sexta-feira, 22 de março de 2013

Os limites da crítica


Por Evaldo Mocarzel 
Da Revista Bravo
   
De que maneira analisar um filme como Colegas? Com rigor implacável ou com o paternalismo destes novos tempos inclusivos? São questões que me vêm à mente após o pedido de escrever um texto crítico sobre o longa-metragem dirigido pelo carioca Marcelo Galvão e estrelado por um trio de atores com síndrome de Down.

Toda crítica envolve uma militância, alertou o teórico francês Christian Metz em A Significação no Cinema. Toda crítica esconde camadas de subjetividade por baixo do seu manto solene de objetividade. De quando em quando, todo crítico é acometido por algum tipo de cegueira analítica: ora são afetos e relações pessoais que podem flexibilizar o rigor dos textos, ora são idealizações materializadas em artistas que se tornam a mais fiel tradução da própria militância.

O fato é que amo a crítica. Trabalhei durante muitos anos no jornalismo cultural e, por quase uma década, chefiei uma equipe de críticos atuando nas mais diferentes manifestações artísticas. Acredito piamente que o
processo da arte só se realiza em sua plenitude no olhar erudito do crítico, que vai contextualizar determinada obra na história da humanidade, deslindando preciosidades estéticas, temáticas e filosóficas que, em muitos casos, passam despercebidas até mesmo para os próprios criadores.

Acho sinceramente que a crítica é um espaço de resistência fundamental nessa massacrante indústria cultural que tanto nos sufoca. Por mais que admire e respeite quem a exerce, nunca me arrisquei por esse caminho, com exceção de um breve período em minha juventude. Há diferentes tipos de crítico, mas sempre me interessei por aqueles que enveredam pelo ensaísmo. Não gosto, porém, de textos que transbordam de tanto entusiasmo diante de uma “obra-prima” nem dos cruelmente destrutivos, sem um único aceno de generosidade. Vale a advertência do cineasta francês Robert Bresson: “Não há louvação ou crítica demolidora que não parta de um equívoco”.

Cá estou eu discorrendo sobre a crítica e ao mesmo tempo me esquivando da análise de Colegas. Há uma camada de subjetividade na minha fruição do filme que me faz ver com olhos generosos a participação de dois atores: Ariel Goldenberg e Rita Pokk, também “personagens” do documentário Do Luto à Luta, que realizei há alguns anos em parceria com o Circuito Espaço de Cinema. Pedi à minha companheira, a produtora Letícia Santos, que fez a pesquisa do filme, para encontrar alguém com síndrome de Down que topasse dirigir uma sequência dentro do documentário.

Assim conheci Ariel, que veio acompanhado de Rita, sua noiva na época. Ele revelou uma influência do cineasta norte-americano Steven Spielberg e por isso criou um “efeito especial”. Rita também acabou dirigindo a mesma sequência, com uma dramaturgia simples: um pai recebendo, na maternidade, a notícia de que seu filho havia nascido com síndrome de Down. Ela transformou totalmente a cena. Introduziu uma enfermeira, pois queria no quadro uma figura de mulher, e fez alterações radicais na dramaturgia. A mãe agora morria no parto, para que o pai assumisse suas responsabilidades. Uma recriação forte e feminista. Mais: ela queria um bebê no centro da imagem, e a produção teve de pegar emprestado o menino Jesus da capela, numa área desativada da Maternidade São Paulo, onde filmamos. Rita queria pathos, drama, e confessou influência do escritor norte-americano Stephen King. A experimentação foi uma grande curtição para todos, menos para mim. Para não interferir na mise-en-scène do casal de diretores, fiquei horas fora do set esperando numa padaria.

Revival Neorrealista

Em virtude dessa experiência, além da longa entrevista que fiz com eles, como não vibrar com Ariel e Rita, e também com Breno Viola, no filme de Marcelo Galvão? Não há distanciamento e objetividade que resistam.

Colegas é um road-movie que acompanha as peripécias de três personagens com síndrome de Down em busca de aventuras e dos próprios sonhos. Trata-se de uma ficção assumida, que pega carona numa das grandes tendências do cinema brasileiro e mundial: uma espécie de revival do neorrealismo italiano, em  que não faltam atores não profissionais e muletas documentais para garantir a “veracidade” de imagens ficcionais. Nada contra. Essa tendência, hoje tão presente nos chamados “filmes de arte”, gerou diversas obras-primas. O problema é tornar-se um modismo contemporâneo, como já vem ocorrendo.

Normalidade

Vi Colegas em casa, em DVD, com a família ao meu redor: Letícia e os filhos Laura (16 anos), Joana (13) e Matheus (10). No final da sessão, Joana, que tem síndrome de Down, comentava que gostara bastante do filme, sobretudo da atuação do trio principal: Ariel, Rita e Breno. Ela me disse que havia se divertido. Sua atenção foi muito grande durante a projeção.

Fiquei me perguntando: o que é a síndrome de Down? No meu dia a dia, nem penso mais nisso. Hoje encaro a Síndrome de Down na Joana como uma característica da personalidade dela, à semelhança de seus olhos castanhos bem claros, quase esverdeados. Sob vários aspectos, Joana é a mais normal dos meus três filhos. Jamais foi para a cama dos pais no meio da noite, ao contrário dos outros dois. O que é a normalidade? Quando finalmente viveremos num mundo em que as diferenças poderão desfilar livremente a
exuberância de suas potencialidades e as fragilidades de suas deficiências? Sem nenhum tipo de preconceito equivocado, fruto da falta de informação. E também sem as armadilhas do fundamentalismo inclusivo, que pode ser tão nefasto quanto a pior das discriminações.

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