terça-feira, 30 de abril de 2013

Igreja decide excomungar padre que defende homossexuais em SP

Mais de mil pessoas lotaram igreja em Bauru no domingo de manhã para se despedir das missas 
celebradas pelo Padre Beto

Por Cristina Camargo
Do Dignow

A Igreja Católica decidiu excomungar o padre de Bauru (a 329 km de São Paulo) que havia se afastado de suas atividades religiosas neste final de semana após declarações de apoio aos homossexuais.

A decisão da excomunhão foi divulgada pela Diocese de Bauru num comunicado publicado em seu site. O texto é assinado pelo Conselho Presbiteral Diocesano, formado por dez sacerdotes da cúpula do órgão.

Agora, o processo de excomunhão será tocado por um juiz instrutor até chegar ao Vaticano, onde funciona a última instância da igreja.

Conhecido por contestar os princípios morais conservadores da Igreja Católica, Roberto Francisco Daniel, 48, o padre Beto, realizou suas últimas missas neste domingo (28), em duas igrejas que ficaram lotadas de fiéis em clima de comoção.

Com a excomunhão, ele não pode participar de nenhuma cerimônia do culto católico, celebrar ou receber sacramentos --não pode mais batizar ou ser batizado, casar-se ou realizar um casamento, confessar-se ou ouvir confissões, por exemplo--, nem exercer cargos eclesiásticos.

Como membro desligado da Igreja Católica, ele também não recebe mais os benefícios dos cargos que tenha exercido, como pensão.

Ele havia recebido prazo do bispo de Bauru, Caetano Ferrari, 70, para se retratar e "confessar o erro" cometido em declarações divulgadas na internet nas quais afirma que existe a possibilidade de amor entre pessoas do mesmo sexo, inclusive por parte de bissexuais que mantêm casamentos heterossexuais.

Beto também questiona dogmas católicos e chama a atenção pelo estilo. Fora da igreja, usa piercing, anéis, camisetas com estampas "roqueiras" ou com a imagem do guerrilheiro comunista Che Guevara e frequenta choperias.

Mais de mil pessoas lotaram a igreja Santo Antônio, em Bauru, no domingo de manhã para se despedir das missas celebradas pelo Padre Beto que anunciou sua saída da igreja no sábado.

Após o ultimato, o religioso anunciou que iria se afastar de suas funções religiosas, mas disse que considerava a hipótese de voltar um dia.

"Se refletir é um pecado, sempre fui e sempre serei um pecador", afirmou. "Quem disse que um dogma não pode ser discutido? Não consigo ser padre numa instituição que no momento não respeita a liberdade de expressão e reflexão".

Ontem de manhã, ele tentou entregar o pedido de afastamento, mas foi informado sobre a excomunhão.

No comunicado, a diocese afirma que "uma das obrigações do bispo diocesano é defender a fé, a doutrina e a disciplina da igreja" e que, por isso, o padre "não pode mais celebrar nenhum ato de culto divino (sacramentos e sacramentais, nem mais receber a santíssima eucaristia), pois está excomungado".

O bispo convocou um padre canonista perito em Direito Penal Canônico e o nomeou como juiz instrutor para tratar a questão e aplicar a "Lei da Igreja". A partir da decisão da excomunhão, o juiz instrutor iniciará os procedimentos para a "demissão do estado clerical".

Ainda segundo o comunicado, o bispo tenta há muito tempo o diálogo para "superar e resolver de modo fraterno e cristão esta situação". Segundo a diocese, todas as iniciativas foram esgotadas. O juiz instrutor teria tentando mais uma vez o diálogo com o padre, mas Beto reagiu agressivamente e recusou a conversa, afirma a diocese.
 
O comunicado diz também que o padre "feriu a Igreja" ao fazer as declarações e ao negar "obediência ao seu pastor", o que resulta "no gravíssimo delito de heresia e cisma cuja pena prescrita no cânone 1364, parágrafo primeiro do Código de Direito Canônico é a excomunhão anexa a estes delitos".
A assessoria de imprensa da diocese informou que após a decisão nenhum pronunciamento será feito pelo bispo ou padres da diocese. O silêncio é uma determinação do juiz instrutor do processo.

Ao lado de uma advogada, Padre Beto procurou um cartório para registrar seu pedido de afastamento logo após ser informado sobre a excomunhão.

"Ainda bem que não tem fogueira", disse ao comentar de forma irônica a decisão do bispo. Padre Beto afirmou ainda que a decisão não vai mudar nada em sua vida, pois já havia decidido pelo afastamento da Igreja.


Não teremos sempre Paris


Por João Pereira Coutinho
Do Jornal Observe Bem

Richard Linklater é conhecido por qualquer pessoa com trinta e muitos, quarenta e poucos. Em 1995, Linklater dirigia "Antes do Amanhecer", e não houve adolescente com atividade hormonal regular que não tenha suspirado com o encontro amoroso entre o americano Jesse (Ethan Hawke) e a francesa Céline (Julie Delpy).

Ambos viajam sozinhos pela Europa. Ambos se encontram na mesma carruagem de trem. Amor à primeira vista, ou qualquer coisa assim do gênero. E quando o trem para em Viena, ele a convida para descerem e visitarem a cidade nas últimas horas que lhe restam antes de regressar a casa. Ela diz que sim.

O filme era apenas isso: a consequência desse sim. Feita de caminhadas e conversas e caminhadas e conversas. Não sei se a minha nostalgia sobre o filme está associada à beleza demasiado real de Julie Delpy ou ao raro milagre de ver dois seres humanos a falarem a mesma linguagem, apesar de não partilharem a mesma língua nativa.

O que sei é que, antes do amanhecer, eles despedem-se (depois das intimidades) e prometem reencontrar-se. Na mesma estação de trem, seis meses depois.

Era assim que os adolescentes de 1995 deixavam a sala de cinema: invejando a sorte alheia (no meu caso, a sorte de Ethan Hawke, que atingiu patamares ofensivos com o casamento com Uma Thurman) e perguntando se aqueles dois voltariam a encontrar-se em Viena.

Linklater respondeu nove anos depois com "Antes do Pôr do Sol". Mudou de cidade, não mudou de dueto: o encontro foi em Paris. Ele, nove anos mais velho. Como eu. Como nós. E de passagem pela cidade para promover o primeiro livro.

Ela lê algures que ele estará numa livraria algures. Aparece de surpresa. É a primeira vez que se veem desde a passeata em Viena. Sabemos depois que ele esteve na estação, como prometido, e que foi ela quem faltou ao encontro. Ah, os homens, os incorrigíveis homens.

Mas nove anos são nove anos. Ele casou entretanto. E foi pai entretanto. Ela não, mas isso pouco interessa. Porque o cardápio é repetido: caminhadas e conversas e caminhadas e conversas. Passaram nove anos, mas é como se tivessem passado nove minutos. O tempo corre diferente quando é vivido pelos verdadeiros amantes.

E, antes do pôr do sol, quando ele sabe que tem um voo à espera, ela começa a dançar na sala o "Just in Time" por Nina Simone e o filme termina com uma nova pergunta: ele parte ou fica? Não, minto. Aos trinta anos, a pergunta já não era essa. Era outra. Será que esse idiota não vai ficar?

Sabemos agora que o idiota ficou, que ambos ficaram, porque Linklater decidiu encerrar a trilogia em 2013. Assisti a "Antes da Meia Noite" no IndieLisboa, o excelente festival de cinema independente português. E a reação instintiva seria lamentar o fim de todas as perguntas que sustentavam os filmes anteriores.

Aos quarenta anos, com duas filhas e quase uma década de conjugalidade em cima, Jesse e Céline estão na Grécia. Curiosa escolha: a Grécia é hoje o símbolo da crise europeia, e a relação do casal está pouco melhor que o país.

Como nos versos do poeta, há no olhar de ambos ironias e cansaços. Viena e Paris não resistiram aos encantos do Peloponeso nem às pequenas guerrilhas do cotidiano.

O que ele foi obrigado a prescindir por causa dela. O que ela foi obrigada a prescindir por causa dele. Um clássico: nada perturba tanto as vidas que vivemos como as vidas que não vivemos. O psicanalista Adam Phillips, em livro recente, explica.

Mas seria injusto condenarmos Jesse e Céline como se fosse possível ter sempre Viena e Paris. Até porque existe alguma beleza nas ruínas. Não porque as ruínas são a expressão tangível do que se teve e perdeu. Mas porque elas são a expressão tangível do que sobreviveu.

Vinte anos depois, Jesse e Céline são dois sobreviventes. Juntos, apesar de tudo. E, por entre as tristezas momentâneas, há um sol de fim de tarde onde é possível vislumbrar, e até escutar, a perfeita sintonia que começou lá atrás, em Viena, quando todos viajávamos estupidamente livres e felizes.

Pedir mais talvez fosse pedir o impossível. Porque, no fundo, no fundo, quem deseja que a vida seja uma adolescência permanente nunca deixou verdadeiramente a adolescência.


segunda-feira, 29 de abril de 2013

Por que o governo coloca tanto dinheiro na Globo?

Interessa incentivar uma programação que vai dar em coisas como o BBB?


Por Paulo Nogueira
Do Diário do Centro do Mundo

Foram quase 6 bilhões de reais nos últimos dez anos em cima de uma lógica altamente discutível. Primeiro, a boa notícia: a transparência nos gastos com publicidade no governo.

Transparência é detergente: elimina muita sujeira.

Então seguem as palmas à Secretaria de Comunicação, a Secom, por detalhar onde o governo coloca seu dinheiro.

Depois, a má notícia: a lógica do investimento “técnico”, graças ao qual a Globo desde 2000 levou quase 6 bilhões de reais do governo, não se sustenta.

Presumo que, ao expor seus gastos à sociedade, a Secom esteja não só dando satisfações ao contribuinte mas, acima de tudo, propondo debate.

Vamos a ele.

A análise técnica não leva em consideração que, agindo como age, a Secom está perpetuando uma situação de monopólio construída em circunstâncias obscuras durante o governo militar.

Interessa alimentar o monopólio apenas porque ele é monopólio, ou você pode e deve corrigir situações em que a concorrência é desleal?

Se existe um consenso de que a desconcentração da mídia é essencial para a democracia, por que o governo, na publicidade, incentiva a concentração?

Como este incentivo cego e bilionário cabe dentro da lógica é essencial, para a democracia, que não exista monopólio na mídia?

O que aconteceu nos investimentos publicitários governamentais, nestes dez anos de PT, foi pegar uma situação – a de 2002 – e simplesmente encampá-la, sem nenhuma crítica.

A virtude da “isenção” ficou a serviço do vício.

Partiu-se de uma base que deve muito – quase tudo — a favores concedidos pelos governos militares a Roberto Marinho, “nosso mais fiel e constante aliado na mídia”, como se referiu a ele o ministro da justiça de Geisel, Armando Falcão.

Ora, se a base é viciada, trate de corrigi-la, em vez de perpetuá-la.

O governo não fez isso.

Por quê? Porque não viu, ou porque viu mas não teve coragem de fazer algo que certamente mobilizaria toda a capacidade formidável da Globo de retaliar em nome do, aspas, interesse público?

Cada qual fique com sua conclusão. Nenhuma das duas hipóteses é exatamente positiva.

Ouvi algumas pessoas dizerem que, do ponto de vista jurídico, é difícil alterar essa aberração. Ora. A isso contraponho Brecht. “Não aceite o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.”

Clap, clap, clap: nada deve parecer impossível de mudar.

O investimento cego ignora também o BV, a infame propina legal mas imoral com a qual a Globo mantém acorrentadas as agências de publicidade.

O BV foi mais uma invenção da Globo. Ela adianta o dinheiro que as agências vão colocar nela, e isso tem sido a principal fonte de renda muitas das agências.

Quem milita no meio corporativo jornalístico – eu fiz isso por 25 anos – sabe o veneno ético e moral representado pelo BV. Fora tudo, é uma agressão à luz do dia ao conceito de concorrência e meritocracia capitalista.

Será que nunca a sociedade brasileira vai se livrar desse tipo de mamata legalizada?

Sempre achei irônico o comportamento da mídia à concorrência predadora da Globo. Em meus anos na Abril, diversas vezes comentei o que para mim é bizarro: a maciça, exagerada, bovina cobertura dada à Globo. Quantas capas da Veja e páginas da Ilustrada  dedicadas a novelas emburrecedoras e medíocres que, como mostra o Ibope, vão marchando para o bem-vindo ostracismo? A Globo sempre pisou na concorrência, e recebeu, paradoxalmente, o oposto disso — louvores que só tornaram mais contundentes ainda as sucessivas pisadas.

Por fim, você faz tudo isso para dar no quê? Num jornalismo à Jabor, à Merval, à Ali Kamel? Em entretenimento como o BBB e as novelas que incentivam os brasileiros a se encher de cerveja em merchans multimilionários da Ambev e empurram o jogo de futebol para horários em que os típicos torcedores já estão exaustos?

Ou ainda: você faz isso para consolidar a posição dos três Marinhos na lista de bilionários da Forbes?

De toda forma, louve-se a publicação do Secom porque, sem ela, não seria possível discutir um assunto tão relevante para os brasileiros.


sexta-feira, 26 de abril de 2013

Espelho, espelho meu: existe alguém tão sem rosto quanto eu?



Por Graça Taguti
Da Revista Bula

 
Sinistro, definiria a gíria da galera jovem. Ou seria macabro? Talvez gótico expresse melhor a semântica dos espelhos, cuja polissemia perpassa campos distintos da cultura e das artes. Aonde se esconderam meus camuflados caleidoscópios psíquicos, encarregados de iluminar até as sombras de todos os mosaicos que habitam meu corpo, gestor máximo de uma catedral-pagã? O espelho traduz suas simbologias, participando de discursos poéticos, mitológicos, literários, religiosos e artísticos, entre outros.

Assume fartas conotações na metafórica agenda de possibilidades de que se constitui.
Espelho é interface — comunicação — passagem — janela — revelação — acesso — imersão — multiplicação — olho — retrato — fragmentação. Uma relação inegavelmente tensa entre o homem e sua própria imagem.

Na mitologia, podemos destacar “Metamorfoses”, do poeta romano Ovídio, que constitui o primeiro escrito a evocar o mito de Narciso — um jovem, excepcionalmente bonito e sedutor, que acaba se apaixonando, após mirar-se em uma fonte, pela própria imagem na água, supondo tratar-se de alguém, que não ele mesmo. De tanto contemplar-se, todavia, deixou-se morrer.

No “Dicionário dos Símbolos”, Jean Chevalier nos apresenta algumas acepções recolhidas da sinonímia dos espelhos: “o que reflete o espelho? A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência. Ele é, com efeito, símbolo da sabedoria e do conhecimento, sendo o espelho coberto de pó aquele do espírito obscurecido pela ignorância”.

Ainda na vertente da bruma metafórica, da confusão permanente em que os espelhos nos enredam, Cecília Meireles oferece seu poema “Retrato”: “Eu não tinha este rosto de hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro,/ nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo./Eu não tinha estas mãos sem força,/ tão paradas e frias e mortas/ eu não tinha este coração/ que nem se mostra/ Eu não dei por esta mudança/tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face?”.

Sylvia Plath, exponencial e melancólica poeta americana — que se despediu da vida aos 30 anos em 1963 — divaga ferozmente, diante da reluzente interface: “Sou prateado e exato./ Não tenho preconceitos. / Tudo o que vejo engulo imediatamente./ Do jeito que for, desembaçado de amor ou aversão./ Não sou cruel, apenas verdadeiro — O olho de um pequeno deus, de quatro cantos. (…) Agora sou um lago. Uma mulher se dobra sobre mim,/ Buscando na minha superfície o que ela realmente é. Então ela se vira para aquelas mentirosas, as velas ou a lua. (…) Sou importante para ela. Ela vem e vai./ A cada manhã é o seu rosto que substitui a escuridão. Em mim ela afogou uma menina, e em mim uma velha sobe em direção a ela dia após dia, como um peixe terrível”.

Sempre anunciando os temores do incognoscível, como depreendemos nos versos aflitos de Plath, o espelho, interface-matriz, das inúmeras outras que dele se desdobram, alça novos voos e alcança a literatura, como no famoso conto Machadiano de mesmo nome. A certa altura, o escritor sentencia: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro…”.

O singular conto retrata o pitoresco caso de um homem que reconhece a própria existência, na vida dita real, apenas quando veste uma farda de alferes e se contempla diante do espelho da casa aonde morava. De outro modo, trajando roupas comuns, a personagem não mais consegue se enxergar, quando desafiada pelo instigante objeto.

Ao se desdobrar nas artes, o espelho também imiscui no cinema. Em alguns filmes emblemáticos, nosso protagonista denuncia diversos aspectos sub-reptícios ou dissimulados da condição humana.

Na “Queda da Casa de Usher”, de Jean Epstein, longa-metragem baseado em um conto de Poe, assistimos a decadência de uma família aristocrática, culminando num incêndio devastador atestado finalmente por um espelho — que denominaríamos o espelho dos finais.

Temos “A Dama de Shangai”, de Orson Welles — obra noir, repleta de louras assassinas, detetives, jogos de luz e sombras, comparsas enroscados em toda ordem de permissividades — retratados num ilusório labirinto construído por inúmeros espelhos — cuja função, além de aturdir o espectador, consiste em conferir maior suspense à trama: classificaríamos estes como espelhos da ambiguidade, ou melhor, da amoralidade — que reputam como éticos qualquer gesto ou intenção espúria?

Apontamos ainda o memorável “Janela Indiscreta”, de Hitchcock .

Através dela um homem em uma cadeira de rodas, observa passivamente por meio de um binóculo, seu dispositivo de controle, uma série de acontecimentos.

Alguns inclusive graves, como um crime, se desenrolando no prédio à frente: eis o espelho da alienação.
Ou ainda descortinamos uma das geniais sequências de “Drácula”, de Bram Stoker, na qual o espelho recusa-se a refletir a imagem dos seres inumanos e proscritos, sequer revelando suas sombras: temos aí o espelho crepuscular da alma .

Agora, um clássico da literatura infantil que ganhou as telas: “Branca de Neve e os Sete Anões”. Nesta história assoma a inveja da rainha da personagem título, que nos traz, em toda a pompa, o espelho das vaidades.

“Mirror, Mirror, on the wall Who is the fairest of us all?/O Lady Queen, though fair ye be,/Snow-White is fairer, far to see.”

Revisitando a poesia, flagramos Borges e Mario Quintana rendidos à infinitude dos espelhos. Por fim, Fernando Pessoa, sempre tão plural em sua contrita aparência, declara em breve poema, da lavra de Alberto Caeiro, um de seus heterônimos.

“O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa. Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.”
 
 

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Folha e Estado de São Paulo também financiaram ditadura militar


Do Diário do Centro do Mundo

O ex-delegado da Polícia Civil do Espírito Santo Claudio Guerra afirmou em depoimento à Comissão Municipal da Verdade de São Paulo que os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo contribuíram com doações em dinheiro para a Operação Bandeirante (Oban), sistema montado pelo Exército em 1969 para coordenar as operações de repressão à luta armada contra a ditadura (1964-1985).

Guerra foi a fonte do livro Memórias de uma Guerra Suja, dos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto, lançado em 2012. Além dos jornais, empresas como Ultragaz, Banco Mercantil de São Paulo, Banco Sudameris, Ford, General Motors e Volkswagen também são apontados como financiadores da Oban.

Segundo Guerra, a Folha de S.Paulo, além de recursos financeiros, teria participado do esquema de repressão com o fornecimento de carros usados em operações .

Ele disse que o dono do jornal na época, Otavio Frias de Oliveira, visitava “constantemente” o Departamento Estadual de Ordem Pública e Social (Deops) e era amigo pessoal do delegado Sérgio Fleury.

Fleury, junto com o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandava na Oban as operações de repressão, tortura, execução e ocultamento de cadáveres de militantes contra a ditadura.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Quem compra um carro não compra um carro

Por Marcia Tiburi
Revista Cult

O automóvel é para poucos um meio de transporte. Produto para a indústria e o mercado, ele deve surgir como fetiche na consciência coisificada dos usuários. É dessa coisificação que depende o sucesso das vendas e o aumento da produção. O aumento da produção gera emprego, dirão uns, gera capital, dirão outros. Que o carro seja central na economia política de uma sociedade marcada pelo descaso com o transporte público explica a supremacia do privado, o poder do dinheiro em detrimento da cidadania. O núcleo bárbaro de nosso estado social refere-se também ao declínio do espaço público ocupado pelos carros em uma sociedade motorizada quando já não há por onde seguir.

É evidente que o espaço social da rua, este espaço desvalorizado onde vivem excluídos e marginalizados, moradores sem casa, se tornaria o lugar onde o capitalista motorizado ostentaria seu poder automobilizado. O motorista realiza a ideia de que a racionalidade técnica é a racionalidade da dominação por meio de sua máquina impressionante. Andar a pé, uma prática totalmente antitecnológica, tornou-se um perigo, cujo risco é deixado ao despossuído. A posse é o espaço a ser percorrido. Os carros nas grandes cidades congestionadas surgem como marcadores de lugar: quem pode mais ocupa mais espaço em relação a quem pode menos. Assim é que a sociologia do trânsito de nossa época tem que se ocupar não apenas com a divisão do espaço, mas com a tradicional avareza do capitalismo aplicada ao movimento nas grandes cidades. Não se trata mais do simples direito de cada um à cova medida; o movimento lento dos carros nas ruas enfartadas lembra o funeral em que todos estão a caminho de um grande enterro.

Fetiche automobilístico

O carro faz parte da mitologia cotidiana. Ayrton Senna foi o deus maior sacrificado no ritual do automobilismo, ritual do qual participam as massas encantadas com seus brinquedinhos mais baratos.

Mas para entender o fenômeno do fetiche automobilístico de nossos tempos podemos pensar algo ainda mais elementar: quem compra um carro nunca compra apenas um carro, compra a ideia vendida pela propaganda do carro. A ideia é sempre a mesma, compra-se um poder. Com o poder na forma de um carro, o motorista pode transitar pela rua.

Um carro permite a ostentação fundamental que se tornou meio de sobrevivência em uma sociedade competitiva na qual, mesmo não sendo um vencedor, sempre se pode parecer um. A ostentação é parte essencial do sistema simbólico em que o reconhecimento deturpado diz quem somos e o que podemos ser dependendo do que possuímos.

Do mesmo modo que o menino rico ganha um carro dos pais assim que aprende a dirigir não porque o carro seja necessário, mas porque é sinônimo do tornar-se adulto ou pelo menos do parecer adulto, o menino pobre que trabalha como empacotador no supermercado economiza dinheiro para comprar um carro porque, também ele, entende que é o carro que o torna alguém numa sociedade de pilotos. Assim, ele não questiona seu trabalho escravizado, pois pode chegar ao fim da corrida alcançando o bem desejado por todos os que, na qualidade de vencedores ou vencidos, não se colocam a questão de parar a corrida.

Assim é que entendemos o caráter de máscara dos automóveis. A questão de ser quem se é define-se no meio de transporte que se usa. Da bicicleta ao carro blindado, do ônibus que sai da periferia à Ferrari, cada um é reduzido ao transporte que usa. Quem não tem carro, pois ele está ao alcance de todos independemente dos sacrifícios implicados em sua aquisição e manutenção, pratica um ateísmo. O dono do carrão expõe, como um exibicionista expõe seu sexo, uma verdade teológica.

terça-feira, 23 de abril de 2013

As maiores declarações de amor da literatura universal

O Nascimento de Vênus [Botticelli]

Por Carlos William Leite
Da Revista Bula


Dando sequencia a série de melhores trechos de livros, pedi aos leitores, seguidores do Twitter e Facebook — escritores, jornalistas, professores —, que apontassem, entre passagens literárias memoráveis, quais eram as maiores declarações de amor da história da literatura. Na lista, aparecem personagens dos mais díspares perfis, em comum entre eles, apenas a paixão flamejante. De Humbert Humbert, personagem de Vladimir Nabokov, descrevendo Dolores Haze, em “Lolita”— o mais citado —, até a metáfora da pedra de Bolonha, do romance “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe, que imortaliza não apenas o amor de Werther por Carlota, mas todos os grandes amores da literatura universal. Abaixo, a lista baseada no número de citações e uma pequena amostra do amor incendiário dos personagens selecionados.

Carta a D.
André Gorz
(De André Gorz para Dorine Keir)

Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher. Eu só preciso lhe dizer de novo essas coisas simples antes de abordar questões que, não faz muito tempo, têm me atormentado. Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida?

Dom Quixote
Miguel de Cervantes
(De Dom Quixote para Dulcinéia)

Ó Dulcinéia del Toboso, dia da minha noite, glória da minha pena, norte dos meus caminhos, estrela da minha ventura (assim o céu te depare favorável em tudo que lhe pedires!), considera, te peço, o lugar e o estado a que a tua ausência me conduziu, e correspondas propícia ao que deves à minha fé! Ó solitárias árvores, que de hoje em diante ficareis acompanhando a minha solidão, dai mostras com o movimento das vossas ramarias de que vos não anoja a minha presença! Ó tu, escudeiro meu, agradável companheiro em meus sucessos prósperos e adversos, toma bem na memória o que vou fazer à tua vista, para que pontualmente o repitas à causadora única de tudo isto!

Romeu e Julieta
William Shakespeare
(De Julieta para Romeu)

Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome. Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservara a tão preciosa perfeição que dele é sem esse título. Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo inteira.


Lolita
Vladimir Nabokov
(Humbert sobre Dolores Haze)

Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta. Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita. Será que teve uma precursora? Sim, de fato teve. Na verdade, talvez jamais teria existido uma Lolita se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial.

Os Sofrimentos do Jovem Werther
Johann Wolfgang von Goethe
(Werther sobre Carlota)

Hoje não pude ir ver Carlota, uma visita inesperada me segurou em casa. Que havia a fazer? Mandei o meu criado ao encontro dela, só para ter junto de mim alguém que tivesse estado em sua presença. Com que impaciência o esperei, com que alegria tornei a vê-lo! Não tivesse vergonha e teria me atirado ao seu pescoço e coberto seu rosto de beijos. Falam que a pedra de Bolonha, quando exposta ao sol, absorve seus raios e reluz por algum tempo durante a noite. Dava-se o mesmo comigo e aquele rapaz. A lembrança de que os olhos de Carlota haviam pousado em seu rosto, em suas faces, nos botões de sua casaca e na gola de seu sobretudo, tornava-o tão querido, tão sagrado para mim!

A Trégua
Mario Benedetti
(Martín Santomé sobre Avella­neda)

Ah, os velhos tempos em que Avellaneda era só um sobrenome, o sobrenome da nova auxiliar (faz apenas cinco meses que anotei: A mocinha não parece ter muita vontade de trabalhar, mas pelo menos compreende o que a gente explica), a etiqueta para identificar aquela pessoinha de testa ampla e boca grande que me olhava com enorme respeito. Ali estava ela agora, diante de mim, envolta em sua manta. Não me lembro de como era ela quando me parecia insignificante, inibida, nada além de simpática. Só me lembro de como é agora: uma deliciosa mulherzinha que me atrai, que me alegra absurdamente o coração, que me conquista.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Antropologia de Darwin: Os fundamentos materiais da moral


Por Carlos Alberto Dória
Da Ilustríssima

RESUMO "A Descendência do Homem" (1871), de Charles Darwin, foi praticamente ignorado em nome da ideia liberal de "guerra de todos contra todos". Releituras e pesquisas recentes em torno do livro revelam uma verdadeira teoria antropológica darwiniana que aponta para as raízes biológicas da moral.

*

Um dos casos mais intrigantes da epistemologia das ciências biólogicas é a quase absoluta ignorância que se seguiu à publicação de "A Descendência do Homem" (1871), de Charles Darwin.

Quase ninguém se deu conta de que a obra encerrava uma revolução no conhecimento, tão importante quanto "A Origem das Espécies" (1859).

Tão certos estavam os seguidores e detratores de Darwin de que se tratava de uma "continuação" ou "aplicação" da "Origem" à espécie humana, contestando a natureza divina do homem, que nem se deram ao trabalho de lê-la. Do mesmo modo, parte do trabalho --sobre o mecanismo da seleção sexual-- foi considerado um ensaio independente, sem conexão com a origem do homem. Passou em brancas nuvens esta que é considerada agora a "segunda revolução darwiniana".

A obra vale por não repetir argumentos da "Origem", constituindo uma verdadeira antropologia na qual se fundem as dimensões biológica e cultural, como nunca se vira antes e não se viu depois, pois as ciências humanas se desenvolveram de costas para a biologia e a cultura foi considerada algo além do mundo orgânico ("superorgânica") --isto é, a vida simbólica já aparece como plenamente constituída.

Essa antropologia só é possível porque Darwin não vê diferenças de natureza, e sim de grau, naquilo que une o homem às demais espécies animais. As habilidades, os instintos, a inteligência, a capacidade de comunicação (linguagem), os comportamentos são caracteres animais difundidos por infinitas espécies.

O impacto político dessa antropologia é enorme. Ao "animalizar" o homem e seus instintos mais "nobres", deixava a igreja falando sozinha, mesmo sem haver pensado a obra como um libelo antideísta. O livro mostra que os homens pertencem a uma espécie polimórfica, na qual todos são iguais, e as diferenças secundárias, como a cor da pele, foram desenvolvidas ao longo de milênios, através de escolhas estéticas de grupos humanos.

Política

Mas por que Darwin escreveu esse livro, se as ciências humanas não eram seu foco de atenção? A razão foi de ordem política e humanitária, conforme hoje se sabe, graças ao estudo dos biógrafos de Darwin sobre suas anotações e diários (Adrian Desmond e James Moore, "Darwin's Sacred Cause: Race, Slavery and the Quest for Human Origins", Penguin Books, 2009).

Quando Darwin esteve no Brasil, horrorizou-se com a escravidão e, desde o distante ano de 1837, começou a reunir elementos para provar a origem comum e a igualdade entre os homens no plano biológico, de modo a sepultar as principais teses dos escravistas, com destaque para a tese da poligenia (tomando raças ou variedades como se fossem espécies "criadas" independentemente, segundo sugeria a leitura que faziam da Bíblia) com a qual "justificavam" o direito à escravizar seres aparentemente distintos.

Do ponto de vista historiográfico, a trajetória intelectual de Darwin também é surpreendente: uma obra sobre o homem, provando sua igualdade (monogenia), foi ideia anterior à concepção da seleção natural. Assim, se o estudo sobre a origem das espécies favoreceu sua compreensão sobre a animalidade do homem, ela contribuiu igualmente para o amadurecimento de sua antropologia.

A nova leitura esclarecedora de "A Descendência do Homem" deve-se ao trabalho de quase 20 anos do epistemólogo francês Patrick Tort, cujo livro "L'Effet Darwin: Séléction Naturelle et Naissance de la Civilisation" (Seuil, 2008) é síntese dessa trajetória persistente.

A primeira questão que Tort busca explicar é o desprezo pela antropologia de Darwin. E sua explicação é relativamente simples: a ideia de "luta pela vida" era extremamente conveniente para a economia política liberal; reforçava a noção de luta de "todos contra todos" e triunfo dos mais fortes, e os evolucionistas liberais, como Herbert Spencer, a ela se aferraram.

"A Descendência do Homem", ao contrário, é a obra na qual Darwin sofistica os mecanismos de seleção --faz até um mea-culpa por haver exagerado o papel da seleção natural-- introduzindo na história natural as noções cruciais da cooperação e "altruísmo".

Contudo, só nos países sem tradição de economia política liberal esses mecanismos de evolução foram percebidos e valorizados, como na Rússia czarista, resultando em algumas obras discrepantes em relação à interpretação dominante, como a de Peter Kropotkin, "Ajuda mútua: Um Fator de Evolução" (1888).

Em "A Descendência do Homem", Darwin mostra como esse animal surge da evolução de formas mais simples através da convergência fortuita de vários processos: a pedestrialização (quando o animal desce das árvores), o bipedismo, a encefalização (aumento do cérebro) e o desenvolvimento da linguagem simbólica. Mas não foram só as transformações físicas que Darwin captou. Ele indicou que, ao se desenvolver no plano social, criou-se uma ruptura com o processo anterior, no qual, por força de pressões ambientais, os animais se adaptavam mediante a transformação física milenar.

O Homo sapiens já não se transforma fisicamente, mas age sobre o ambiente, adaptando-o às suas necessidades (produz vestimentas, habitação etc.). Do mesmo modo, o instinto animal evolui e aprofunda seu caráter social, impondo formas cooperativas, tornando-o um animal social bastante sofisticado, capaz de várias ações altruístas.

Mas por que o altruísmo? Não se trata da manifestação de uma "essência humana", fruto de um sopro divino, mas de uma necessidade material da vida. O instinto social é característica de várias espécies --como as abelhas, as formigas e vários mamíferos superiores. Através dele, a reprodução do grupo entra em causa, condicionando as ações e escolhas individuais.

Novo Percurso

No homem, desde a divisão de trabalho entre macho e fêmea para cuidar da cria (longamente inabilitada para, sozinha, prover a vida) até o desenvolvimento das instituições sociais, como a ciência ou a medicina, um novo percurso evolutivo se instaura quando crianças, velhos e indivíduos menos aptos são protegidos, em vez de eliminados.

Uma seleção natural de instintos e comportamentos antieliminatórios (ou "antisselecionistas") vai tomando corpo e reprimindo as ações eliminatórias.

O resultado cego desse longo processo é a civilização, isto é, a repressão sistemática da "lei do mais forte" na medida em que padrões encontram formas de se impor ao grupo e se sobrepor aos do indivíduo. Tort verá nesse mecanismo a "reversão da seleção natural", ou o nascimento da civilização sem ruptura com a dimensão biológica da vida. Em outras palavras, a base material, natural, da moral.

"A Descendência do Homem" traz uma segunda parte, sobre a "seleção sexual". Nela, o cientista inglês mostra justamente a necessidade do altruísmo --a capacidade de dar a vida por outros membros da espécie-- como fator de evolução. Por que em certas espécies, notadamente de aves, o macho é muito mais belo e exuberante que as fêmeas? Simplesmente porque, ao se desenvolverem dessa forma, eles têm mais chances de serem "escolhidos" pelas fêmeas e criarem descendência. Mas o pavão, por exemplo, ao desenvolver sua beleza perde a capacidade de voar, ficando à mercê dos predadores. Essa inabilitação adquirida só se explica pelo "altruísmo": correr riscos, o autossacrifício em nome do outro, da descendência.

Por esse mecanismo da seleção sexual, o homem também terá capacidade de alterar seus caracteres secundários. Sendo espécie polimórfica, variará na cor da pele e outros traços físicos exteriores ao perseguir padrões de beleza restritos a cada grupo humano isolado. O "belo ideal" é um conceito social que se materializa nos indivíduos que ocupam a chefia do grupo, nas mulheres que utilizam adornos, nas estátuas que representam os deuses e assim por diante.

Esses padrões se tornam dominantes na medida em que passam a intervir nas escolhas matrimoniais e, por esse processo, disseminam-se pelo grupo. Nada disso precisa ser consciente para agir sobre o homem, como o instinto não é consciente no animal.

Caminhos como esse mostram, mais de um século depois, a dimensão insuspeitada de uma obra que parecia "caduca" aos olhos das ciências naturais e ciências humanas. Trata-se de um clássico que, finalmente, impõe sua grandeza intelectual.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Deus não gosta de meninos que choram

O cardeal Keith O'Brien, que renunciou ao posto de arcebispo de Edimburgo após admitir comportamento sexual "impróprio"

Por Catherine Deveney
Tradução de Paulo Migliacci 
Do Observer


Treze de março de 2013. O mundo está esperando. As telas dos televisores mostram imagens de cardeais obtidas nos dias anteriores. Vestidos de branco e vermelho, eles passam em procissão pela guarda do Vaticano e ingressam na magnífica Capela Sistina para o conclave papal.

Cada imagem, dos assoalhos de mármore polido e tetos dourados aos inestimáveis afrescos que decoram as paredes, conta uma história de riqueza, fausto e poder. Do lado de fora, na praça diante da catedral de São Pedro, multidões celebram um homem cujo nome ainda nem conhecem. Mas há outra trilha sonora.

Um dia antes, *Pat McEwan, 62, da Escócia, havia me contado como foi estuprado por um padre, aos oito anos. Sua voz se sobrepõe às multidões e corais. "Corri para casa, me sacudindo como um cachorro. Estava de calças curtas, e a porcaria corria pela minha perna. Minha mãe e minha tia tiveram de me limpar".

 A justaposição dessas duas imagens, a da instituição que representa 1,2 bilhão de católicos e a da criança vítima de abuso, conta a história de uma Igreja com dois rostos: o público e o privado. No mês passado, a Igreja foi arremessada a uma crise quando o "Observer" revelou que três padres e um ex-padre haviam prestado queixa ao núncio papal sobre o cardeal Keith O'Brien, arcebispo de St. Andrews e Edimburgo.

O cardeal, que condenava os homossexuais publicamente por sua degeneração, foi acusado pelos sacerdotes de tentar se aproveitar sexualmente de alguns de seus subordinados, durante muitos anos. Mas a história jamais foi um incidente relativo a um homem apenas. Não se referia a uma fraqueza pessoal. Keith O'Brien era apenas o sintoma de uma doença maior: a de uma instituição que opta pelo acobertamento como postura básica para ocultar escândalos morais, sexuais e financeiros.

Não era um caso de pedofilia, mas de abuso de poder --um homem em posição de autoridade agindo de maneira inapropriada com relação a jovens seminaristas e padres que lhe eram subordinados. Ficou claro que uma relação sexual plena estava envolvida. Mas ainda assim houve tentativas de empregar a ambiguidade moral para justificar seu comportamento. Primeiro vieram as negativas. O cardeal "contestou" as alegações. Um dia depois que elas foram publicadas, ele renunciou. Na semana seguinte, divulgou uma declaração na qual admitia que sua conduta sexual havia sido imprópria, "como padre, bispo e cardeal". Muita gente ignorou o que isso revelava sobre as dimensões e a duração de seus desvios de comportamento: ele foi nomeado cardeal em 2003.

A seguir, vieram os esforços de obscurecimento, com a Igreja alegando que não conhecia a substância das alegações, apesar de ter sido notificada por escrito sobre elas antes da publicação. Depois, a ira e a minimização dos delitos o cardeal havia sido destruído por "meros deslizes em momentos de bebedeira", 30 anos atrás. Ele por certo havia se confessado e recebido absolvição. Mas o mais revelador foi a tentativa de desviar a atenção para a motivação dos queixosos, e de culpar os acusadores em lugar do acusado. Esse é um padrão que se tornou familiar nos casos de abuso da Igreja ao longo dos anos.

As histórias que você lerá a seguir aconteceram do final dos anos 50 até o presente, ou seja, envolvem mais de 50 anos. A sociedade mudou radicalmente ao longo do período, da moralidade preto e branco, cortiços e caixeiros viajantes dos anos 50 para a geração das telas planas, iPhones e vidas frenéticas de 2013. E no entanto, ao longo de todas essas décadas e apesar de todas essas mudanças, o comportamento da Igreja Católica para com as vítimas de abuso mudou notavelmente pouco.

Dois conceitos são essenciais para compreender o comportamento da Igreja. O primeiro é o de "escandalizar os fiéis". Tradicionalmente, a hierarquia sempre acreditou que o maior pecado seria abalar a fé da congregação católica. Protegê-la significava esconder os escândalos. E quando o ponto de vista moral adotado é esse, tudo passa. É possível encobrir desvios de comportamento sexual e ao mesmo tempo exigir moralidade sexual dos fiéis.

É possível ocultar corrupção financeira das pessoas que doam dinheiro às suas igrejas. É possível silenciar as vítimas de abuso e proteger os praticantes. A culpa por sacrificar indivíduos é atenuada pela ideia de que algo maior e mais significativo está sendo protegido --a instituição.

O segundo conceito é o de "clericalismo", usado para descrever o senso de privilégio dos sacerdotes, sua exigência de deferência e seu aparente respeito às regras e regulamentos em público, enquanto no foro privado se comportam de maneira que sugere que as regras não se aplicam às suas pessoas. (O'Brien é um exemplo clássico disso.) O Vaticano é um Estado independente. A Santa Sé é uma entidade soberana reconhecida pela lei internacional e governada pelo Papa. A Nunciatura opera representações equivalentes a embaixadas em diferentes países do planeta. A Igreja é governada por leis próprias: a Lei Canônica. Tudo isso contribuiu para o conceito de que a igreja pode conduzir seus assuntos sem interferência ou escrutínio externo. A igreja exige voz na sociedade mas se recusa a prestar contas plenamente a ela.

Nas semanas posteriores à renúncia de O'Brien, diversas reuniões de padres foram realizadas na sua diocese. Uma delas foi presidida pelo arcebispo Philip Tartaglia, de Glasgow, substituto interino do cardeal, e por Stephen Robson, bispo assistente de O'Brien. Alguns dos padres desejavam enviar mensagens de apoio ao cardeal, e que ele fosse encorajado a se radicar na Escócia em sua aposentadoria. Compaixão por um pecador? Ou acobertamento clerical? Alguns dos participantes não só estavam informados sobre o comportamento do cardeal mas haviam sido sujeitos a ele.

"A estrutura do poder clerical não só protege sacerdotes sexualmente ativos mas é montada de forma a permitir que levem vidas duplas", diz Richard Sipe, ex-padre e psicoterapeuta norte-americano que dedicou anos a pesquisar questões de celibato e abuso. "A corrupção vem de cima. Os superiores, reitores e bispos têm vidas sexuais ativas e se protegem mutuamente. Uma espécie de santa chantagem".

Será que estamos falando da maior crise para a Igreja Católica desde a Reforma, perguntei ao professor Tom Devine, um dos mais conhecidos historiadores escoceses? Mas um cardeal não é a crise. Milhares de crianças vítimas de abusos em todo o mundo, e uma instituição que as silencia: essa é a crise real.

A igreja argumenta que tem normas de proteção a crianças em vigor na Escócia desde 1999. Você pode julgar por si mesmo sua eficiência ao ler as histórias abaixo. Os eventos se estenderam até as semanas recentes, com a renúncia de Keith O'Brien como pano de fundo. Martin Luther King, o ativista norte-americano dos direitos humanos, certa vez disse que "chega um momento em que silenciar é trair". Na Igreja Católica, esse momento passou há muito.

Falando publicamente pela primeira vez, Pat McEwan diz ter caído vítima de uma quadrilha de padres pedófilos. O principal responsável pelos abusos contra ele, o padre de sua paróquia, encorajava Pat a visitá-lo e depois parecia cair em transe. Quando Pat o sacudia, ele dizia que "eu estava falando com Jesus e ele quer saber se você deseja ir para o céu", o padre dizia, e acrescentava: "Você ama sua mãe?" O menino respondia que sim. "Você ama seu pai". De novo a resposta afirmativa. "Você me ama? Porque esse é nosso segredinho, e você não pode contar para sua mãe e pai ou queimará no inferno".

Isso aconteceu nos anos 50. Os padres das paróquias eram convidados de honra nas casas dos católicos. O padre incluiu a mãe de Pat, muito devota, em uma visita à Gruta de Carfin; ela deixou Pat aos cuidados de um padre amigo do titular da paróquia. Tão logo ela partiu, o padre disse: "Quero que você faça comigo o que faz para o padre de sua paróquia", conta McEwan. Em seguida, o padre o estuprou. Mais tarde, tentou acalmar o choro do menino antes que sua mãe voltasse. "Deus não gosta de meninos que choram. Seja um soldado de Cristo".

Os abusos sofridos na infância continuam a se fazer sentir depois que ela termina. São acontecimentos que influenciam todas as escolhas adultas, relacionamentos, a vida profissional e a saúde. As vítimas sofrem de alcoolismo, questões de saúde mental e distúrbio por estresse pós-traumático. Não é incomum que as vítimas masculinas terminem na prisão. Cameron Fyfe é um advogado escocês que já trabalhou em mais de mil casos de abuso pela Igreja Católica na Escócia. "Ninguém escapou incólume", diz. "Todos tiveram suas vidas destruídas". Pat não escapa a essa definição. Tornou-se alcoólatra, ainda que agora esteja sóbrio há 18 meses.

Pat procurou a igreja no final dos anos 90. Nunca pediu dinheiro. Queria aconselhamento, um retiro espiritual --e uma admissão de culpa. "A questão sempre foi de justiça", ele diz. Procurou o apoio de Alan Draper, um especialista em proteção a crianças que trabalhou para a igreja na metade dos anos 90. Draper havia deixado o posto, insatisfeito com a persistente recusa dos bispos em tomar medidas apropriadas. Acompanhou Pat a uma reunião com o bispo Joseph Devine, de Motherwell. Em seus relatos, Pat e Draper dizem que a solução do bispo para a horripilante história era simples: "Pat, ele já é velho", apelou o bispo. "Deixe essa história no passado".

Pat mostra um arquivo de cartas, não só do bispo mas da equipe de salvaguarda da diocese. O tom é frequentemente hostil, como se "salvaguarda", na diocese, não envolvesse proteger as vítimas, e sim proteger a igreja contra as vítimas. Em uma das cartas, Pat é repreendido por telefonar ao escritório. "Será que eu poderia pedir", escreveu Tina Campbell, assessora de salvaguarda da diocese, "que se você deseja fazer contato com um membro da equipe de salvaguarda da diocese, use o correio como melhor caminho que o telefone?"

Em 2010, Pat procurou O'Brien. A despeito de ser o decano entre os líderes católicos do Reino Unido, O'Brien afirmou que não interferiria na área do bispo Devine. Draper subsequentemente escreveu a Devine, em nome de Pat, em fevereiro de 2011, pedindo uma reunião com o bispo. Devine recusou a presença de Draper e disse que Pat deveria falar com ele sozinho. "Caso ele seja acompanhado pelo senhor ou outra pessoa, a reunião será cancelada". Na reunião, Devine atacou Pat: "Você não passa de um alcoólatra", afirmou.

"Tudo que Pat desejava", afirma Draper, "era que o bispo pedisse desculpas e dissesse que acreditava nele". Em novembro daquele ano, Pat recebeu uma carta de Campbell na qual ela afirmava que "para tentar uma resolução", o caso foi encaminhado à polícia de Motherwell, que está investigando. O principal responsável pelos abusos contra Pat já morreu, mas um dos envolvidos continua vivo. Foi uma longa jornada.

A realidade da "salvaguarda" na Igreja Católica é que cada bispo comanda um feudo independente. Draper pediu provas de que as revisões anuais que a igreja aceitou realizar em 1996 estavam sendo conduzidas. Até agora, nenhuma prova foi apresentada.

Em resposta a questões referentes aos procedimentos da igreja em casos de abuso, Peter Kearney, diretor de comunicações da Igreja Católica, disse ao "Observer" que "'a igreja', tal como referida em sua pergunta, não tem posição na questão, já que, na Escócia, 'a igreja' consiste de oito dioceses separadas e autônomas, cada qual responsável por salvaguardas em seu território. A maneira pela qual uma queixa é tratada em uma diocese deveria ser igual à adotada em todas as demais, mas... esse nem sempre vem sendo o caso".

A resposta confirma, diz Alan Draper, o que ele vem dizendo há anos. "Os bispos exercem controle estreito e nada fazem pelas vítimas. O chamado coordenador nacional fica na prática excluído e relegado a treinar os laicos, e não tem poder para fazer coisa alguma de importante. É uma trapaça".

Ann Matthews, que também vive na diocese de Devine, sofreu abusos do padre de sua paróquia nos anos 80, quanto ela tinha entre 11 e 17 anos. Jamais contou aos pais. Eram muito devotos e o padre frequentemente orava com eles em casa. Depois de uma visita à avó de Ann, que estava por morrer, ele desceu para a sala e tentou fazer sexo com a adolescente no sofá.

Depois de aceitar que abusos haviam ocorrido, Devine discretamente enviou o padre para aconselhamento em outro local, e informou aos paroquianos que ele estava se aposentando por motivos de saúde. Ann diz que isso negou a outros pais a oportunidade de averiguar se seus filhos haviam sofrido abusos semelhantes. Alguns estudos sugerem que os padres que cometem abusos podem ter em média 50 vítimas.

Ann diz que sua vida foi destruída. Ela sofre de distúrbios alimentares, problemas de sono, ansiedade e depressão. Tem pensamentos suicidas. Não tem emprego. Ainda que tenha um companheiro, não pretende ter filhos, porque não deseja submeter uma criança às suas inseguranças. "Às vezes sinto como se tivesse morrido muito tempo atrás, mas que resta esse corpo que anda pela terra por não saber que deveria jazer".

Em uma reunião que teve padres de sua diocese como participantes, ela foi perguntada por que permitiu que o abuso continuasse. Mas Ann era uma criança quando começaram os abusos. Tentou se convencer de que o abuso era amor. "Eu respondi que estava lá conversando com eles como adulta, mas que aquilo tudo havia acontecido quando era menina. E um dos padres respondeu: 'Não venha com essa!', e depois acrescentou 'melhor dar a dinheiro a ela e corrê-la daqui'".

Ela não recebeu dinheiro, mas a igreja forneceu serviços de aconselhamento, pelos quais Ann é grata. Pelos 12 anos seguintes, a igreja não solicitou informações sobre o rumo do tratamento. No ano passado, a diocese escreveu, sem aviso, dizendo que as verbas de aconselhamento de Ann seriam retiradas. A sessão final aconteceria em maio de 2013. O conselheiro de Ann escreveu à igreja dizendo que ela tinha pensamentos suicidas por boa parte do tempo e ainda precisava de ajuda. "Foi como se elas tivessem calculado que sofri sete anos de abuso e recebi aconselhamento por 12, portanto o tempo acabou", diz Ann. "Eu não passo de uma pessoa que lhes custou verbas consideráveis".

Em 11 de fevereiro, quando o papa Bento 16 renunciou, Ann participou de uma reunião com Tina Campbell, do departamento de salvaguarda da diocese, sobre o fim do seu aconselhamento. Ela foi acompanhada de seu psicoterapeuta e da funcionária de uma organização de assistência. Mas o comportamento dos representantes da diocese para com ela foi tão hostil que Ann logo deixou a reunião, chorando.

A funcionária da organização assistencial confirma que precisou intervir porque o comportamento dos representantes da igreja havia sido inaceitável. Eles apresentaram um apelo, e foram informados de que a questão seria decidida em Edimburgo. Ann mais tarde recebeu uma carta dizendo que "devido à situação complicada na diocese de St. Andrews e Edimburgo", não haverá como decidir sobre o apelo. Ela está aguardando novas informações.

A igreja não tem normas definidas quanto a aconselhamento. Uma vez mais, cabe aos bispos decidir individualmente. Helen Holland foi vítima de sérios abusos físicos e sexuais nos anos 60 e 70, na Nazareth House em Kilmarnock. Quando criança, ela foi vendada, segurada por uma freira e estuprada por um padre. Mais tarde, ela mesma se tornou freira, mas posteriormente abandonou a ordem. Agora ela é vice-presidente da Incas, uma associação de vítimas de abusos escocesas, e já depôs em nome das vítimas ao Parlamento da Escócia.

O legado de seu abuso persiste, e Helen já recorreu a serviços pagos de aconselhamento em diversos períodos de sua vida. Mas nos últimos anos começou a sofrer "terrores noturnos" e ataques de sonambulismo que a levavam a sair caminhando de casa. "É como se eu tivesse voltado à infância. Meu conselheiro diz que é como se eu estivesse tentando entrar em contato com a criança interior e eu respondi que a pequena Helen tinha morrido. Ela não existe mais. Mas não é assim tão simples. Não consigo simplesmente esquecer".

Helen está recebendo pensão por seus problemas de saúde, e não tem mais dinheiro para pagar por sua terapia. Em junho de 2012, ela escreveu à igreja pedindo ajuda. Não recebeu resposta. A freira que praticou abusos contra ela era irlandesa e por isso Helen fez um pedido de assistência ao governo irlandês, que está bancando seu aconselhamento, em lugar da igreja.

Charles Simpson, um homem de Edimburgo que diz ter sofrido abusos e sido estuprado pelo padre de sua paróquia, nos anos 90, também colidiu com a muralha de silêncio da igreja. Charles teve problemas com álcool e drogas depois dos abusos, e terminou preso por invadir constantemente a sede da paróquia onde os ataques haviam acontecido. "Estava tentando me vingar da igreja. Foi um período de raiva na minha vida".

Ele continua a usar antidepressivos e metadona. "Quero funcionar normalmente, ser um membro da sociedade, mas é difícil. Ele me provocou tamanho medo e tamanha solidão, e dizia que minha família era pobre porque eram todos desempregados. As coisas que ele dizia me faziam sentir que não tinha força".

Silêncio

Charles buscou a ajuda de um padre que abordou O'Brien em seu nome. "O padre me disse para manter o silêncio", conta Charles, que subsequentemente pediu que a igreja bancasse sua terapia. Ele tampouco recebeu resposta. O silêncio o levou a recorrer à Justiça; agora, está processando a arquidiocese de St. Andrews e Edimburgo e pedindo 100 mil libras de indenização. Seu advogado, Cameron Fyfe, diz que a defesa empregada pela igreja no processo judicial foi surpreendente. Para se defender no processo, a igreja negou que um de seus objetivos fosse "propagar a palavra de Deus". E também alegou que não tinha poder para transferir ou demitir o padre, ou para controlar --e mesmo direcionar-- suas atividades.

Os prazos de prescrição da lei civil escocesa dispõem que qualquer processo por abuso teria de ter acontecido ou em prazo de três anos dos abusos ou do 16° aniversário da vítima. A maioria dos processos civis contra a igreja fracassa por esse motivo. Fyfe espera que o tribunal empregue seus poderes discricionários para permitir que o caso prossiga, mas o processo pode levar anos. "Dinheiro", diz Charles, com cansaço na voz, "não muda o que aconteceu. Sinto-me injustiçado. Para mim, eles não passam de gângsteres judiciais".

Na esteira do escândalo O'Brien, o arcebispo Tartaglia disse --como se a acusação contra seu predecessor fosse rara-- que "a acusação mais dolorosa" contra a igreja era a de hipocrisia. Mas a hierarquia sabe que novos escândalos estão a um murmúrio de distância. Os quatro queixosos contra o cardeal são acusados de participar de uma cabala gay. Não é fato. Mas padres e fontes informadas sobre a igreja dizem que existe uma cultura gay na igreja da Escócia. Tudo envolve compadrio, sigilo e uma cultura exclusivamente masculina. A igreja da Escócia ainda ostenta as cicatrizes de Roddy Wright, bispo de Argyll e das ilhas escocesas, que fugiu com uma mulher em 1996. Até que o comportamento de O'Brien fosse revelado, talvez fosse tentador para a hierarquia acreditar que os padres gays fossem "mais seguros". Casos homossexuais --especialmente com outros membros do clero-- são mais fáceis de esconder do que casos envolvendo mulheres e crianças.

A homossexualidade só é questão devido à postura pública da igreja quanto a ela. Seria desnecessário dizer que não existe vínculo entre homossexualidade e abuso. Mas Richard Sipe acredita que possa existir vínculo entre os abusos e o celibato. Em 1990, ele publicou um estudo conduzido nos Estados Unidos durante 25 anos, mostrando que em qualquer dado momento do estudo, 50% dos padres haviam estado ativos sexualmente nos três últimos anos. O número valia também para outros lugares --Espanha, Holanda, Suíça e África do Sul. "O'Brien e a Escócia não estão sozinhos e não constituem exceção", afirma Sipe.

A Igreja Católica criou uma hierarquia de moralidade sexual cujo pináculo é o celibato. Mas isso pode criar distorções. Os estudos de Sipe sugerem que cerca de 70% dos padres exibem imaturidade psicossexual. O celibato, ele argumenta, não é algo que a maioria das pessoas consiga manter. Quando os veículos legítimos de descarga da tensão sexual estão proibidos, haverá quem recorra a saídas ilícitas. "A maioria do clero é incapaz de lidar com a privação de sexo de uma maneira saudável", ele argumenta. Cerca de 6% dos padres fazem sexo com menores. Na Austrália, os abusos cometidos por sacerdotes católicos são seis vezes maiores que os de sacerdotes de outras igrejas combinados.

David tem experiência direta na Austrália e Nova Zelândia. Ele rejeitou propostas sexuais de um jesuíta de 65 anos de idade na Nova Zelândia quando tinha 14 anos. Mais tarde, David entrou para a vida religiosa e foi abordado sexualmente tanto em um mosteiro cisterciano quanto em um seminário. Na Austrália, ele foi abordado pelo prior de um mosteiro dominicano. Muitos padres têm histórias semelhantes, mas mantêm o silêncio porque continuam a ser parte da instituição. Já David deixou a vida religiosa.

Depois, ele teve um caso com um homem a quem chama Peter, que deixou um seminário em Roma. Peter mostrou a David os seus locais prediletos na cidade, e o conduziu ao convento no qual se confessava semanalmente. A confissão dele era sempre a última ser ouvida, depois das confissões das freiras, por um padre que mais tarde foi promovido a bispo. "No topo do convento", conta David, "havia uma sala confortável reservada às confissões. Mas o que havia começado como confissão logo se tornou um encontro de amantes. Peter, um tanto amargurado por ter saído de Roma, se apressava a contar em detalhes sobre o sexo que fazia com o padre, em suas férias. Envolvia intercurso anal". O padre --cujo nome David revelou-- operava nos altos escalões do Vaticano.

Há quem tenha tentado fazer de O'Brien uma vítima. Talvez ele tenha sido vítima de um sistema disfuncional. Mas as verdadeiras vítimas são as pessoas sem voz e sem poder, que em muitos caso vivem vidas que veem como maculadas e que não haverá como purificar. Michael é um antigo seminarista que procurou a polícia quando O'Brien se recusou a agir contra os responsáveis por abusos em seu seminário. Conhecido da imprensa escocesa como "Michael X", ele por fim foi indenizado em 42 mil libras pela Igreja Católica, que segundo Sipes já pagou mais de US$ 3 bilhões em indenizações por esse tipo de caso em todo o mundo.

Michael havia descrito anteriormente como informou seu orientador espiritual sobre o abuso. O homem garantiu a Michael que a culpa não era dele --e depois também lhe fez propostas sexuais. O que Michael não havia revelado antes foi a culpa que sentiu pelo que aconteceu a seguir, Ele teve de servir de acólito ao seu orientador espiritual em uma missa privada. "Quando estávamos rezando 'Senhor, tenha piedade'", Michael recorda, "ele caiu de joelhos e agarrou minhas pernas. Estava tremendo inteiro, dizendo 'Senhor tenha piedade, Michael tenha piedade'. Foi horrível. Ele se desintegrou diante de mim". O padre morreu de hemorragia cerebral não muito mais tarde. Quando surgiram rumores de que a causa havia sido o estresse, Michael sentiu remorso.

Muitas das vítimas arcam com a culpa e vergonha que deveriam caber aos culpados pelos abusos. Ann não consegue escapar à pergunta "por que você não fez alguma coisa?" Em e-mail enviado depois da entrevista, ela escreve: "Não sei por quanto mais tempo poderei continuar. O mais triste é que, mesmo que eu ponha fim à minha vida, seria apenas mais uma estatística".

Uma crise sempre acarreta uma escolha: seguir na mesma direção ou mudar de rumo. Quando Martin Luther King disse que silenciar era trair, estava dizendo que é preciso decidir. "Se fizemos a escolha certa", ele disse, "adiantaremos o dia em que a justiça rolará como a água e a retidão como uma poderosa corrente, em todo o mundo".

*Alguns nomes foram alterados.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

As 30 falas mais populares da história do cinema


Da Revista Bula

Em 2007, a revista norte-americana “Premiere” publicou uma lista com as 100 falas mais populares da história do cinema. Em 2009, foi a vez da britânica “Empire” publicar sua versão da lista. Em 2013, o site americano IMDb realizou uma enquete com leitores que também elegeu as 100 melhores frases do cinema em todos os tempos. Fizemos uma compilação das três listas e tiramos delas as 30 frases mais citadas. A compilação está publicada na ordem decrescente, de 30ª à 1ª, com uma tradução aproximada, já que o contexto em que as falas foram ditas determina em muito o seu significado, sobretudo para as que têm duplo sentido.

30 —”I see dead people.”
Tradução: Eu vejo gente morta.
Filme: O Sexto Sentido (The Sixth Sense, 1999)
Quem diz: Cole Sear (Harley Joel Osment).

29 — “You’re tearing me apart!”
Tradução: Vocês estão liquidando comigo!
Filme: Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955)
Quem diz: Jim Stark (James Dean).

28 — “I’ll be back.”
Tradução: Eu voltarei.
Filme: O Exterminador do Futuro (The Terminator, 1984)
Quem diz: The Terminator (Arnold Schwarzenegger).

27 — “I am big. It’s the pictures that got small.”
Tadução: Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos.
Filme: Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950)
Quem diz: Norma Desmond (Gloria Swanson).

26 — “Old age… It’s the only disease, Mr. Thompson, that you don’t look forward to being cured of.”
Tradução: Velhice… É a única doença, Sr. Thompson, da qual não se espera ser curado.
Filme: Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941)
Quem diz: Bernstein (Everett Sloane).

25 — “Of all the gin joints in all the towns in all the world, she walks into mine.”
Tradução: De todos os botecos, de todas as cidades, no mundo todo, ela entra logo no meu.
Filme: Casablanca (Idem, 1942)
Quem diz: Rick Blaine (Humphrey Bogart).

24 — “Dave, my mind is going. I can feel it.”
Tradução: Dave, minha consciência se esvai. Estou sentindo.
Filme: 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968)
Quem diz: Computador Hal (voz de Douglas Rain).

23 — “Don’t knock masturbation. It’s sex with someone I love.”
Tradução: Não zombe de masturbação. É sexo com alguém que eu amo.
Filme: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977)
Quem diz: Alvy Singer (Woody Allen).

22 — “As God is my witness, I’ll never be hungry again!”
Tradução: Com Deus por testemunha, eu nunca mais passarei fome!
Filme: E o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939)
Quem diz: Scarlett O’Hara (Viven Leigh).

21 — “I gave her my heart, and she gave me a pen.”
Tradução: Eu lhe dei meu coração, e ela me deu uma caneta.
Filme: Digam o que Disserem (Say Anything, 1989)
Quem diz: Lloyd Dobler (John Cusack).

20 — “If they move, kill ‘em!”
Tradução: Se eles se mexerem, mate-os!
Filme: Meu ódio será sua herança (The Wild Bunch, 1969)
Quem diz: Pike Bishop (William Holden).

19 — “The horror… The horror…”
Tradução: Que horror… Que horror…
Filme: Apocalipse (Apocalypse Now, 1979)
Quem diz: Coronel Kurtz (Marlon Brando).

18 — “I am Spartacus.”
Tradução: Eu sou Spartacus.
Filme: Spartacus (Idem, 1960)
Quem diz: Antoninus (Tony Curtis) e outros escravos rebelados.

17 — “Gentlemen, you can’t fight here! This is the war room!”
Tradução: Cavalheiros, não podem brigar aqui! Esta é a sala da guerra!
Filme: Dr. Fantástico (Dr. Strangelove, 1964)
Quem diz: Presidente Merkin Muffley (Peter Sellers).

16 — “Michael, we’re bigger than U. S. Steel.”
Tradução: Michael, somos mais poderosos do que a indústria siderúrgica norte-americana.
Filme: O Poderoso Chefão II (The Godfather: Part II, 1974)
Quem diz: Hyman Roth (Lee Strasberg).

15 — “I love the smell of napalm in the morning.”
Tradução: Adoro o cheiro de napalm pela manhã.
Filme: Apocalipse (Apocalypse Now, 1979)
Quem diz: Tenente-coronel Bill Kilgore (Robert Duvall).

14 — “A census taker once tried to test me. I ate his liver with some fava beans and a nice chianti.”
Tradução: Certa vez, um recenseador tentou me pôr à prova. Comi o fígado dele com fava e um bom vinho.
Filme: O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, 1991)
Quem diz: Dr. Hannibal Lecter (Anthony Hopkins).

13 — “The first rule of Fight Club is you don’t talk about Fight Clube.”
Tradução: A primeira regra do Clube da Luta é não falar sobre o Clube da Luta.
Filme: Clube da Luta (Fight Club, 1999)
Quem diz: Tyler Durden (Brad Pitt).

12 — “May the Force be with you.”
Tradução: A Força esteja com você.
Filme: Guerra nas Estrelas (Star Wars, 1977)
Quem diz: Han Solo (Harrison Ford).
Obs.: No filme, a frase é: “The Force will be with you… always.”.

11 — “Toto, I have a feeling we’re not in Kansas anymore.”
Tradução: Totó, tenho o pressentimento de que não estamos mais no Kansas.
Filme: O Mágico de Oz (The Wizard of Oz, 1939)
Quem diz: Dorothy Gale (Judy Garland).

10 — “Greed… is good.”
Tradução: Ganância… é bom.
Filme: Wall Street — Poder e Cobiça (Wall Street, 1987)
Quem diz: Gordon Gekko (Michael Douglas).

09 — “Frankly, my dear, I don’t give a damn.”
Tradução: Francamente, querida, eu não ligo a mínima.
Filme: E o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939)
Quem diz: Rhett Butler (Clark Gable).

08 — “I coulda been a contender.”
Tradução: Eu podia ter sido um competidor [de boxe].
Filme: Sindicato de Ladrões (On the Waterfront, 1954)
Quem diz: Terry Malloy (Marlon Brando).

07 — “You talkin’ to me?”
Tradução: Tá falando comigo?
Filme: Taxi Driver — Motorista de Táxi (Taxi Driver, 1976)
Quem diz: Travis Bickle (Robert De Niro), mirando-se no espelho.

06 — “Rosebud.”
Tradução (desnecessária): Botão de rosa.
Filme: Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941)
Quem diz: Charles Foster Kane (Orson Welles).

05 — “Mrs. Robinson, you’re trying to seduce me, aren’t you?”
Tradução: Sra. Robinson, está tentando me seduzir, não está?
Filme: A Primeira Noite de um Homem (The Graduate, 1967)
Quem diz: Benjamin Braddock (Dustin Hoffman).

04 — “I know it was you, Fredo. You broke my heart. You broke my heart.”
Tradução: Sei que foi você, Fredo. Você partiu meu coração. Você partiu meu coração.
Filme: O Poderoso Chefão II (The Godfather: Part II, 1974)
Quem diz: Don Michael Corleone (Al Pacino).

03 — “Here’s Johnny!”
Tradução: O Johnny está aqui!
Filme: O Iluminado (The Shining, 1980)
Quem diz: Jack Torrance (Jack Nicholson).

02— “As far back as I can remember, I always wanted to be a gangster.”
Tradução: Até onde me lembro, eu sempre quis ser um gângster.
Filme: Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990)
Quem diz: Henry Hill (Ray Liotta).

01 — “I’m gonna make him an offer he can’t refuse.”
Tradução: Vou fazer uma oferta que ele não pode recusar.
Filme: O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972)
Quem diz: Don Vito Corleone (Marlon Brando).

quarta-feira, 17 de abril de 2013

O intelectual numa sociedade em que o que vale é o financeiro

Manguel em sua casa, na medieval Mondion: paixão à primeira vista
 
 
Por Carlos Costa
Da Revista Cult
 
O básico sobre Alberto Adrian Manguel quase todo leitor sabe: nascido em Buenos Aires em 1948, com menos de um ano se trasladou com a família para Israel, para onde seu pai, Pablo Manguel, fora designado para instalar a Embaixada da Argentina, da qual foi o primeiro titular. Seguindo a vida do pai diplomata, viveu em diversos países. Foi alfabetizado em alemão e inglês. Em algum de seus livros conta o problema que viveu ao fazer o secundário no Colegio Nacional de Buenos Aires, pelo pouco domínio do castelhano – foi nessa época que descobriu as aventuras da Emília, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Confessa que sentiu empatia pela boneca por enfrentar como ela os mesmos problemas com a escola.

Adolescente, Manguel fazia bicos e numas férias de verão alistou-se como ajudante da livraria Pigmalión, no número 512 da avenida Corrientes, especializada em literatura alemã, e que não existe mais. Foi a oportunidade para conhecer um célebre frequentador do lugar, Jorge Luis Borges. Conversa vai, conversa vem, Borges, com 58 anos e quase cego, pediu a Manguel que fosse a seu apartamento, ler em voz alta para ele. Tarefa que o leitor incansável repetiu duas ou três vezes por semana entre os anos de 1964 e 1968. Uma das versões dessa história pode ser lida no livro No bosque do espelho. A amizade com Borges lhe rendeu muitos contatos.

Terminado o secundário, chegou a iniciar, em 1967, um curso na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, mas abandonou os estudos para dedicar-se ao que realmente gostava de fazer: ler. Foi trabalhar numa editora portenha. Em busca de sua vocação, mudou-se para a Europa, trabalhando como parecerista de diversas editoras na Espanha, França, Itália e Inglaterra, lendo textos originais para decidir ou não sobre sua publicação. Passou por casas de prestígio, como a Gallimard e Les Lettres Nouvelles, de Paris, além de Calder & Boyars, em Londres.

Aos poucos, começou também a escrever. Seu primeiro prêmio chegou quando morava em Paris, em 1971: o primeiro lugar num concurso do tradicional diário portenho La Nación, atribuído a uma coleção de contos escrita em parceria com Bernardo Schiavetta (poeta franco-argentino). Talvez esse prêmio influenciasse sua decisão de voltar para a Argentina em 1972, convidado para trabalhar no mesmo jornal La Nación. Mas foi uma permanência curta, pois em 1974 a renomada casa editorial Franco Maria Ricci, de Milão, fez-lhe uma proposta, aceita de imediato. Ali conheceu Gianni Guadalupi, criador de roteiros e guias turísticos, com quem escreveu o Dicionário de lugares imaginários, publicado aqui em 2003. Nesse dicionário, revisita lugares imaginários da ficção mundial, começando da letra A, de Abadia da Rosa (referência ao romance de Umberto Eco), a Zuy, próspero reino dos elfos na Holanda. Também passeia por Atlântida, Xanadu, Shangri-La, a Terra do Nunca, Antares (no Rio Grande do Sul, do romance de Érico Veríssimo) ou o País das Maravilhas, refazendo o caminho da Alice de Lewis Carroll.

A estas alturas nômade assumido, Manguel seguiu em 1976 para o Taiti, convidado para trabalhar na Les Éditions du Pacifique, onde passou meia década. Em 1982, já com 34 anos, instala-se em Toronto, adotando a nacionalidade canadense. Nos próximos dezoito anos dará vazão a sua verve ensaística, escrevendo regularmente em jornais como Globe & Mail, de Toronto, The Times Literary Supplement, de Londres, e os conhecidos New York Times e The Washington Post.

Mora atualmente no vilarejo de Mondion, nos arredores de Poitiers, na França, com os livros amealhados em tantas andanças. Ali, comprou um antigo presbitério (a casa do padre, contígua à igreja) em ruínas e o reformou para transformar em residência. E no galpão dessa construção medieval instalou sua fantástica biblioteca, que soma quase 50 mil exemplares. Foi nessa biblioteca que ele recebeu, num sábado de janeiro deste ano, a reportagem para a entrevista que segue.

O senhor foi alfabetizado em alemão e inglês, mas abre Os livros e os dias com A invenção de Morel, de Bioy Casares, autor argentino. E escreve que quando sonha em castelhano não há diálogos, as pessoas não falam. Isso lembra Fernando Pessoa: “Minha pátria é minha língua”?


Alberto Manguel – [risos] Marguerite Yourcenar disse “minha pátria são meus livros”. Nossa identidade tem origem na própria língua. No meu caso, o inglês e o alemão foram as primeiras línguas até os 8 anos. As ideias se formam para mim primeiro em inglês, hoje mais que o alemão, pois deixei de usá-lo há tempo, embora seja ainda fluente. Quando falo e, sobretudo, quando escrevo em espanhol há como um pequeno esforço de tradução. É curioso até que ponto a língua nos define, define nossa vida intelectual e forma de pensar, inclusive as ideias que temos. Certas ideias que um escritor de língua portuguesa formula, o faz por estar pensando em português. Essa mesma ideia não seria formulada por um escritor de língua inglesa ou chinesa. Há um poema de um argentino pouco conhecido, o José Pedroni: ele escreveu que o momento em que se dá conta de que está enamorado é “quando o você passa para tu”. Um lusófono não poderia ter essa ideia – e esse é um exemplo banal. Uma amostra mais forte é o célebre “to be or not to be”. Isso não ocorreria a um poeta de língua castelhana, pois teria de tomar uma decisão. O “to be” de Shakespeare é ser e estar ao mesmo tempo [risos]. Em espanhol ou português, teremos de escolher, ser ou não ser, estar ou não estar.

No livro de Bioy Casares, o narrador ouve falar do Canadá, e o senhor pontua: “do meu Canadá”. Como se deu o encontro com esse país, que o levou a mudar a nacionalidade em 1985?

Passei toda a infância viajando, e a partir dos 20 anos voltei a viajar. Nunca senti que a Argentina, país em que nasci, fosse a minha raiz. Era um país que aparecia no meu passaporte e pelo qual tenho carinho, sobretudo pelos anos de minha educação secundária no Colegio Nacional de Buenos Aires. Mas nacionalidade é outra coisa, o apego a uma comunidade com sua história, sua língua e sua identidade cultural. Em 1982, por uma série de circunstâncias, fui ao Canadá. Um dos meus livros havia sido publicado com êxito ali, mas não sabia nada sobre o país. Descobri um lugar único, em que as noções de direito cívico têm sentido. Onde ser cidadão se traduz num sentido ativo como foi para os atenienses. Um país que não impõe de maneira forte o preconceito de sua própria identidade. Nunca vivenciara isso até então. Vivendo agora na França, não poderei nunca ser um francês. Precisaria, antes de tudo, de uma longa linhagem de sangue francês e, sobretudo, aceitar o preconceito francês de que eles são os melhores do mundo ou que a figura de Charles de Gaulle deve me estremecer. Bom, nada disso ocorre.

É o que diz Victor Hugo no monumento de uma praça aqui em Poitiers: “La France éternelle”.

Não é para tanto. No Canadá, diferentemente, há algo muito curioso: é o único país de todas as Américas que não nasceu de uma revolução, de uma luta por separação. Não nasce do desejo de separar, mas do desejo de não se separar. A nacionalidade nasce ali de uma vontade de tomar e assimilar tudo o que entra no Canadá. Encontrei-me com um país de identidade aberta. Minhas experiências argentina, polinésia, francesa ou inglesa passaram a formar parte da minha vivência de Canadá. Dou um exemplo. Nos anos 1980 houve forte migração de sikhs para o Canadá. Concentrados na região do Punjab, entre Índia e Paquistão, eles são conhecidos por seus turbantes e punhais. Muitos sikhs são cidadãos canadenses e todo cidadão canadense tem o direito de entrar para a Polícia Montada do Canadá, com seu uniforme de ombreiras grandes, jaqueta vermelha e botas. Mas um sikh, ao entrar para a polícia montada, não pode trocar o turbante por um chapéu. Ele tem de usar turbante. Em qualquer outro país, por exemplo, se sou brasileiro e quero entrar no Exército, mas não posso usar a cor verde oliva porque minha religião não permite: não pode, não entra. Não irão mudar a cor do uniforme por causa da minha religião. No Canadá pode. Fizeram então um decreto dizendo que no uniforme da polícia montada pode-se usar chapéu ou turbante. O símbolo não é imposto de fora para dentro, e sim ao contrário. Isso até provoca um problema no sentido de que o canadense às vezes se sente inseguro de sua identidade justamente por ser tão aberta. Nós sempre estamos buscando definições precisas: sim ou não, branco ou negro. Gostei de viver em uma sociedade onde não há essa tensão e rigidez. Por isso me tornei cidadão canadense.

Em A cidade das palavras o senhor discute o que nos mantém juntos e nos faz reconhecer-nos como parte de um grupo. Em contrapartida, nos diferencia dos estranhos a esse grupo. Como fica o homem nas cidades contemporâneas?

Cada sociedade trata de se definir para criar uma circunferência dentro da qual possa atuar. Ao criar esse círculo cria-se o espaço de fora e a presença do outro que está além das muralhas da cidade. Ao mesmo tempo, faz com que os cidadãos que atuam dentro do círculo queiram buscar o que está fora. Nesse jogo de tensões entre o que está permitido e o proibido, o que está incluído e o que está excluído, é que acontece a vida da sociedade. Uma sociedade que não tem essa tensão é uma sociedade morta.

E por que veio parar em Poitiers?

Lugares chegam a nós da mesma maneira que pessoas. A gente se enamora de alguém ou alguém se converte no melhor amigo por absoluta casualidade. Com as cidades sucede o mesmo. Estava buscando um lugar para viver na França. Eu não dirijo carro e queria um lugar perto de uma estação de trem. No Canadá era complicado encontrar esse lugar, pois não há trens no país e viver na cidade era caro. Tudo parecia caro aqui na França também. Convidaram-me a fazer uma noite de autógrafos na livraria La Belle Aventure, em Poitiers. E descobri uma cidade que me fascinou. Arraigada na Idade Média, com a igreja românica mais linda de todo o mundo. E havia uma oferta de casas que custavam pouquíssimo. Assim descobri esse presbitério em Mondion, e as pessoas daqui foram muito generosas comigo.

Aqui em Poitiers fica a casa onde nasceu Michel Foucault. Vargas Llosa, no recente A civilização do espetáculo, faz uma crítica cruel a Foucault, Lacan, e em especial a Baudrillard, como cúmplices da perda de respeito pelos intelectuais após Maio de 1968.

Não sei se esses juízos absolutos são úteis. Dizer que Lacan é um imbecil ou que Foucault não vale nada. Isso não são argumentos intelectuais. São posições absolutistas [longa pausa]. A mim interessam ideias particulares, não sou um leitor de teorias. Penso que na obra de Foucault ou de Lacan encontram-se muitas ideias interessantes.

Lacan menos, pois ele não escreveu, escreveram por ele.

São notas tomadas de seus cursos. O mesmo se pode dizer de Platão, já que ele não escrevia, os alunos da academia tomavam nota. Não sei como responder a esses argumentos absolutistas porque não os comparto. Para mim, cada ideia vale no contexto em que se lê e no sentido em que se utiliza. Já a respeito de Vargas Llosa escrevi bastante e de forma crítica. No livro No bosque do espelho há dois ensaios sobre ele, “O fotógrafo cego” e “Os espiões de Deus”. Neles, tomo elementos de sua ficção e de seus ensaios e faço uma comparação e digo que o ensaísta Vargas Llosa não leu o novelista Vargas Llosa. Há contradições ferozes e há ideias que se aproximam a certas noções fascistas em seus ensaios, racista em outros casos, numa contradição com sua ficção. É interessante isso.

Llosa fala da perda da importância do intelectual hoje.

O intelectual não tem prestígio numa sociedade em que o que vale é o financeiro. As pessoas falam todo tempo que as crianças e os jovens não leem. Não é um problema isolado, mas consequência. Instruem a não nos ocuparmos de coisas que tomam tempo, que são profundas, lentas ou difíceis. Dizer que o intelectual não tem importância hoje leva aonde? É um tema mais profundo: que tipo de sociedade estamos propondo. Hanna Arendt define cultura como aprendizagem da atenção. Aprender a prestar atenção. Toda a cultura que alimentamos hoje é contra a atenção, com um elenco de gadgets que requerem um salto constante de uma coisa a outra. Interrupção de toda atividade pelo toque do celular, de e-mail, do que seja, o que implica que a conversação atenta e longa é menos importante. Uma estrutura estética para todas as artes visuais em que a duração do período de atenção, o parágrafo visual, é demasiadamente breve. O sistema utilizado pelas séries televisivas é formulado assim: alguém fala algo, o outro responde, segue nova cena. Há um corte rápido para dar lugar ao comercial, também editado muito freneticamente. Tudo contribui para a educação da atenção breve. Educam-se as crianças para que não dediquem a algo atenção maior do que cinco minutos. Depois de um minuto já muda de canal ou deixa o que está fazendo, muda a conversação. Isso é grave porque o tempo de reflexão deveria ser mais longo do que o tempo de observação. Vejo algo e logo precisaria de tempo para pensar, discutir ou experimentar novamente se fosse o caso. Estamos eliminando isso de nossa sociedade, para dar lugar ao elemento mais necessário que temos hoje, que é ser consumidor. Este necessita não refletir nada, não prestar atenção, porque um consumidor que preste atenção, que reflita quando olha um jeans a 500 euros pode achar ridículo e pensar: por que comprar? Se ele refletir, não irá comprar, não irá consumir. É fundamental que ele veja a publicidade e diga “eu quero comprar”, e passamos à próxima etapa ou fase, como num videogame. Isto parece ser o problema essencial. Civilização do espetáculo, como fala Llosa, sim. Mas por quê? Como? E, sobretudo, o que fazer para mudar?