa sociedade se organiza, para dar aos pais a melhor chance possível de atender às necessidades da criança e evitar tanta adversidade adulta".

Já o professor Simon Wessely, membro do Real Colégio de Psiquiatras e chefe do departamento de medicina psicológica do King's College, em Londres, disse que é errado sugerir que a psiquiatria está focada apenas nas causas biológicas das perturbações mentais. E, em outro texto do jornal, ele defende a necessidade de criar sistemas de classificação para os transtornos mentais.

"Um sistema de classificação é como um mapa", explica Wessely. "E, assim como qualquer mapa é apenas provisório, pronto para ser alterado à medida que a paisagem muda, o mesmo vale para a classificação."

terça-feira, 28 de maio de 2013

Questões de vida e morte - Tudo é sempre igual

Rembrandt Harmenszoon van Rijn: Autorretrato (detalhe)


Por Karl Ove Knausgard
Da Revista Piauí



Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para. Cedo ou tarde, mais dia, menos dia, cessa aquele movimento repetitivo e involuntário, e o sangue começa a escorrer para o ponto mais inferior do corpo, onde se acumula numa pequena poça, visível do exterior como uma área escura e flácida numa pele cada vez mais pálida, tudo isso enquanto a temperatura cai, as juntas enrijecem e as entranhas se esvaem. Essas transformações das primeiras horas se dão lentamente e com tal constância que há um quê de ritualístico nelas, como se a vida capitulasse diante de regras determinadas, um tipo de acordo de cavalheiros que os representantes da morte respeitam enquanto aguardam a vida se retirar de cena para então invadirem o novo território. Por outro lado, é um processo inexorável.

Bactérias, um exército delas, começam a se alastrar pelo interior do corpo sem que nada possa detê-las. Houvessem tentado apenas algumas horas antes, e teriam enfrentado uma resistência cerrada, mas agora tudo em volta está calmo, e elas avançam pelas profundezas escuras e úmidas. Chegam aos canais de Havers, às glândulas de Lieberkühn, às ilhotas de Langerhans. Chegam à cápsula de Bowman nos rins, à coluna de Clarke na medula, à substância cinzenta no mesencéfalo. E chegam ao coração. Ele continua intacto, mas se recusa a pulsar, atividade para a qual toda a sua estrutura foi construída. É um cenário desolador e estranho, como uma fábrica em que os trabalhadores tivessem sido obrigados a evacuar às pressas, os veículos parados a projetar a luz amarela dos faróis na escuridão da floresta, os galpões abandonados, os vagões carregados sobre os trilhos, um atrás do outro, estacionados na encosta da montanha.

No exato instante em que a vida abandona o corpo, ele passa para os domínios da morte. As lâmpadas, as malas, os tapetes, as maçanetas, as janelas. A terra, os campos, os rios, as montanhas, as nuvens, o céu. Nada disso nos é estranho. Estamos permanentemente rodeados por objetos e fenômenos do mundo dos mortos. Ainda assim, poucas coisas nos causam mais desconforto do que ver alguém preso a essa condição, ao menos se julgarmos pelos esforços que empreendemos para manter os cadáveres longe dos nossos olhos. Nos grandes hospitais eles não são apenas escondidos em ambientes isolados, os corredores que levam até eles são ermos, com elevadores e acessos privativos, e, mesmo que acidentalmente topemos com eles, serão apenas corpos empurrados sobre macas, sempre cobertos por lençóis. Quando deixam o hospital, fazem-no por uma saída própria e são transportados em carros com vidros escurecidos, nas igrejas são velados em salões sem janelas, durante o funeral estão em caixões lacrados, até afundarem numa cova ou serem consumidos no calor de um forno.

Difícil enxergar um objetivo prático em tudo isso. Os cadáveres poderiam muito bem, por exemplo, ser conduzidos descobertos pelos corredores dos hospitais e transportados em táxis comuns sem representar risco a quem quer que fosse. O homem idoso que morre numa sessão de cinema poderia, da mesma forma, permanecer no seu assento até o filme terminar, ou durante a sessão seguinte. O professor que sofre um ataque súbito e tomba no pátio da escola não tem necessariamente que ser retirado dali no mesmo instante, não faz mal nenhum que o corpo continue no chão até que o zelador tenha tempo de cuidar dele, ainda que mais para o fim da tarde, talvez mesmo à noite. Se um pássaro decidir pousar sobre ele para bicá-lo, que diferença fará? Porventura o destino que o aguarda na cova será melhor somente porque não o presenciaremos?

Contanto que o corpo não esteja bloqueando uma rua, não é preciso pressa, pois ele não vai morrer outra vez. Nesse caso, os dias de frio extremo no inverno são especialmente propícios. Mendigos que morrem congelados em bancos de praça ou debaixo de marquises, suicidas que saltam de prédios altos ou de pontes, senhoras idosas que despencam de escadarias, vítimas presas nas ferragens de veículos, o garoto embriagado que cai na água depois de uma noitada na cidade, a garotinha que vai parar debaixo do pneu de um ônibus, por que a pressa em ocultá-los? Decoro? O que seria mais decoroso que permitir ao pai e à mãe daquela garota encontrá-la uma ou duas horas mais tarde, deitada na neve ao lado do local do acidente, a cabeça esmagada tão visível quanto o restante do corpo, o cabelo empapado de sangue e o casaco imaculado? A céu aberto, sem segredos, do jeito que estava. Mas mesmo uma hora na neve é impensável.

Uma cidade que não mantenha seus mortos longe dos olhos, que os deixe jazer nas ruas e calçadas, parques e estacionamentos, não é uma cidade, e sim um inferno. Não importa que esse inferno reflita de modo mais realista e profundo nossa conduta. Sabemos que ela é assim, mas nos recusamos a encará-la. Eis o ato coletivo de repressão simbolizado no ocultamento dos nossos mortos.

O que exatamente está sendo reprimido não é, porém, tão fácil dizer. A morte em si não pode ser, pois sua presença na sociedade é grande o bastante. O número de mortes diariamente anunciado nos jornais ou mostrado nos noticiários de tevê varia conforme as circunstâncias, mas a média anual tende a ser uma constante, e, sendo divulgado por tantos meios de comunicação, é impossível ignorá-lo. Essa morte, contudo, não parece ameaçadora. Ao contrário, é algo que nos apetece, pagamos de bom grado para vê-la. Se acrescentarmos a enorme quantidade de mortes produzidas pela ficção, torna-se ainda mais difícil entender o sistema que mantém os mortos longe dos nossos olhos.

Se o fenômeno da morte não nos assusta, por que o desconforto diante de um cadáver? Isso pode significar que ou há dois tipos de morte ou há uma contradição entre nossa concepção de morte e a morte como ela é de fato, o que no fim dá na mesma: o que importa aí é que nossa concepção de morte está tão entranhada na nossa consciência que não só nos abalamos ao perceber que a realidade diverge dela, mas também procuramos ocultar isso de todas as maneiras. Não por algum tipo de vontade consciente, como ocorre com as cerimônias fúnebres, cuja forma e conteúdo hoje em dia são discutíveis, e portanto passaram da esfera do irracional para a do racional, do coletivo para o individual, não, o modo como nos desfazemos de cadáveres jamais foi objeto de discussão, apenas esse é o modo como temos agido, diante de uma necessidade cuja razão ninguém sabe explicar, mas que todos intuem: se seu pai morre no gramado durante uma forte ventania na manhã de um domingo de outono, você o carrega para dentro de casa se conseguir, caso contrário ao menos o cobre com uma manta.

Porém, esse impulso não é o único que temos em relação aos mortos. Tão evidente quanto o impulso de esconder corpos é o fato de que precisamos levá-los para o térreo o mais rápido possível. É quase inconcebível um hospital que transporte seus cadáveres para o topo do prédio, um hospital em que as câmaras refrigeradas e as salas de necropsia estejam situadas nos andares mais altos. Os mortos são mantidos o mais perto possível do térreo. E o mesmo princípio é válido para as empresas que se encarregam deles: uma seguradora pode muito bem ter seus escritórios no 8º andar, mas uma funerária jamais. Todas as funerárias funcionam o mais próximo possível do nível da rua. Por que deve ser assim é difícil dizer, poderíamos ser tentados a acreditar que isso se baseou numa antiga convenção, a qual inicialmente tinha uma razão prática, o frio do porão, por exemplo, mais adequado para conservar corpos, e que esse princípio durou até nossa era de refrigeradores e câmaras frias, não fosse a noção de que transportar cadáveres para o alto de edifícios parece algo contrário às leis da natureza, como se altura e morte fossem incompatíveis. Como se fôssemos tomados por uma espécie de instinto ctônico, algo no nosso íntimo que nos compele a guiar a morte à terra de onde viemos.

Pode, portanto, parecer que a morte se divide em dois sistemas distintos. Um é associado ao ocultamento e à discrição, à terra e à escuridão, o outro tem a ver com a abertura e a leveza, com o éter e a luz. Um pai e seu filho são mortos quando o pai tenta resgatar a criança da linha de tiro numa cidade qualquer do Oriente Médio, e a imagem dos dois abraçados enquanto os projéteis atravessam a carne, fazendo chacoalhar seus corpos por assim dizer, é capturada pelas câmeras, transmitida para um dos milhares de satélites em órbita na Terra, e ganha as telas de tevê do mundo, de onde penetra em nossa consciência como mais uma imagem da morte ou de moribundos. Essas imagens não têm peso, profundidade, tempo ou lugar, nem têm ligação alguma com os corpos dos quais provêm. Não estão em lugar nenhum e estão em todos os lugares. A maioria delas apenas passa por nós e se vai, algumas poucas, por razões insondáveis, permanecem nos recantos escuros do nosso cérebro.

Uma esquiadora amadora cai e uma artéria da sua coxa se rompe, o sangue escorre deixando uma trilha vermelha na colina branca, ela morre bem antes de a descida do corpo cessar. Um avião decola, as chamas irrompem das asas assim que ele ganha altura, o avião explode numa bola de fogo atrás dos telhados das casas emoldurados pelo azul do céu. Certa noite, um barco pesqueiro afunda no norte da Noruega, sete membros da tripulação morrem afogados, na manhã seguinte o acidente é notícia em todos os jornais, e é considerado um mistério, o tempo estava bom e nenhum chamado de emergência partiu do barco, ele simplesmente desapareceu, algumas estações de tevê deixaram isso bem claro naquela noite, sobrevoando em helicópteros o local da tragédia e exibindo imagens do mar vazio. O céu está nublado, apesar das ondas a água cinza-esverdeada está calma, como se tivesse um temperamento bem diferente da arrebentação, que espalha aqui e ali uma espuma branca pela superfície.

Sozinho eu assisto àquilo, num dia qualquer de primavera, acho, pois meu pai está cuidando do jardim. Fixo o olhar na superfície do mar, sem ouvir o que diz o repórter, e de repente emerge o contorno de um rosto. Não sei por quanto tempo ele permanece ali, segundos talvez, mas tempo suficiente para me causar um enorme impacto.

No mesmo instante em que o rosto desaparece, levanto-me e procuro alguém a quem contar o que vi. Minha mãe está no plantão noturno, meu irmão está jogando futebol, e as demais crianças da vizinhança não vão me dar ouvidos; então só resta papai, penso, e desço as escadas depressa, enfio os pés nos sapatos, os braços nas mangas do casaco, abro a porta e dou a volta na casa correndo. Estamos proibidos de correr no jardim; então, antes que ele possa me ver, diminuo a velocidade e passo a andar. Ele está nos fundos da casa, debaixo do que se tornará uma horta, batendo com uma marreta num afloramento de rocha. Embora o vão esteja a poucos metros de profundidade, a terra escura do solo que ele escavou e a densa mata de sorveiras que cresce atrás da cerca ao fundo parecem ter atraído toda a escuridão do crepúsculo para o nível do chão. Quando ele se ergue e vira para mim, seu rosto é quase uma sombra.

No entanto, isso é mais que suficiente para que eu saiba qual o seu estado de ânimo. Não se trata de algo que esteja nas suas expressões faciais, e sim na postura corporal, nem é à razão que recorro para descobri-lo, mas à intuição.

Ele deposita a marreta no chão e tira as luvas.

“E aí?”, diz.

“Acabei de ver na tevê um rosto no mar”, respondo, parado no gramado acima da cabeça dele. Pouco antes, o vizinho derrubou um pinheiro e o ar está tomado pelo forte aroma de resina que emana das achas empilhadas do outro lado do muro de pedra.

“Um mergulhador?”, pergunta papai. Ele sabe que me interesso por mergulho submarino, e não consegue imaginar outra coisa que me interessasse a ponto de eu sair de casa para lhe contar.

Balanço a cabeça.

“Não era uma pessoa. O que eu vi no mar foi uma espécie de imagem.”

“Uma espécie de imagem, é?”, diz ele, tirando do bolso da camisa um maço de cigarros.

Faço que sim com a cabeça e me viro para ir embora.

“Espere um pouco”, ele diz.

Acende um fósforo e inclina a cabeça na direção da chama, que lança uma pequena réstia de luz no crepúsculo cinzento.

“Muito bem”, diz.

Depois de uma tragada profunda, apoia um pé na rocha e olha para a floresta do outro lado da rua. Ou talvez para o céu acima das árvores.

“Foi Jesus que você viu?”, pergunta, voltando-se para mim. Não fosse o tom de voz amistoso e a longa pausa antes da pergunta, eu teria achado que ele estava zombando. Para ele é um tanto constrangedor o fato de eu ser cristão, só o que quer de mim é que eu não me isole dos outros garotos, e, entre todos os garotos da vizinhança, seu filho caçula é o único que se diz cristão.

Mas ele está falando sério.

Sinto um sopro de felicidade por ele se interessar de verdade, embora ainda me sinta um pouco ofendido pelo fato de me subestimar dessa forma.

Balanço a cabeça.

“Não foi Jesus que eu vi.”

“É quase um alívio ouvir isso”, diz papai, sorridente. Dá para ouvir o ruído de pneus de bicicleta rolando sobre o asfalto no alto da colina. O som aumenta, e tudo está tão quieto que podemos ouvir claramente o eco daquele ruído, e logo em seguida a bicicleta cruza a rua diante de nós.

Meu pai dá mais uma tragada antes de jogar o cigarro, fumado pela metade, por cima da cerca, e então tosse algumas vezes, calça as luvas e novamente empunha a marreta.

“Não pense mais nisso”, diz, olhando para mim.


Eu tinha 8 anos naquele fim de tarde, meu pai 32. Embora até hoje eu não possa afirmar que o compreendia ou sabia que tipo de pessoa ele era, o fato é que agora sou sete anos mais velho que ele na época, e isso torna mais fácil entender certas coisas. Por exemplo, como é abissal a diferença entre nossas vidas. Enquanto meus dias eram repletos de significado, cada passo levando a uma nova oportunidade, e cada oportunidade me preenchendo, de um jeito hoje difícil de entender, o significado dos seus dias não se limitava a eventos individuais, mas abrangia áreas tão extensas que não era possível compreendê-las senão em termos abstratos. “Família” era um; “carreira”, outro.

Poucas oportunidades, talvez nenhuma, se abriram para ele no decorrer da sua existência, ele tinha sempre que saber de antemão o que elas lhe trariam e como iria reagir. Fora casado por doze anos, trabalhara como professor de uma escola fundamental em oito deles, tivera dois filhos, uma casa e um carro. Elegera-se para a Câmara e fora escolhido representante do partido de esquerda no conselho municipal. Durante os meses de inverno ocupava-se da filatelia, não sem algum progresso: em pouco tempo se tornara um dos filatelistas mais destacados da região, enquanto nos meses de verão era a jardinagem que lhe tomava a maior parte do tempo livre.

Do que ele pensou daquele entardecer de primavera não faço a menor ideia, tampouco sei da imagem que tinha de si mesmo ao se erguer na escuridão empunhando uma marreta, mas estou convencido de que ele tinha a sensação de que compreendia muito bem suas circunstâncias. Conhecia todos os vizinhos e sabia qual a posição social que ocupavam em relação a ele, e imagino que também soubesse um pouco de assuntos que preferiam manter em segredo, tanto porque ele lecionava aos seus filhos como porque tinha um olho clínico para fraquezas alheias.

Como membro da nova classe média escolarizada, era igualmente bem informado sobre o mundo, que lhe chegava todos os dias via jornal, rádio e televisão. Dominava botânica e zoologia, pois tinha se interessado por essas disciplinas quando jovem e, embora não fosse muito versado nas demais ciências, lembrava-se dos fundamentos destas da época do ginásio. Saía-se melhor em história, que, a exemplo de norueguês e inglês, estudara na universidade. Em outras palavras, não era um expertem nada, exceto talvez em pedagogia, mas, enfim, sabia um pouco de tudo. Nesse aspecto era um professor típico, porém numa época em que lecionar numa escola fundamental conferia certo status.

O vizinho do outro lado do muro de pedra, Prestbakmo, era professor da mesma escola, assim como o que morava no alto da colina repleta de árvores atrás da nossa casa, Olsen, enquanto um dos vizinhos que morava no fim do anel viário, Knudsen, era o supervisor de ensino de outra escola fundamental. Então, quando meu pai erguia a marreta acima da cabeça e a deixava cair sobre a rocha naquele entardecer de primavera da metade da década de 70, fazia isso num mundo que conhecia bem e que lhe inspirava confiança. Somente ao atingir aquela mesma idade eu fui entender que é preciso pagar um preço por isso. Quando sua perspectiva de mundo se amplia, não mitiga apenas a dor que acarreta, mas também o sentido dessa dor.

Compreender o mundo requer que se mantenha uma certa distância dele. Ampliamos aquilo que é pequeno demais para ser visto a olho nu, como moléculas e átomos, enquanto minimizamos grandezas como formações de nuvens, deltas de rios, constelações. Somente ao trazer as coisas para a dimensão dos nossos sentidos é que somos capazes de fixá-las. E a essa fixação chamamos conhecimento. Ao longo de toda a infância e juventude lutamos para manter a distância adequada das coisas e fenômenos. Lemos, aprendemos, experimentamos, corrigimos. E aí um dia chegamos ao ponto em que todas as distâncias de que necessitamos foram determinadas, todos os sistemas de que necessitamos foram estabelecidos. É quando o tempo começa a passar mais rápido. Ele não encontra mais obstáculos, tudo está determinado, o tempo se esvai pela nossa vida, os dias passam num piscar de olhos, e, antes que nos demos conta do que está acontecendo, completamos 40, 50, 60 anos...



***



Hoje é dia 27 de fevereiro de 2008. São 23h43. Eu, Karl Ove Knausgård, nasci em dezembro de 1968, portanto, no instante em que escrevo, tenho 39 anos de idade. Tenho três filhos, Vanja, Heidi e John, e sou casado pela segunda vez, com Linda Boström Knausgård. Os quatro estão dormindo nos quartos ao meu redor, num apartamento em Malmö, onde há um ano e meio fixamos moradia. Porém, exceto por alguns pais das crianças da escola de Vanja e Heidi, não conhecemos ninguém por aqui. Isso não faz falta, ao menos para mim, a vida social não me traz nada.

Nunca expresso o que realmente penso, o que realmente quero dizer, mas sempre concordo mais ou menos com o que meu interlocutor diz, finjo que o que ele diz me interessa, a não ser quando bebo, nesse caso costumo agir de maneira oposta e acordar no dia seguinte com a sensação de ter ultrapassado os limites, algo que só tem aumentado com o passar dos anos, e agora pode se prolongar por semanas. Quando bebo, minha mente se turva e perco totalmente o controle sobre minhas ações, que com frequência se tornam desesperadas e idiotas, mas sobretudo desesperadas e perigosas. Por isso parei de beber.

Não quero que se aproximem de mim, não quero que me vejam, e é assim que as coisas têm sido: ninguém se aproxima e ninguém me vê. É isso que deve ter ficado gravado no meu rosto, é isso que deve tê-lo feito tão duro e com aspecto de máscara, é quase impossível associá-lo a mim mesmo quando me acontece de deparar com ele numa vitrine de loja.



A única coisa que não envelhece no rosto são os olhos. Têm o mesmo brilho no dia em que nascemos e no dia em que morremos. Seus vasos sanguíneos podem se romper, é verdade, e as córneas podem se tornar baças, mas sua luz jamais se modifica. Existe uma pintura em Londres que, toda vez que a vejo, mexe comigo. É um autorretrato do Rembrandt velho. As pinturas tardias de Rembrandt em geral se caracterizam por uma crueza sem precedentes, e nelas tudo se subordina à expressão do momento, a um só tempo reluzente e sagrado, e continuam sem paralelo nas artes, com a possível exceção do patamar que Hölderlin atingiu nos seus poemas tardios, não importa quão diferentes e incomparáveis sejam, pois naquilo que a luz de Hölderlin, expressa através da linguagem, é etérea e celestial, a luz de Rembrandt, expressa através da cor, é terrena, metálica e material, mas precisamente esse quadro, exposto na National Gallery, foi pintado com um certo realismo clássico, mais próximo da realidade, semelhante ao estilo do jovem Rembrandt. Porém, o que o quadro retrata é o Rembrandt velho. É a senectude. Todos os detalhes da face, todos os traços nela impressos pela vida, são mostrados. O rosto é enrugado, cheio de vincos, sem viço, maltratado pelo tempo. Mas os olhos brilham e, embora não sejam jovens, parecem imunes ao tempo que imprimiu sua marca no rosto. É como se outra pessoa olhasse para nós de algum lugar dentro do rosto, onde tudo é diferente. Aproximar-se mais que isso de outra alma humana é difícil. Pois tudo que concerne à pessoa de Rembrandt, seus bons hábitos e seus vícios, os odores e sons de seu corpo, sua voz e expressão, seus pensamentos e opiniões, sua conduta, suas características físicas e defeitos, tudo que distingue um ser humano de outros, já não está ali, o quadro tem mais de trezentos anos, e Rembrandt morreu no mesmo ano em que ele foi pintado, então o que o quadro retrata, o que Rembrandt pintou, é a essência desse ser, aquilo para o qual ele despertava a cada manhã, que logo ocupava seus pensamentos mas não era propriamente um pensamento, que ele sentia primeiro mas não era exatamente um sentimento, e aquilo que a cada noite o fazia adormecer, até que certo dia para sempre.

Aquilo que num ser humano o tempo não atinge e de onde provém o brilho dos olhos. A diferença entre esse quadro e os outros que o Rembrandt velho pintou é a diferença entre ver e ser visto. Isto é, nessa pintura ele se vê ao mesmo tempo que é visto, e sem dúvida só no barroco, com seu jogo de espelhos, play within the play, a vida no palco e a crença na inter-relação de todas as coisas, quando o engenho humano atingiu um nível jamais visto, nem antes nem depois, é que tal pintura foi possível. No entanto, ela existe na nossa época, e é através de nós que ela vê.



Na noite em que Vanja nasceu, durante várias horas ela fixou o olhar em nós. Seus olhos eram como duas lanternas negras. O corpo coberto de sangue, o cabelo comprido emplastado na cabeça, e, quando ela se mexia, era com os movimentos lentos de um réptil. Mais parecia uma criatura da floresta, deitada sobre a barriga de Linda, nos fitando. Não conseguíamos extrair nada nem dela nem daquele olhar. Mas o que ele encerrava? Placidez, seriedade, escuridão. Mostrei a língua, um minuto transcorreu, então ela mostrou sua língua. Nunca houve tanto futuro na minha vida como então, nunca tamanha alegria.

Hoje ela tem 4 anos, e tudo está diferente. Seus olhos são alertas, alternando ciúme e felicidade com a velocidade de uma piscadela, tristeza e raiva, ela está preparada para o mundo e pode ser tão insolente que eu perco completamente a cabeça e às vezes grito com ela ou lhe dou umas sacudidas até que comece a chorar, embora costume apenas rir. A última vez que isso aconteceu, a última vez que fiquei zangado a ponto de lhe dar uma sacudida e ela apenas riu, tive a presença de espírito de pôr a mão sobre seu peito.

Seu coração batia forte. Ah, como batia.



Agora são oito e cinco da manhã. É dia 4 de março de 2008. Estou no escritório, cercado de livros do chão ao teto, ouvindo a banda sueca Dungen e refletindo sobre o que escrevi e aonde isso vai levar. Linda e John dormem no quarto ao lado, Vanja e Heidi estão na escolinha, onde as deixei faz meia hora. O enorme hotel Hilton ainda está escuro, seus elevadores sobem e descem pelos três andares envidraçados. Bem ao lado há um prédio de tijolos vermelhos que, a julgar pelos balcões, arcos e águas-furtadas, deve ser do fim do século XIX ou começo do XX. Mais atrás, pode-se vislumbrar o parque Magistrats, com suas árvores e seu gramado verde, onde uma casa cinza, em estilo eclético, bloqueia a visão e a conduz em direção ao céu, que pela primeira vez em várias semanas está limpo e azul.

Depois de morar aqui durante um ano e meio, conheço bem essa paisagem e tudo que ela expressa no correr dos dias, mas não me sinto ligado a ela. Nada do que vejo aqui significa algo para mim. Talvez fosse exatamente isso que eu estivesse procurando, pois existe alguma coisa que me atrai nessa ausência de vínculo, talvez eu até precise dela, mas não foi uma escolha consciente. Há seis anos eu residia e escrevia em Bergen e, embora não tivesse a intenção de passar o resto da vida ali, também não nutria planos de abandonar nem a cidade nem a mulher com quem vivia. Ao contrário, planejávamos ter filhos, talvez nos mudar para Oslo, onde eu escreveria alguns romances e ela continuaria sua carreira em rádio e tevê.

Mas o futuro que prevíamos, o qual não passava de um prolongamento do nosso presente, com sua rotina diária e refeições com amigos e conhecidos, suas viagens de férias e visitas a pais e sogros, tudo adornado com o sonho de ter filhos, não resultou em nada. Algo aconteceu, e de um dia para outro me mudei para Estocolmo, primeiro para ficar algumas semanas, e de repente aquilo se tornou minha vida. Não apenas a cidade e o país se modificaram, mas também todas as pessoas. Se isso parece estranho, mais estranho ainda é o fato de eu jamais ter refletido sobre isso. Como vim parar aqui? Por que teve de ser assim



Quando cheguei a Estocolmo, conhecia duas pessoas, nenhuma delas muito bem: Geir, a quem conhecera em Bergen e vira durante poucas semanas na primavera de 1990, portanto doze anos antes, e Linda, a quem encontrara num seminário para escritores novatos em Biskops-Arnö na primavera de 1999. Enviei um e-mail para Geir perguntando se poderia dividir a residência com ele enquanto não arranjasse um local para morar, ele respondeu que sim, e então pus um anúncio nos classificados de dois jornais suecos.

Recebi mais de quarenta respostas, das quais selecionei duas. Uma era na rua Bastu, a outra na Brännkyrk. Depois de analisá-las, me decidi pela última, até bater os olhos na lista de inquilinos no hall de entrada, onde estava escrito o nome de Linda. Quais as probabilidades de isso ocorrer? Estocolmo tem mais de 1 milhão e meio de habitantes. Se o apartamento tivesse chegado até mim por intermédio de amigos ou conhecidos, as chances teriam sido muito maiores, pois todos os círculos literários são relativamente pequenos, não importa o tamanho da cidade, mas eu havia chegado até ele por meio de um classificado anônimo, um entre centenas de milhares, e, claro, a proprietária que respondeu ao anúncio não conhecia nem a mim nem a Linda. A partir de então decidi que seria melhor ficar com o outro apartamento, pois, se escolhesse aquele, Linda talvez achasse que eu a estava assediando. Mas era um sinal. Que se provou acertado, pois agora sou casado com Linda e ela é a mãe dos meus três filhos. Agora é ela a mulher com quem divido a vida.

O único rastro visível da minha vida anterior são os livros e discos que ficaram comigo. Todo o resto eu deixei para trás. E, se antes passei um bom período remoendo o passado, talvez um período doentiamente longo, me ocorre agora, o que implica não apenas ter lido Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, mas quase ter submergido no romance, hoje o passado mal aparece em meus pensamentos. Acredito que a principal razão disso são as nossas crianças, já que a vida cotidiana com elas preenche todos os espaços. Mesmo o passado mais recente elas se encarregam de pôr de lado: pergunte-me o que fiz há três dias e eu não vou lembrar. Pergunte-me como Vanja era há dois anos, Heidi há dois meses, John há duas semanas, e não vou lembrar.

Muita coisa acontece no nosso diminuto dia a dia, tudo sempre obedecendo à mesma rotina. Isso, mais que qualquer coisa, alterou minha percepção do tempo. Enquanto antes eu via o tempo como um trecho do percurso e o futuro como uma meta distante, promissora na melhor das hipóteses, ou ao menos jamais entediante, ele agora está entrelaçado com o aqui e agora de maneira totalmente diversa. Se tivesse que representar isso com uma imagem visual, ela seria a de um barco num dique: a vida vai, lenta e inelutavelmente, sendo erguida pelo tempo que jorra de todos os lados. A não ser pelos detalhes, tudo é sempre igual. E, a cada dia que passa, aumenta o desejo pelo momento em que a vida chegará ao topo, o momento em que as comportas se abrem e ela enfim toma seu rumo. Ao mesmo tempo eu me conscientizo de que essa repetição, essa reclusão, essa imutabilidade são necessárias, elas me protegem, pois, nas poucas vezes em que as abandonei, as antigas mazelas retornaram.

De súbito me vi tomado por toda sorte de pensamentos sobre o que se disse, o que se viu, o que se pensou, como se tivesse sido arrastado para o ambiente incontrolável, estéril e na maioria das vezes degradante em que vivi durante tantos anos. Lá existe igualmente uma nostalgia, um sentimento tão forte quanto o que existe aqui, com a diferença de que lá esse sentimento tem um propósito realizável, aqui não. Aqui tenho que encontrar outros propósitos e me contentar com eles. À arte de viver é que estou me referindo. No papel isso não é problema, nele posso facilmente conceber uma imagem de Heidi, por exemplo, pulando do berço às cinco da manhã e cambaleando pelo chão da casa no escuro, segundos antes de acender a luz, parar diante de mim, semiacordado e mal a enxergando, e dizer Cozinha! Sua fala ainda é idiossincrática: as palavras têm um significado diferente, e “cozinha” quer dizer müsli com iogurte de mirtilo. Da mesma forma, velas significam “Feliz aniversário!”. Heidi tem olhos grandes, boca grande, um apetite enorme, é uma criança ávida em todos os sentidos, e a felicidade robusta e autêntica que demonstrou no seu ano e meio de vida foi eclipsada, este ano, pelo nascimento de John, por emoções desconhecidas até então. Nos primeiros meses ela aproveitou quase todas as oportunidades que teve para tentar machucá-lo. Cicatrizes de arranhões no rosto dele eram mais regra que exceção.

Quando voltei para casa depois de uma viagem de quatro dias a Frankfurt, no outono, John parecia ter acabado de chegar de uma guerra. Foi difícil, porque não queríamos separá-los, então passamos a tentar decifrar o humor de Heidi e, conforme fosse, controlar seu acesso a John. Mas, mesmo que ela estivesse muito bem-humorada, de repente sua mão o atingia com um tapa ou um arranhão. Além disso, ela passou a embirrar com uma intensidade tal que eu julgaria impossível apenas dois meses antes, ao mesmo tempo também veio à tona uma vulnerabilidade insuspeita: ao menor indício de austeridade no meu tom de voz ou no meu comportamento, ela abaixava a cabeça, dava as costas para mim e se punha a chorar, como se desejasse nos mostrar sua raiva e ocultar seus sentimentos. Quando escrevo estas linhas, sou tomado por uma ternura enorme para com ela. Mas aqui é o papel. Na realidade, quando isso ocorre de fato, ela parada diante de mim de manhã, tão cedo que as ruas estão desertas e não se ouve um som sequer na casa, ela empolgada com o raiar de mais um dia, eu tentando me manter em pé, vestindo as roupas da véspera e acompanhando-a até a cozinha, onde a esperam o iogurte de mirtilo e o müsli sem açúcar, não é ternura que sinto, e, quando ela ultrapassa meus limites, por exemplo, ao me irritar seguidamente durante um filme ou tentando entrar no quarto onde John está dormindo, em resumo, toda vez que se recusa a aceitar um não como resposta, prolongando uma situação ao infinito, não raro minha irritação se transforma em raiva, e, quando lhe dou uma bronca e lágrimas escorrem pelo seu rosto e ela abaixa a cabeça e encolhe os ombros, acho que ela teve o que mereceu.

A constatação de que ela tem apenas 2 anos não encontra espaço na minha mente até o cair da noite, quando eles estão dormindo e eu fico pensando por que agi daquele modo. Mas este sou eu observando tudo de fora. Quando estou imerso naquilo, não tenho a menor chance. O que importa então é conseguir chegar à manhã seguinte, as fraldas que precisam ser trocadas a cada três horas, as roupas que precisam ser vestidas, o desjejum que precisa ser servido, os rostos que precisam ser lavados, os cabelos que precisam ser penteados e presos, os dentes que precisam ser escovados, as brigas que precisam ser apartadas, os tapas que precisam ser evitados, os aventais e as botas que precisam ser colocados, antes que eu, levando o carrinho duplo dobrável numa das mãos e tentando conduzir as duas meninas com a outra, entre no elevador, que não raro ecoa o barulho das birras e brigas na descida até o térreo, saia no hall, onde as faço sentar no carrinho e ponho suas luvas e gorros, e caminhe pela rua, já lotada de gente que vai para o trabalho, para dez minutos depois deixá-las na escolinha, e assim ter as cinco horas seguintes livres para escrever, até que a exigente rotina das crianças assuma novamente o controle.

Sempre tive uma grande necessidade de estar sozinho, preciso ter meu quinhão de isolamento, e, quando não consigo, como nos últimos cinco anos, a frustração que surge pode às vezes se transformar em pânico ou agressividade. E, quando aquilo que me levou para a frente durante toda a vida adulta, a ambição de um dia escrever algo brilhante, de algum modo se vê ameaçado, meu único pensamento, que me corrói as entranhas, é o de que preciso fugir. O tempo está escapando de mim, escorrendo entre meus dedos como areia, enquanto eu... faço o quê?Limpo o chão, lavo roupa, preparo o jantar, faço faxina, compras, brinco com as crianças em playgrounds, trago-as para casa, dou banho nelas, cuido delas até a hora de dormir, ponho-as na cama, penduro roupas no varal, dobro outras e guardo nas gavetas, arrumo a casa, arrumo a mesa, cadeiras e armários. É uma luta, embora nada heroica, é uma luta contra uma força superior, pois, não importa o quanto eu trabalhe em casa, os quartos ficam desarrumados e sujos, e as crianças, que não perco de vista quando estão acordadas, são as mais teimosas que jamais vi, há momentos em que a casa se transforma num verdadeiro hospício, talvez porque nunca tenhamos conseguido atingir o equilíbrio necessário entre distância e intimidade, tanto mais importante quanto mais fortes as personalidades envolvidas. E aqui temos um bom punhado delas.

Quando Vanja estava com uns 8 meses, passou a ter violentos acessos de raiva, às vezes semelhantes a convulsões, por algum tempo era impossível nos aproximarmos, ela gritava sem parar. A única coisa que podíamos fazer era segurá-la até que ela cedesse. O que provocava isso não é fácil precisar, mas acontecia com mais frequência depois que ela era exposta a estímulos novos, como, por exemplo, quando viajamos para visitar sua avó nos arredores de Estocolmo e ela brincou bastante com outras crianças, ou quando passeamos o dia inteiro pela cidade. Então, aflita e fora de si, ela berrava a plenos pulmões, incansavelmente. Não é simples conciliar sensibilidade e obstinação. E as coisas não ficaram mais fáceis para ela quando Heidi nasceu.

Eu gostaria de poder dizer que mantinha o domínio da situação, mas lamento não poder fazê-lo, pois minha raiva e meus sentimentos também eram postos à prova nessas situações, que se intensificavam, com frequência em público: acontecia de eu, em minha fúria, erguê-la do chão, onde desabara em pleno shopping center em Estocolmo, jogá-la sobre os ombros como se fosse um saco de batatas e carregá-la pelas ruas, enquanto ela esperneava, me batia e uivava como se estivesse possuída. Às vezes eu reagia aos seus uivos gritando de volta, sacudindo-a na cama e segurando-a até que aqui-lo terminasse, fosse o que fosse que a estivesse atormentando. Ela mal tinha aprendido a andar e já sabia exatamente o que me deixava louco, um tipo particular de grito, não era um choro, nem um soluço, nem um berro, mas um grito sem causa aparente, direcionado, agressivo, que me tirava completamente do sério, eu me levantava e no instante seguinte estava diante da pobre garota, sacudindo-a até que seus gritos se convertessem em lágrimas, seu corpo amolecesse e ela aceitasse ser confortada.

Em retrospecto, percebo como ela, com apenas 2 anos de existência, exerceu uma enorme influência em nossa vida. Só o que importava era aquilo que ela fazia. Isso, claro, não diz nada sobre ela, mas diz tudo sobre nós. Tanto Linda como eu vivemos perto do caos, ou de uma sensação de caos, tudo podia ruir a qualquer momento, e tínhamos que nos limitar às demandas da vida com crianças pequenas. Não fazíamos planos. Até a compra do jantar era uma surpresa a cada dia. As contas que deviam ser pagas no fim do mês eram outra. Não fossem alguns depósitos esporádicos feitos na minha conta, fruto de direitos autorais, vendas de clubes de livros ou, em menor quantidade, de livros didáticos, ou ainda, como neste outono, a segunda parcela de honorários estrangeiros que eu havia esquecido, e teríamos fracassado.

Mas essa improvisação constante só aumenta a importância do momento, que, claro, com o passar do tempo vai se tornando extremamente significativo, uma vez que nada nele é automático, e durante os momentos prazerosos, que naturalmente também existem, nossos laços afetivos são fortalecidos, numa felicidade intensa. Ah, como irradiamos alegria. As crianças se enchem de vida e ficam instintivamente propensas à felicidade, o que nos dá uma energia extra e ficamos bem com elas, e elas esquecem as birras em alguns segundos.

A parte penosa de tudo isso é saber que só ficar bem com elas não tem a menor importância quando estou preso numa espécie de areia movediça, arrastado por uma torrente de lágrimas e frustração. E cada gesto meu serve apenas para me fazer afundar cada vez mais. E tão penoso quanto isso é saber que estou lidando com crianças. Que são crianças que estão me fazendo afundar. E isso é profundamente humilhante. Em tais situações me sinto por demais distante de quem desejo ser. Não tinha consciência de nada disso antes de ter filhos. Achava que tudo estaria bem se eu fosse bom para eles. O que é mais ou menos verdade, mas nenhuma das minhas experiências anteriores me preveniu da invasão de privacidade que ter filhos implica. A intimidade extrema que temos com eles, a maneira como nosso temperamento e humor, por assim dizer, se mesclam aos deles, tanto que nossos defeitos deixam de ser particulares, não podem mais ser encobertos, mas de certo modo assumem uma forma exterior e se voltam contra nós.

O mesmo vale, claro, para nossas qualidades. Pois, exceto quando a pressão chegou ao limiar do insuportável, logo após o nascimento de Heidi e em seguida o de John, quando nossa vida escapou dos eixos e degenerou em momentos de crise pura e simples, a vida deles hoje é constituída em bases estáveis e seguras, e, mesmo que às vezes eu perca a paciência e os repreenda, eles confiam em mim e procuram minha companhia sempre que precisam. Não há nada de que gostem mais do que sair em família, algo que para eles se converte numa aventura: uma ida até Västra Hamnennum dia ensolarado, cortando caminho pelo parque, onde uma pilha de lenha é suficiente para entretê-los por meia hora, andando em seguida ao lado dos iates ancorados na marina, logo depois almoço nas escadas do píer, panini de um café italiano próximo, desnecessário mencionar que nem havíamos planejado fazer piquenique, e, depois de tudo, mais uma hora correndo, brincando e se divertindo, Vanja correndo do seu jeito típico, ziguezagueante, revelado quando ela completou 1 ano e meio, Heidi atabalhoada e entusiasmada 2 metros atrás da irmã mais velha, ansiosa por aqueles raros momentos de companhia, antes de tomarmos o rumo de volta para casa.

Se acontecer de Heidi cair no sono no carrinho, sentamos num café com Vanja, que adora estar sozinha conosco, com sua limonada, falando sem parar e fazendo todas as perguntas possíveis: por que o céu não cai, se não dá para impedir a chegada do outono ou se macacos têm esqueleto. A sensação de felicidade que experimento não me ocorre exatamente como um turbilhão, está mais próxima do prazer e da tranquilidade, não importa, tudo é felicidade. Em certos momentos, talvez, seja até êxtase.

E isso não é o bastante? Não é o bastante? Sim, se o objetivo fosse a felicidade, seria o bastante. Mas a felicidade não é meu objetivo, jamais foi, para que vou querê-la? Tampouco a família é meu objetivo. Se fosse, poderia devotar a ela toda a minha energia, seria fantástico, não tenho dúvidas. Poderíamos morar num lugar qualquer da Noruega, esquiar e patinar no inverno, carregando lanches e garrafas térmicas na mochila, velejar no verão, mergulhar, pescar, acampar, viajar com outras famílias para o exterior nas férias, ter uma casa arrumada, passar mais tempo na cozinha preparando receitas deliciosas, aproveitar o tempo com amigos, felizes e contentes. Ah, tudo isso pode soar caricato, mas todo dia eu vejo famílias que conseguem funcionar dessa maneira. As crianças são limpas, vestem-se com elegância, os pais são felizes e, embora às vezes levantem a voz, jamais se portam como idiotas com elas. Viajam nos fins de semana, alugam casas na Normandia no verão, e suas geladeiras jamais ficam vazias. Trabalham em bancos ou hospitais, empresas de informática ou na administração municipal, no teatro ou em universidades. Por que eu, um escritor, devo ser excluído desse mundo? Por que eu, um escritor, tenho que empurrar carrinhos de bebê que mais parecem ter sido encontrados no lixo? Por que eu, um escritor, tenho que chegar à escolinha com os olhos injetados e o rosto transformado numa máscara de frustração? Por que eu, um escritor, tenho que deixar nossos filhos fazerem tudo que lhes dá na telha, não importam as consequências?

De onde vem essa bagunça que tomou conta da nossa vida? Sei que posso mudar tudo isso, sei que podemos ser uma família daquelas, basta querer e a vida se encarregará do resto. Mas não quero. Faço tudo que posso pela família, é meu dever. Resistir é a única coisa que a vida me ensinou, sem jamais fazer perguntas, incendiando toda essa angústia através da escrita. Não faço a menor ideia de onde vem esse ideal e, quando o vejo diante de mim, preto no branco, acho tudo um tanto perverso: por que o dever antes da felicidade?

A pergunta sobre a felicidade é banal, mas não a que se segue, a pergunta sobre o sentido. Meus olhos se enchem de lágrimas quando olho para uma bela pintura, mas não quando olho para os meus filhos. Isso não significa que não os ame, pois os amo do fundo do coração, significa apenas que o que eles me trazem não é suficiente para dar sentido à vida. Ao menos não à minha. Logo vou completar 40 anos, ao completá-los logo terei 50. Aos 50, logo terei 60. Aos 60, 70. E pronto, acabou.




segunda-feira, 27 de maio de 2013

Quando as lembranças nos pregam peças


Por Oliver Sacks
Tradução Clara Allain
Do The New York Review of Books


RESUMO Nem sempre as lembranças mais vivas correspondem a situações vividas: podem ser herdadas de outros ou fruto de "reconfiguração" pela mente. O mecanismo é explicado com base em casos de plágio, autoplágio, "criptomnésia" ("plágio" inconsciente) e sugestionabilidade em sessões de tortura e acusações de pedofilia.

*

É espantoso perceber que algumas de nossas recordações mais queridas talvez nunca tenham acontecido --ou talvez tenham acontecido com outra pessoa. Desconfio de que muitos de meus entusiasmos e impulsos, que parecem ser inteiramente meus, tenham nascido das sugestões de outros que me influenciaram, de modo consciente ou não, e depois foram esquecidas.

De modo semelhante, embora eu volta e meia faça palestras sobre tópicos similares, jamais consigo me lembrar exatamente do que disse em ocasiões anteriores, nem suporto reler notas antigas.

Ao perder a memória consciente do que disse antes e não tendo texto em que me basear, descubro meus tópicos novamente a cada vez, e eles volta e meia me parecem novos em folha. Esse tipo de esquecimento talvez seja necessário para uma criptomnésia criativa ou saudável, que permita que pensamentos velhos sejam reunidos, retranscritos, recategorizados e imbuídos de novos significados.

Ocasionalmente esses esquecimentos chegam a constituir autoplágio: eu me pego reproduzindo expressões ou orações inteiras como se fossem novas, e isso às vezes pode ser agravado por esquecimento genuíno. Relendo velhos cadernos, descubro que muitos pensamentos ali anotados foram esquecidos por anos e então retrabalhados como se fossem novos.

Desconfio de que esse tipo de esquecimento atinja a todos e que isso seja especialmente comum nas pessoas que escrevem, pintam ou compõem, pois a criatividade talvez exija tais esquecimentos para que nossas memórias e ideias possam renascer e ser vistas em novos contextos e perspectivas.

O dicionário "Webster" define "plagiar" como "roubar ou fazer passar por nossas (as ideias ou palavras de outro): usar (a produção de outro) sem citar a fonte [...] cometer roubo literário: apresentar como sendo nova e original uma ideia ou um produto derivado de uma fonte existente".

Existe uma sobreposição considerável entre essa definição e a de "criptomnésia". A diferença essencial é que o plágio, conforme é comumente entendido e reprovado, é consciente e intencional, enquanto a criptomnésia não é nem uma coisa nem outra. Talvez o termo "criptomnésia" precise ser mais bem conhecido, pois, embora possamos falar em "plágio inconsciente", a própria palavra "plágio" é tão moralmente carregada, tão sugestiva de delito e logro que conserva seu tom repreensível, mesmo que seja "inconsciente".

Em 1970, George Harrison compôs uma canção que foi um sucesso enorme, "My Sweet Lord", que, conforme se descobriu, guardava grandes semelhanças com uma canção de Ronald Mack ("He's So Fine"), gravada oito anos antes. Quando o caso foi a julgamento, o juiz considerou Harrison culpado de plágio, mas demonstrou "insight" psicológico e empatia na súmula que fez. Ele concluiu:

"Harrison utilizou propositalmente a música de 'He's So Fine'? Não creio que ele o tenha feito de caso pensado. Não obstante [...] trata-se, segundo a lei, de infração de direitos autorais, e não deixa de sê-lo, mesmo que tenha sido cometida de modo subconsciente."

Helen Keller foi acusada de plágio quando tinha apenas 12 anos de idade. 1 Apesar de ter sido surda e cega desde pequena e de ignorar a linguagem até conhecer Anne Sullivan, aos seis anos, tornou-se escritora prolífica depois de aprender datilologia e braille.

Quando menina, escreveu um conto intitulado "The Frost King" (O rei da geada), que deu a uma amiga como presente de aniversário. Quando o conto saiu numa revista, os leitores logo perceberam que ele guardava várias semelhanças como "The Frost Fairies" (As fadas da geada), conto infantil de Margaret Canby.

A admiração por Helen Keller converteu-se em repreensão, e Keller foi acusada de plágio e falsidade proposital, apesar de afirmar não ter nenhuma lembrança de ter lido o conto de Canby e de achar que tinha criado a história. A pequena Helen foi sujeita a uma inquisição implacável que a deixou marcada pelo resto da vida.

Mas ela também teve defensores, entre os quais a plagiada Margaret Canby, que se surpreendeu ao saber que um conto "escrito" com o dedo sobre a mão de Helen três anos antes pudesse ser recordado ou reconstruído por ela com tantos detalhes. "Que mente maravilhosamente atenta e retentiva essa criança talentosa deve ter!", Canby escreveu. Alexander Graham Bell se manifestou em defesa de Keller, dizendo: "Nossas composições mais originais são feitas exclusivamente de expressões derivadas de outros".2

Na realidade, a mente e a imaginação notáveis de Helen não teriam podido se desenvolver e tornar-se tão férteis quanto foram sem se apropriarem da linguagem alheia. Talvez, de modo geral, sejamos todos dependentes dos pensamentos e das imagens de outros.

A própria Helen disse, fazendo referência a tais apropriações, que a probabilidade de ocorrerem era maior quando os livros eram traçados sobre suas mãos, sendo suas palavras recebidas passivamente. Ela disse que às vezes, quando isso era feito, ela não conseguia identificar ou lembrar-se da fonte, nem mesmo, por vezes, lembrar se o material vinha de fora dela ou não. Esse tipo de confusão raramente ocorria quando ela lia ativamente, usando o Braille e movendo seu próprio dedo pelas páginas.

Coleridge

A questão dos plágios, paráfrases, criptomnésias ou apropriações feitas por Samuel Taylor Coleridge intriga estudiosos e biógrafos há quase dois séculos e é especialmente interessante em vista de sua memória prodigiosa, seu gênio imaginativo e seu senso de identidade complexo, multiforme, por vezes atormentado. Ninguém o descreveu com mais beleza que Richard Holmes, em sua biografia em dois volumes do poeta.

Coleridge era um leitor voraz e onívoro, que parecia reter tudo. Há descrições dele, estudante, lendo "The Times" de modo casual e depois sendo capaz de reproduzir o jornal inteiro "ipsis litteris", incluindo os anúncios. "No jovem Coleridge", Holmes escreve, "isso é realmente parte de seu dom: uma enorme capacidade de leitura, uma memória retentiva, o talento de falador para recriar e orquestrar ideias de outras pessoas e o instinto natural de um palestrante e pregador para colher materiais onde quer que os encontrasse."

A apropriação literária era comum no século 17 --Shakespeare apropriava-se livremente de criações de muitos de seus contemporâneos, e John Milton fazia o mesmo. 3 A apropriação amigável continuou a ser comum no século 18, e tanto Coleridge como William Wordsworth e Robert Southey se apropriaram de materiais uns dos outros, chegando até mesmo, segundo Holmes, a publicar trabalhos sob os nomes uns dos outros.

Mas algo que era comum, natural e feito em espírito de brincadeira na juventude de Coleridge foi pouco a pouco assumindo uma forma mais inquietante, especialmente em relação aos filósofos alemães (sobretudo Friedrich Schelling), que Coleridge "descobriu", venerou, traduziu e, por fim, acabou utilizando de modo extraordinário. Páginas inteiras da "Biographia Literaria" de Coleridge consistem em trechos de Schelling reproduzidos "ipsis litteris" e não reconhecidos como tais.

Embora esse comportamento prejudicial e aberto tenha sido pronta (e redutivamente) qualificado como "cleptomania literária", o que aconteceu de fato é complexo e misterioso, como Holmes estuda no segundo volume de sua biografia, em que ele vê os plágios mais evidentes de Coleridge como tendo ocorrido num período devastadoramente difícil de sua vida, quando ele tinha sido abandonado por Wordsworth, estava paralisado por ansiedade profunda e dúvidas quanto a seu próprio valor intelectual e se encontrava mais profundamente dependente do ópio do que nunca. Nesse momento, escreve Holmes, "os autores alemães lhe proporcionavam apoio e conforto; numa metáfora que ele próprio empregava com frequência, Coleridge os enlaçava, como a hera enlaça o carvalho".

Antes disso, na descrição de Holmes, Coleridge tinha descoberto outra afinidade extraordinária, esta pelo escritor alemão Jean-Paul Richter --afinidade que o levou a traduzir e transcrever os escritos de Richter e então a deslanchar a partir deles, modificando-os à sua própria maneira e, em seus cadernos de anotações, dialogando com Richter. Em alguns momentos as vozes dos dois homens se misturam de tal maneira que se tornam quase indistinguíveis. [...]

Freud era fascinado pelos lapsos e deslizes de memória que ocorrem no cotidiano e por sua relação com a emoção, especialmente a emoção inconsciente; mas ele também foi obrigado a considerar distorções de memória muito mais grosseiras manifestadas por alguns de seus pacientes, especialmente quando relatavam que teriam sido seduzidos ou que teriam sofrido abuso sexual na infância.

De início ele interpretou todos esses relatos literalmente, mas, com o tempo, quando pareceu que havia poucas evidências ou plausibilidade em vários casos, começou a se perguntar se as recordações não poderiam ter sido distorcidas pela fantasia e se algumas delas não poderiam, na realidade, ser inteiramente fantasiosas, construídas inconscientemente, mas de modo tão convincente que os próprios pacientes acreditassem totalmente nelas.

As histórias que os pacientes contavam e tinham contado a si mesmos poderiam ter um efeito muito poderoso sobre suas vidas, e pareceu a Freud que a realidade psicológica dessas histórias poderia ser igual, quer elas viessem de experiências reais ou de fantasias.

Em nossa época, as descrições e acusações de abuso na infância alcançaram proporções quase epidêmicas. Muita importância é atribuída às chamadas memórias recuperadas --memórias de experiências tão traumáticas que foram reprimidas defensivamente e então, com terapia, libertadas da repressão. As formas particularmente sombrias e fantásticas disso incluem descrições de rituais satânicos de alguma espécie, com frequência acompanhados por práticas sexuais coercitivas.

Vidas e famílias foram devastadas por acusações dessa natureza. Mas foi demonstrado, pelo menos em alguns casos, que tais descrições podem ser insinuadas ou plantadas por outros. Aqui, a combinação frequente de uma testemunha sugestionável (muitas vezes uma criança) com uma figura de autoridade (talvez um terapeuta, professor, assistente social ou investigador) pode ser especialmente poderosa.

Tortura

Desde a Inquisição e os julgamentos das bruxas de Salem até os julgamentos soviéticos da década de 1930 e Abu Ghraib, variedades de "interrogatório extremo" ou tortura física e mental pura e simples vêm sendo empregadas para extrair "confissões" políticas ou religiosas.

Embora tais interrogatórios possam ter como objetivo inicial extrair informações, suas intenções mais profundas talvez sejam promover uma lavagem cerebral, efetuar uma mudança genuína de pensamentos, preencher a mente com memórias implantadas, autoincriminadoras, e nisso eles podem ter êxito assustador. 4

Mas talvez não seja preciso recorrer à sugestão coercitiva para afetar as memórias de uma pessoa. Depoimentos de testemunhas oculares são notoriamente sujeitos à sugestão e ao erro, muitas vezes com efeitos altamente nocivos aos acusados sem razão. 5

Com o advento dos exames de DNA, hoje é possível, em muitos casos, encontrar corroboração ou refutação objetivas de tais depoimentos, e Schacter observa que "uma análise recente de 40 casos em que provas de DNA apontaram a inocência de indivíduos erroneamente encarcerados revelaram que 36 desses casos (90%) envolveram a identificação equivocada feita por testemunhas oculares".

Se os últimos 30 anos foram marcados pelo surgimento ou ressurgimento de síndromes de memória e identidade ambíguas, também levaram a pesquisas importantes --forenses, teóricas e experimentais-- sobre a maleabilidade da memória.

A psicóloga e pesquisadora da memória Elizabeth Loftus documentou um sucesso inquietante na implantação de memórias falsas através da mera sugestão feita a um sujeito de que ele teria passado por um acontecimento fictício.

Esses pseudoeventos, inventados por psicólogos, podem variar desde incidentes cômicos ou incômodos leves (de que uma pessoa se perdeu num shopping quando era criança, por exemplo) até incidentes mais graves (que alguém foi vítima de um ataque grave de um animal ou de uma agressão grave por outra criança).

Depois do ceticismo inicial ("Nunca me perdi num shopping") e, em seguida, da incerteza, o sujeito pode passar a nutrir uma convicção tão profunda que continuará a insistir sobre a veracidade da memória implantada, mesmo após o autor do experimento revelar que o incidente nunca aconteceu.

O que fica claro em todos esses casos é que --quer se trate de abusos imaginados ou reais na infância, de memórias genuínas ou experimentalmente implantadas, de testemunhas induzidas ao engano ou de prisioneiros submetidos a lavagem cerebral, de plágio inconsciente ou das memórias falsas que todos nós provavelmente temos, baseadas em confusão quanto às fontes ou em atribuição equivocada--, na ausência de confirmação externa, não existe uma maneira fácil de distinguir uma memória ou inspiração genuína, sentida como tal, daquelas que foram apropriadas ou sugeridas; de distinguir entre o que o psicanalista Donald Spence descreve como "verdade histórica" e "verdade narrativa".

Mesmo que seja exposto o mecanismo subjacente a uma memória falsa [...], isso pode não modificar a sensação de uma experiência vivida de fato ou a realidade que tais recordações possuem.

Tampouco as contradições óbvias ou o caráter absurdo de determinadas memórias pode modificar o sentimento de convicção e de crença nelas. Na maioria dos casos, pessoas que afirmam terem sido abduzidas por extraterrestres não mentem quando contam como foram levadas até naves espaciais de alienígenas, não mais do que mentem quando têm consciência de terem inventado uma história: algumas creem genuinamente que foi isso o que aconteceu.

Uma vez construída tal narrativa ou memória, acompanhada de imagens sensoriais vívidas e de emoção forte, pode não haver jeito psicológico, interno, nem externo, neurológico, de distinguir o que é verdadeiro do que é falso.

As correlações fisiológicas dessa memória podem ser examinadas com neuroimagiologia funcional, e as imagens mostram que memórias vívidas produzem ativação ampla no cérebro, envolvendo áreas sensoriais, emocionais (límbicas), e executivas (lobo frontal) --padrão que é virtualmente idêntico, quer a "memória" seja baseada numa experiência, quer não.

Parece que não existe, nem na mente nem no cérebro, nenhum mecanismo para garantir a verdade de nossas recordações, ou pelo menos o caráter verídico delas. Não temos acesso direto à verdade histórica, e aquilo que sentimos ou afirmamos como sendo verdadeiro (como Helen Keller estava em ótima posição para observar) depende tanto de nossa imaginação quanto de nossos sentidos.

Não existe um modo pelo qual os acontecimentos do mundo possam ser transmitidos ou gravados diretamente em nossa mente; eles são experimentados e construídos de modo altamente subjetivo, que é diferente em cada indivíduo, para começar, e reinterpretado ou revivido diferentemente a cada vez que são recordados. (O neurocientista Gerald M. Edelman costuma falar em apreender como sendo "criar" e em lembrar como sendo "recriar" ou "reclassificar".)

Com frequência nossa única verdade é a verdade narrativa, as histórias que contamos uns aos outros e a nós mesmos --histórias que reclassificamos e refinamos sem cessar. Essa subjetividade está embutida na própria natureza da memória e decorre de seus mecanismos e bases no cérebro. O que surpreende é que aberrações grosseiras sejam relativamente raras e que, na maior parte do tempo, nossas memórias sejam relativamente sólidas e confiáveis.

Nós, seres humanos, carregamos sistemas de memórias que têm pontos falhos, fragilidades e imperfeições, mas que também possuem grande flexibilidade e criatividade. A confusão sobre fontes ou a indiferença a elas podem representar uma força paradoxal: se pudéssemos rotular as fontes de todos nossos conhecimentos, ficaríamos submersos em informações em muitos casos irrelevantes.

A indiferença às fontes nos permite assimilar o que lemos, o que nos é dito, o que outros dizem, pensam, escrevem e pintam com tanta intensidade e riqueza como se fossem experiências primárias. Ela nos permite enxergar e ouvir com outros olhos e ouvidos, penetrar em outras mentes, assimilar a arte, ciência e religião da cultura inteira, penetrar na mente comum e contribuir para ela, para a comunidade geral do conhecimento.

Essa espécie de partilha e participação, essa comunicação não seria possível se todos os nossos conhecimentos, as nossas memórias, fossem rotulados e identificados, vistos como privados, exclusivamente nossos. A memória é dialógica e nasce não só da experiência direta, mas também da intercomunicação de muitas mentes.

Notas

Originalmente publicado no jornal "The New York Review of Books". O título, "Speak, Memory", alude às memórias de Vladimir Nabokov, "Speak, Memory", publicadas no Brasil como "A Pessoa em Questão" (Cia. das Letras). (Nota do Editor)

1. Esse episódio é relatado de modo detalhado e empático por Dorothy Herrmann em sua biografia de Keller, "Helen Keller: A Life" (University of Chicago Press, 1998).

2. Mark Twain escreveu mais adiante a Helen Keller: "Quão indizivelmente engraçada e absurdamente idiota e grotesca foi aquela farsa do 'plágio'! Como se existisse muito de qualquer coisa na expressão humana que não seja plágio!... Pois, substancialmente, todas as ideias são de segunda mão, consciente e inconscientemente tiradas de um milhão de fontes externas."

De fato, o próprio Mark Twain tinha cometido um roubo inconsciente desse tipo, conforme descreveu em um discurso no 70º aniversário de Oliver Wendell Holmes: "Oliver Wendell Holmes... foi... o primeiro grande homem literário de quem eu roubei alguma coisa --e foi assim que eu acabei escrevendo a ele e ele a mim. Quando meu primeiro livro ainda era recente, um amigo me disse: 'Essa dedicatória é muito boa'. Sim, falei, eu achava que era. Meu amigo falou: 'Sempre a admirei, mesmo antes de vê-la em "The Innocents Abroad"'.

Naturalmente, eu disse: 'Como assim? Onde você a viu antes?'

'Bem, eu a vi primeiramente alguns anos atrás como a dedicatória escrita pelo Doutor Holmes em suas "Songs in Many Keys".'

Bem, naturalmente, eu escrevi ao dr. Holmes e lhe disse que não tinha tido a intenção de roubar, e ele escreveu de volta, e, nos termos mais gentis, me disse que não havia problema e que não tinha sido feito nenhum mal; e acrescentou acreditar que todos nós inconscientemente retrabalhamos ideias recebidas ao ler e ouvir, imaginando que sejam originais nossas."

3. "The Cambridge History of English and American Literature" diz a respeito de Milton: "Os caçadores de paralelos, plágios e fontes se deram a trabalho enorme [...] para demonstrar que Milton imitou, apropriou-se de ou, desse modo ou daquele, seguiu o 'Adamo' de [...] Andreini (1613), o 'Lucifer' [...] de [...] Vondel (1654), o 'Adamus Exul' de Grotius (1601), 'Du Bartas' (1605), de Sylvester, e até mesmo Caedmon. [...] Supondo que Milton tivesse lido todos esses livros, 'Paradise Lost' ainda seria obra de Milton; e é absolutamente certo não apenas que ninguém mais poderia ter construído 'Paradise Lost' a partir dessas outras obras, mas que um comitê composto pelos autores delas, cada um deles em seu melhor veio e trabalhando juntos como jamais colaboradores conseguiram trabalhar, não teria chegado nem sequer a uma distância mensurável de 'Paradise Lost' ou de Milton."

4. O tema da lavagem cerebral ou subjugação de um homem, com a desorganização forçada de sua memória, é ilustrada de modo assustador no romance "1984", de George Orwell, e no filme "Prisioneiro do Remorso", com Alec Guinness.

5. "O Homem Errado", de Alfred Hitchcock (o único filme de não ficção que o diretor fez), documenta as consequências apavorantes de uma identificação equivocada baseada no relato de uma testemunha ocular.



sexta-feira, 24 de maio de 2013

Segredos que não interessam



Por Michel Laub
Da Revista Literatura Hoje

Cada pessoa tem sua escala de valores, que obedece tanto a princípios elevados quanto ao bom e velho fígado. Na minha, quem vaza correspondência privada é a escória. Não há vingança conjugal, surto psicótico ou senso infantil de justiça que desculpe esse que é o mais covarde dos ataques. Algo que acompanhará o atingido para sempre, sem chance de defesa do que muitas vezes parece ser --e nem sempre é-- uma confissão vexaminosa.

O caso de Graciliano Ramos, que terá cartas inéditas publicadas este ano, é diferente. Não há ataque nem vexame. A reunião dos textos parece ter sido feita com rigor e boa-fé. Dá para evocar o interesse público envolvido, o mesmo que autoriza divulgar segredos quando estes ajudam a explicar a atuação política de um governante. Ou o processo criativo de um artista consagrado e morto, as influências em sua obra, a cultura da época em que atuou.

Tudo parte do jogo, e melhor corrigir eventuais excessos com medidas judiciais a posteriori do que apelar para a solução Roberto Carlos (veto prévio, que na prática equivale a censura). Não estou discutindo o direito dos herdeiros e das editoras de publicar o que quiserem, mesmo textos que o autor preferiu manter na gaveta. O gancho do ineditismo, tão ao gosto da imprensa e do mercado, é sempre mais forte do que a reafirmação das qualidades de um romance clássico.

Penso é nas leituras equivocadas que podem surgir quando a intimidade é exposta dessa forma. Segundo reportagem da Folha, a imagem do tímido e sisudo Graciliano é desmentida por cartas que o mostram "gregário e cordial". Também generoso nos elogios, "inclusive a novos escritores que ele tinha fama de afugentar".

Talvez haja sinceridade aí. Por experiência que imagino ser comum a quem se expressa por escrito, porém, é o tipo de texto que talvez não devesse ser tomado pelo valor de face. Imaginem se cada mensagem que enviamos, usando recursos aprimorados em anos de proximidade com os destinatários, entre eles o sarcasmo, o exagero, a construção de personas só decodificáveis por uma dúzia de amigos, fosse submetida ao julgamento público de quem não conhece os envolvidos e/ou suas referências.

Enganos desse tipo seriam mais prováveis em textos de 2013, até pela forma como o gênero epistolar mudou depois do surgimento do e-mail e do chat. As banalidades que ajudam a firmar uma relação pessoal, incluindo piadas mais arriscadas, que soam grotescas se interpretadas literalmente, são mais fáceis de serem contextualizadas em tempo real, esclarecendo de imediato os mal-entendidos, do que em cartas que demoravam semanas para terem resposta --e por isso exigiam de seu autor mais densidade e cuidado.

Mesmo assim, não estou convencido de que uma correspondência dos anos 1930 ou 1950 despreze ferramentas de linguagem para tentar chegar a efeitos semelhantes. Afinal, a escrita é teoricamente capaz de transmitir qualquer ideia e sentimento. Sei lá se Graciliano era de fato simpático e generoso. Nenhuma chance de cinismo aí? Nem de ironia entre amigos? Nem de uma personalidade expansiva no texto para compensar a inadequação social fora dele?

Uma biografia alentada, que confronta os pontos de vista de dezenas de fontes, inclusive escritos do biografado, poderia chegar perto de uma resposta.

Espero que as cartas de Graciliano compensem isso de algum modo. Mesmo se enviadas, quem sabe, por obrigação afetiva ou profissional. Difícil um escritor com alguma estrada não fazer elogios falsos e inofensivos, por exemplo, para se livrar de interlocutores indesejáveis ou não ferir o ego de pessoas queridas.

Existem lançamentos editoriais demais e tempo de menos. Nada posso contra isso, exceto fazer minhas escolhas solitárias de consumidor. De Graciliano eu li "Angústia" e "Vidas Secas". Os próximos títulos da lista continuarão sendo os que ele escolheu tornar públicos. Ali está a essência do escritor: suas melhores qualidades, suas melhores fraquezas, a parte mais interessante do seu caráter.

É por isso tudo que lembramos dele, e não por supostos segredos que (ao menos para mim) não interessam. 


quinta-feira, 23 de maio de 2013

40 frases venenosas de grandes personalidades



Da Revista Bula
Por Carlos William Leite


Uma seleção de 40 frases célebres de personalidades de díspares perfis, nacionalidades e épocas — venenosas, mal humoradas, engraçadas ou cruéis —, as frases revelam o olhar preciso e ferino de seus autores sobre os temas abordados. A autenticidade de cada frase foi checada para não incorrer nos risco das falsas atribuições em meio a profusão de textos apócrifos e equívocos relativos à autoria. A seleção traz nomes como H. L. Mencken, Ambrose Pierce, Ernest He­mingway, Nelson Ro­drigues, Voltaire, Paulo Francis, Otto Von Bismarck, Woody Allen, Robert Benchley, J. Pierpont Mor­gan, Simone de Beauvoir, além provérbios e frases autorais, que foram emprestadas às personagens e obras por intermédio de seus criadores.

Eis, as 40 frases escolhidas.

— O adultério é a democracia aplicada ao amor.
H. L. Mencken

— Todo homem decente se envergonha do governo sob o qual vive.
H. L. Mencken

— A guerra é a forma de Deus ensinar geografia aos americanos.
Ambrose Pierce

— Se as duas pessoas se amam, não pode haver final feliz.
Ernest Hemingway

— Qualquer idiota consegue ganhar a vida representando. Ora, Shirley Temple já fazia isso aos 4 anos!
Katharine Hepburn

— A cama é a ópera dos pobres.
Provérbio italiano

— Todo canalha é magro.
Nelson Rodrigues

— O casamento é a única aventura ao alcance dos covardes.
Voltaire

— Todos os casamentos são felizes. Tentar viver juntos depois é que causa os problemas.
Shelley Winters

— Os baianos invadiram o Rio para cantar “Ó, que saudades eu tenho da Bahia…. ”Bem, se é por falta de adeus, PT saudações.
Paulo Francis

— O filme é uma merda, mas o diretor é genial.
Paulo Francis

— Ser da classe média é achar Godard o máximo.
Paulo Francis

— Quando ouço falar em ecologia, saco logo meu talão de cheques.
Paulo Francis

— A ignorância é a maior multinacional do mundo.
Paulo Francis


— Todo homem se torna a coisa que mais despreza.
Robert Benchley

— Deus não existe e, se existe, não é muito confiável.
Woody Allen

— O que importa não é o fato, mas a versão.
José Maria Alkmin

— Se você tem de perguntar quanto custa, é porque não pode comprar.
J. P. Morgan

— A velhice é a paródia da vida.
Simone de Beauvoir

— Só há uma coisa mais rara do que uma primeira edição de certos autores: uma segunda edição.
Franklin P. Adams

— As pessoas nunca mentem tanto quanto depois de uma caçada, durante uma guerra ou antes de uma eleição.
Otto Von Bismarck

— A mulher ideal é sempre a dos outros.
Stanislaw Ponte Preta

— Abraço e punhalada a gente só dá em quem está perto.
Otto Lara Resende

— Todas as coisas de que gosto ou são imorais e ilegais ou engordam.
Alexander Woollcott

— De vez em quando um homem inocente é escolhido para a legislatura.
Kin Hubbard

— A filosofia é composta de respostas incompreensíveis para questões insolúveis.
Henry Brooks Adams

— Na política é difícil distinguir os homens capazes, dos homens capazes de tudo.
Henri Béraud

— A maneira mais fácil de ficar livre da tentação é ceder a ela.
Tristan Bernard

— Fez o melhor que podia — é porque não foi bom o bastante.
Arthur Koestler

— Aquele que se casa por dinheiro, tem pelo menos um motivo razoável.
Gabriel Laub

— Um conservador é um homem muito covarde para lutar e muito gordo para correr.
Elbert Hubbard

— O homem se desenvolve, melhora ou corrompe, mas não cria nada.
Antoine Fabre d’Olivet

— Aplique o marxismo em qualquer país e você sempre encontrará um gulag no final.
Bernard-Henri Lévy

— O segredo do sucesso, nos negócios como no amor, é a dissimulação.
René Girard

— Nasce um otário a cada minuto.
P.T Barnum

— O patriotismo é o último refúgio dos canalhas.
Samuel Johnson

— Ao contrário do que se diz, pode-se enganar a muitos durante muito tempo.
James Thurber

— O objetivo do socialismo é elevar o nível de sofrimento.
Norman Mailer

— Perdoar, sim; esquecer, nunca.
John Kennedy



quarta-feira, 22 de maio de 2013

Uma nova biografia de Karl Marx, o vitoriano



Por Mario Sergio Conti
Da Revista Piauí

Desde a sua morte, há 130 anos, os estudos sobre Karl Marx tiveram um crescimento vigoroso. Como se procurava nos seus escritos o cerne crítico e revolucionário – apreender o mundo para superá-lo –, tais estudos atualizaram o marxismo. Psicanálise, estética, filosofia, história e, é claro, política – não houve disciplina que não fosse subvertida pelo materialismo dialético (expressão, aliás, que o próprio Marx nunca escreveu).

Do outro lado, do lado daqueles para quem o mundo e a vida não deveriam ser transformados, Marx significava subversão. Logo, o que ele fora, pensara e fizera devia ser negado. O Capital? Obra ideológica, com nenhum rigor científico dos verdadeiros economistas. O Manifesto Comunista? Receita direta para os horrores do stalinismo.

Em 1989, a situação mudou. Mais com festa que com lamúria, o comunismo tombou com a queda do Muro de Berlim. Dois anos depois, a desagregação da União Soviética marcou o fim das disputas entre os dois lados. O mundo de Marx estava morto. Inclusive no seu aspecto materialista mais comezinho: o Instituto de Marxismo–Leninismo, com sedes em Moscou e Berlim Oriental, encarregado de publicar a edição crítica das suas obras completas, deixou de existir.

Nem por isso jogou-se a pá de cal sobre o cadáver do comunista. Com o impulso do chanceler alemão Helmut Kohl, conservador insuspeito mas historiador de formação, a edição das obras completas prosseguiu. Ela é conduzida por um comitê de acadêmicos de várias nacionalidades. É um trabalho de vulto e meritório que, no entanto, bota as ideias de Marx no seu devido lugar: num museu de coisas muito mortas.

Lançada há pouco nos Estados Unidos, uma biografia feita pelo americano Jonathan Sperber é produto desse contexto histórico. Seu subtítulo diz tudo: Uma Vida do Século XIX. Não se trata de encarar Marx como personagem do mundo contemporâneo, mas de vê-lo como um produto da era vitoriana. Assim sendo, Sperber, que é historiador na Universidade do Missouri, dá maior importância ao indivíduo Marx que às suas ideias.

Karl Marx é fascinante mesmo assim. A biografia se beneficia de um sem-número de trabalhos – publicados em teses universitárias e revistas acadêmicas de circulação irrisória – que orbitam a edição das obras completas. Não existe neles a pressão subjacente aos livros das correntes políticas que se apresentavam como depositárias do marxismo, e tampouco a agressão oportunista dos detratores do filósofo alemão. Aprende-se muita coisa com a biografia. E, como o próprio Marx disse, saber é sempre superior a não saber.

Sperber dirime anacronismos. É absurdo afirmar, ele sustenta, que Marx era antissemita. A afirmação é feita à luz do extermínio dos judeus na Segunda Guerra Mundial e da criação de Israel. Quando fala da “extinção” dos judeus, no entanto, Marx está defendendo sua liberação: que eles tenham os mesmos direitos republicanos de qualquer cidadão, e acrescenta que eles só serão totalmente livres quando desaparecer a própria noção de minorias sociais.

O mesmo vale para o empenho de Marx, pater familias exemplar, em dar uma educação burguesa às filhas, que aprenderam línguas e piano enquanto viviam em cortiços londrinos. Considerá-lo um machista que se preocupava com as roupas e a virgindade das filhas é usar lentes de hoje e turvar o passado. Na verdade, Marx pelejava pela autonomia das filhas enquanto se havia com dívidas crônicas, o que não tinha nada de submissão aos costumes vigentes.

É com nuances, por fim, que Sperber conta como Marx teve um filho ilegítimo com a empregada da família, Helene Demuth, em 1851. As primeiras evidências do caso só se tornaram públicas mais de cem anos depois: Marx engravidou a moça e Engels assumiu a paternidade para evitar que Jenny – née baronesa Westphalen – se divorciasse de Marx. O menino, Frederick Demuth, foi criado por pais adotivos, tinha os traços e a tez escura do pai (cujo apelido era “Mouro”) e sabia de quem era filho. Dos sete filhos de Jenny e Marx, quatro morreram na infância, outra na idade adulta, e as duas que sobreviveram ao casal vieram a se suicidar. Só Frederick viveu pacata e anonimamente até a velhice. Morreu em 1929.

Em 2008, no auge da crise financeira que balançou o globo, The Times, o jornal megaconservador de Londres, publicou uma longa reportagem sobre Marx cujo título gritava “He’s back!”. Estava de volta aquilo que certa vez o papa Bento XVI chamou de “a grande habilidade analítica” de Marx.

Já a biografia de Sperber é mais atual quando investiga dois outros aspectos de Marx. Primeiro, quando fala da sua atividade jornalística. Além de ter sido editor de publicações alemãs, Marx durante anos analisou a situação política europeia para o New York Daily Tribune, o maior jornal americano de então.

Como editor, dinamizou revistas e fez com que tivessem repercussão e aumentassem a tiragem. Como correspondente, estava sempre em cima dos fatos, investigando-os a fundo. As publicações não eram suas nem espelhavam o que de fato pensava. Mas isso importava menos que a possibilidade de dizer algo, mesmo que truncado e limitado, sobre política, economia e filosofia.

O segundo aspecto, o mais importante, diz respeito ao que Marx viveu durante as revoluções europeias de 1848 (um processo com inúmeros pontos de contato com a Primavera Árabe) e a Comuna de Paris, em 1871. Ao se contemplar o que Marx fez na época, Sperber parece referir-se diretamente ao presente: a dispersão dos revolucionários, o poder crescente das forças da ordem e a desorientação geral.

Em meio ao caos econômico e à reação política, vigiado de perto pela polícia e com imensas dificuldades materiais, Marx segue o seu caminho, o do estudo engajado. O vento contrário da derrota movia o moinho do pensamento e da ação. O que fez com que, segundo Sperber, tivesse “uma vida repleta de emoções apaixonadas, intensas e defendidas com convicção forte, com enormes aspirações e reveses igualmente grandes, com adversidade e luta”.