quinta-feira, 7 de março de 2013

Jornada da alma

"Senecio", de Paul Klee (1922)

Da Revista Cult
Por Christian Ingo Lenz Dunker

A história da alma é a história de nós mesmos como seres dispostos a organizar nossa experiência de tal modo que ela possua sentido, ordem ou finalidade. E se passa, com a ideia de alma, algo parecido com nossa preocupação com a história, ou seja, ela só nos desperta atenção quando parece mal contada. Talvez resida nisso sua vocação para a eternidade já anunciada por Platão, ou seja, quando tudo está em seu lugar, quando tudo está em seu tempo e a seta do destino está cravada no coração da ordem do mundo, a alma está esquecida, desimportante, como o ar que respiramos. No entanto, quando perdemos a alma, quando ela ameaça evaporar-se, desmanchando-se no ar como tudo que é sólido, é aí neste instante que a reconvocamos.

Aparentemente tudo o que poderíamos fazer com a ideia de alma, nós podemos fazer melhor sem ela. Em vez de chamá-la por seu nome vago e incerto de psique, poderíamos defini-la mais apropriadamente como nous, a inteligência ordenadora ou como timós, este senhor que nos faz parar para perguntar como agir quando nos esquecemos de quem somos. Quiçá estaria a alma fora de nós, como argumentavam certos pré-socráticos, ainda a associá-la com a respiração, com o ar e até mesmo com o diafragma. E, como o ar, sem ela você morre, mas com ela em demasia sobrevém a vertigem.

As histórias da alma são sempre de perda, desencontro ou traição. É assim na mitologia, em que Psiquê é oferecida em sacrifício ao ainda não revelado deus Eros. Raptada e impedida de ver aquele que a protege, ela trai seu acordo e então se vê novamente exilada em tarefas infinitas para poder, mais uma vez, se reencontrar, então, com o deus do amor. Não haveria alma sem jornada da alma. E é assim que Ulisses, Sócrates e São Paulo, os tais inventores da alma, sempre a fizeram aparecer. No meio de uma viagem, dando unidade àquilo que permanece o mesmo ao se transformar e que se está sempre a se transformar no mesmo. Descobrindo-se enganada para depois saber-se sapiente desde sempre. Convertendo-se em outra e escolhendo seu próprio senhor.

Teria sido Platão o grande farmacêutico da alma, aquele que lhe deu todas as formas e a revestiu de unidade e identidade, na medida mesma em que a dividiu entre experiências sensíveis e inteligíveis, fazendo-a cocheira desta grande jornada entre a paixão e a razão. Garantida pela impossibilidade de seu próprio desaparecimento, estaria a alma mais disposta a aventurar-se em seus descaminhos duplicantes. Não seria por outro motivo que os filósofos, poetas e demais anatomistas da alma se dividem entre os que se dedicam a cuidar da alma (epimeleiaheatoû) e os que investem em conhecê-la (gnôthiseauton). E, aparentemente, a alma se cuida com palavras, com cantos, com gestos, mas, sobretudo, com outras almas.

Quando não me perguntam o que é o tempo eu sei, mas quando me perguntam eu já não sei mais. Típica diabrura da alma vestida com um de seus nomes mais enigmáticos: o tempo. Eternamente presente, quando sai da escuridão de sua caverna, ela se torna, com Santo Agostinho, dilacerada pelo tempo, dividida entre o bem e o mal. Confundida com a sua própria história, contada como confissão biográfica, a alma só pode ser bem reconhecida quando está fora de si. E é pelo corpo que aprendemos a deduzir suas versões e contraversões, extensas, coisificadas ou pensantes.

De repente não foi mais preciso pensar se é com a alma que se pensa, ou com o espírito, ou com a mente. Desde Descartes e sua companhia da modernidade ocidental este seu atributo ínfimo chamado pensamento assumiu o encargo de representá-la e ela adquiriu a capacidade de enlouquecer. E enlouquecer quer dizer fazer tudo o que ela fazia antes, do trágico à salvação cristã ou pagã, só que agora sem a companhia do corpo, e sem seu mestre condutor, a razão. De condutora ela passa então a conduzida, de conhecedora a conhecida, de essência preciosa torna-se agora herança maldita de imemoriais tempos pré-modernos. Tudo estará perdido para a alma se ela não puder se reencontrar como imagem estética, unidade e identidade de uma experiência perdida, mas agora tolerada em espírito lúdico e criador.

É então que ela adquire novos companheiros de viagem. Deus, a alma e o mundo, dirá Kant, são nossas ideias reguladoras. Faróis dos quais, como as ilhas rochosas nas quais os colocamos, estão ali, mas não é para que cheguemos muito perto. São avisos que representam o que, não podendo ser conhecido diretamente, inspira a liberdade e a universalidade, perdida de outra forma, para a própria razão. Sem isso, Hegel não teria chegado nesta sua ideia sem precedentes de contar a história da alma por meio de suas ilusões e desilusões, de seus momentos de crença e ceticismo, de reviravolta de si contra si. E sem isso os alienistas não teriam inventado esta nova prática de curar a alma de sua própria mania de perder-se, de transformar-se em outra coisa, de trocar-se por uma forma qualquer de mercadoria, de consciência, de cultura. Não há outro meio de falar da aparição do indivíduo sem mencionar sua sombra perdida, sua dissolução vindoura, seu quase nada de valor pelo qual Fausto a trocou por um punhado de benesses interesseiras. Foi por meio de subterfúgios deste tipo que a alma tornou-se melancólica, romanticamente rediviva, nietzscheanamente repetitiva.

A alma de uma época sem alma, o encanto de um mundo sem encanto, o retorno de um destino que nunca aconteceu. Marx, Durkheim e Weber não teriam feito o que fizeram sem desprezar a alma. Assim como não teria nascido a ideia de povos, línguas e épocas que também têm alma. Vê-se então como esta mania da alma torna-se outra coisa: espírito ou sujeito, indivíduo ou pessoa, consciência ou inconsciência, não é de agora, mas sempre se apresenta como se fosse. Não bastassem seus dramas próprios, ainda virá nosso Machado de Assis dizer que não temos uma alma, mas duas; e Guimarães a completar que ela é, no fundo, nonada.

Matéria ou memória, dirá Bergson, a alma deve reencontrar sua própria experiência, reaprender a falar em nome próprio e assumir sua função, mesmo que sua função seja representar aquilo a que só damos valor quando perdemos. Função que é “nos fazer perceber o que não percebemos naturalmente”. Alma, esta cegueira da visão, ninguém mais dirá que seus olhos são como janelas e que as palavras (pharmakon) são teu veneno e tua cura. Digo dizer isso acreditando; porque a alma é, no fundo, esta sede de fé, de esperança e de todos os sentimentos improváveis.

Ainda abalado pela crise e pelos custos necessários para constranger a alma a caber em sua esguia roupagem científica ou em sua folgada toga ética, foi Husserl quem teve a coragem e a covardia de convocar a alma a voltar, uma vez mais, às coisas mesmas, como se ela alguma vez tivesse deixando-as para trás. Mas agora reconhecendo que a subjetividade da alma é seu próprio sentido e que o sentido da alma é sua própria subjetividade. É daí a sua compulsão a extraviar-se, sua afeição pelo negativo, seu complexo de impostura de ser outra coisa.

Como autêntico médico da alma, foi Freud aquele que a reabilitou como figura de nosso sofrimento e morada de nosso mal-estar. A dor da alma é a dor de quem não se contenta em ser um “aparelho”, um “movimento”, um “motor erótico” dentro do homem. A alma torna-se agora indissociável de sua companheira sem a qual a sua história não poderia ser contada, a palavra. Daí que seu método de cura seja, ao mesmo tempo, roubado aos poetas e antecipado aos filósofos. É a alma restituída ao mundo, mais além do ego ou do sujeito, princípio hipotético de reconhecimento de si mesmo, de si mesmo como outro, até mesmo de si mesmo como coisa. A alma não é mais senhora em sua própria morada, diria o autor de A Interpretação dos Sonhos. É verdade, mas quem disse que a alma foi feita para ter uma morada?

A jornada da alma não é uma viagem no tempo, diante do qual todas as coisas vão passando e a alma, como teórico cocheiro platônico, vai vendo, escolhendo, lembrando, intuindo ou associando livremente. Talvez a alma só seja um artifício para tornar a viagem possível e, depois, tal qual a imagem proposta por Wittgenstein, ela suba de volta para as nuvens e puxe sua escada para cima mais uma vez.

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