terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Clarice Lispector: Jornalista de Carteirinha

Por Oscar Pilagallo
Da Revista Bravo

Passeia pela Cinelândia “uma senhora já na casa respeitável dos 60, com o número de anos dobrado em banhas estranguladas num cinto flexível de 20 centímetros de largura e de cor de beterraba cozida. A gordura ia pulando em toda a circunferência e a mulher, felicíssima da vida, saltitando, como um periquito na alface”.

O parágrafo bem que poderia pertencer a uma crônica sobre a cena carioca. Poderia também ser excerto de romance ou conto em que o narrador tratasse um personagem com humor ferino. De um jeito ou de outro, estaríamos no campo da literatura. O texto, no entanto, não tem tal propósito. É apenas um artigo descartável com conselhos sobre elegância para as mulheres modernas do início dos anos 50. Assinado por certa Tereza Quadros e publicado em Comício, fugaz semanário do Rio de Janeiro, nunca teria emergido dos arquivos se por trás do pseudônimo não se escondesse a promissora romancista que, quase dez anos antes, lançara sua primeira obra, Perto do Coração Selvagem, com calorosa acolhida da crítica: Clarice Lispector (1920-1977).

Resgatado das traças da história pela professora de literatura Aparecida Maria Nunes, o artigo da seção Entre Mulheres de 19 de setembro de 1952 integra a produção da autora de A Hora da Estrela para jornais e revistas, em parte inédita em livro. Esse é o escopo de Clarice na Cabeceira – Jornalismo, com crônicas, reportagens, entrevistas e contos, além de comentários sobre moda, etiqueta e afins, que foi publicado às vésperas dos 35 anos da morte da escritora.

A reunião de textos de circunstância, pelos quais a própria autora parecia não nutrir grande apreço, estaria apenas raspando o fundo do tacho clariciano se não jogasse alguma luz sobre a biografia e a composição literária da escritora que, identificada por sua introspecção, sintaxe particular e imagens inusitadas, construiu um universo ficcional plenamente reconhecível.

Sem Deus e Contra o Estado

Um de seus primeiros trabalhos jornalísticos, de 1941, para a revista A Época, da Faculdade Nacional de Direito, permite, por exemplo, entrever sua visão de mundo. “Não há o direito de punir. Há apenas o poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele.” Segundo a estudante, “a guerra, grande crime, não é punida porque, se acima dum homem há os homens, acima dos homens nada mais há”.

Trata-se de uma declaração fascinante, diz o pesquisador norte-americano Benjamin Moser. O biógrafo de Clarice vê naquelas palavras uma dupla afirmação: de ateísmo, por parte de uma jovem educada na tradição judaica, e da ilegitimidade do Estado, feita em plena ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945).

As pinceladas biográficas são apenas uma pequena parte do que o livro oferece. Ao leitor que se aproxima da prosa de Clarice pela primeira vez, a coletânea serve como porta de entrada para um mundo em que o acesso é restrito pela alta voltagem de uma criatividade que, ao subverter convenções da língua, pode barrar a caminhada dos menos perseverantes. A autora revela plena consciência da diferença percebida entre os dois registros de sua produção: “Certas pessoas achavam meus livros difíceis e, no entanto, achavam perfeitamente fácil entender-me no jornal, mesmo quando publico textos mais complicados”.

A Clarice jornalista não era ignorada pelo público que primeiro a conheceu por intermédio dos livros. Ao menos quatro volumes já haviam recuperado parte do material disperso: De Corpo Inteiro e Entrevistas, que trazem uma seleção das conversas com personalidades; A Descoberta do Mundo, com crônicas para o Jornal do Brasil; e Outros Escritos, com conferências, reportagens, anotações pessoais e ensaios. Clarice na Cabeceira vem se somar a essas coletâneas, que refazem a trajetória da escritora na imprensa.

Receita para Matar Baratas

Nádia Batella Gotlib, autora de Clarice, uma Vida que Se Conta, estabelece uma distinção entre os textos literários – que se valiam da mídia apenas como veículo de divulgação – e aqueles escritos especialmente para jornais e revistas. Neles, a marca especial da escritora ganha traços particulares. “São textos em que tudo cabe, bem ao gosto de Clarice, numa mistura diferenciada de temas, linguagens, situações”, afirma a estudiosa.

Gotlib identifica na produção jornalística embriões da ficção. É o caso da sua “receita de assassinato” de baratas, objeto de duas colunas muito parecidas, publicadas em 1952 e 1960. O método consiste em colocar gesso numa mistura que, para o inseto, é uma iguaria. “Na manhã seguinte dezenas de baratas duras enfeitarão como estátuas a vossa cozinha, madame”, escreve Clarice. O fragmento, posteriormente reinventado como conto (A Quinta História) e romance (A Paixão Segundo G.H.), exibe vestígios da contundência mais tarde potencializada na ficção. “É uma literatura implacável e deliciosamente perversa”, avalia Gotlib.

Os textos para a imprensa também servem de espaço privilegiado às reflexões sobre a escrita. Em repetidas ocasiões, Clarice Lispector retorna ao tema, com definições complementares sobre seu ofício. Em notas avulsas publicadas na revista Senhor, em 1964, ela coloca a questão nos seguintes termos: “Escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra morde a isca alguma coisa se escreveu”. E arremata em seguida, com a perspectiva da ficcionista: “Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu”.

Anos depois, no Jornal do Brasil, confessaria: “A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo”. Ela exemplifica: “Às vezes [a língua] reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase”. Mas a escritora não termina o parágrafo sem deixar claro que até aprecia as dificuldades: “Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope”.

Nem todos achavam que ela poderia cavalgar a língua a seu bel-prazer. O linotipista do jornal provavelmente era um deles. Na época, o responsável pela composição da página não raro se arvorava o direito de corrigir os autores. Clarice – transgressora capaz de começar o romance Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres com uma vírgula – não gostava que lhe tirassem vírgula nenhuma do lugar. Certo dia, dirigindo-se diretamente ao operário, ela disse: “A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim”. Depois veio a bronca, suavizada pela admissão de que ela era mesmo diferente: “E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar”.

A respiração da frase, aliás, é tema recorrente de Clarice. Ainda no JB, a romancista voltaria ao assunto um ano depois de chamar a atenção do funcionário. “Escrever é saber respirar dentro da frase”, explicou. E agregou ao trecho uma ponderação que valeria mais que boa parte da exegese acadêmica sobre sua obra: “É pôr algum silêncio tanto nas linhas como nas entrelinhas para que o leitor possa respirar comigo, sem pressa, adaptando-se não só ao seu ritmo como ao meu, numa espécie de contraponto indispensável”.

A escritora não fazia questão de desobedecer as regras da língua portuguesa, apenas não se importava tanto assim com a norma culta. “Tenho o maior respeito pela gramática, e pretendo nunca lidar conscientemente com ela”, avisou seus leitores. “Em matéria de escrever certo, escrevo mais ou menos certo de ouvido, por intuição, pois o certo sempre soa melhor.” Se o resultado era digerível para o leitor médio, é porque Clarice procurava se comportar: “Não se assustem, nesta coluna esforço-me por não usar uma sintaxe que me é íntima e natural”.

Clarice foi uma jornalista relutante. Receava que a atividade pudesse comprometer sua ficção. “Como não deixar o jornalismo interferir com a literatura? Tenho medo”, comentou em 1968 ao entrevistar o dramaturgo Henrique Pongetti (1898-1976). Ela explicou o que a afligia: “Mesmo escrevendo uma crônica só uma vez por semana, sinto já um certo desgaste. [...] O que me dá medo é o de chegar, por falta de assunto, à autorrevelação, mesmo à minha revelia”. Em outra ocasião, acrescentaria: “Sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma”.

As entrevistas são um capítulo à parte. Clarice conversou com personalidades, em geral de seu círculo de amizades, e transcreveu os diálogos no Jornal do Brasil e nas revistas Manchete e Fatos e Fotos. Aparecida Maria Nunes contabiliza cerca de 100 entrevistas realizadas, um quinto das quais é reproduzido em Clarice na Cabeceira. Dessas, várias são inéditas em livro, inclusive a primeira, de 1940, com o poeta Tasso da Silveira (1895-1968), e a última, de 1977, com a artista plástica Flora Morgan Snell.

Nesses encontros, ela se expunha pessoalmente e opinava a respeito dos interlocutores. Sobre a atriz Elke Maravilha, por exemplo, lançou um olhar penetrante: “Capricha muito na arte de viver, mas o que sabe mesmo é interpretar o seu melhor personagem”. A conversa data de dezembro de 1976, um ano antes da morte da escritora. “Foi amor à primeira vista”, disse Elke. A escritora notou que a entrevistada chegou com um “vestido longo de cetim branco, com pala de brocados”. Pouco depois, Elke a presenteou com um modelo igual, que ela própria costurou a mão.

Sem pudores, Clarice estabelecia com os entrevistados uma relação que ia muito além do contato profissional. O encontro em 1968 com Tom Jobim (1927-1994) é antológico. A certa altura, depois de uma divagação de um dos pais da bossa nova, ela solta: “Não estou entendendo nada do que nós estamos falando, mas faz sentido”. E mais adiante: “Estou simplesmente misturando tudo, mas não é culpa minha, Tom, nem sua: é que esta entrevista foi se tornando meio psicodélica”. O compositor não demora a revelar as circunstâncias em que rola o papo: “Desculpe, eu não quero mais uísque por causa da minha voracidade, tenho é que beber cerveja porque ela locupleta os grandes vazios da alma. Ou pelo menos impede a embriaguez súbita”. E Clarice não deixa de informar o leitor: “Foi devidamente providenciada a ida da empregada para comprar cerveja”.

A jornalista gostava de provocar. Também em 1968, olhos nos olhos de Chico Buarque, ela comentou: “Você [...] deslumbrou-se com as próprias capacidades, entrou numa roda-viva e ainda não pôs os pés no chão”. E ele: “Tenho cara de bobo porque minhas reações são muito lentas, mas sou um vivo”. Mais adiante, a repórter cutucou novamente: “Você também tem o ar de quem é facilmente enganado: é verdade que você é crédulo ou está de olhos abertos para os charlatães?” E Chico: “Não é que eu seja crédulo, sou é muito preguiçoso”. No fim, como fazia em quase todas as entrevistas, ela perguntou: “O que é o amor?” O compositor de A Banda disse não saber definir e devolveu a pergunta. “Nem eu”, respondeu a romancista.

Assim era Clarice Lispector. Ela não queria explicar os sentimentos, as pessoas, o mundo. Só queria escrever, a seu modo, sobre eles.


De Frente com Clarice 
Algumas declarações tiradas de entrevistas feitas pela escritora

“Sou um sujeito que defende ferozmente a sua solidão. (...) Eu não quero ser nem canalha da esquerda nem canalha da direita.” Do dramaturgo Nelson Rodrigues, em 1968

“Sou contra a arte de consumo. Claro, Clarice, que eu amo o consumo... Mas do momento em que a estandardização de tudo tira a alegria de viver, sou contra a industrialização. Sou a favor do maquinismo que facilita a vida humana, jamais da máquina que domina a espécie humana. Claro, os artistas devem preservar a alegria do mundo. Embora a arte ande tão alienada e só dê tristeza ao mundo. Mas não é culpa da arte porque ela tem o papel de refletir o mundo. Ela reflete e é honesta. Viva Oscar Niemeyer e viva Villa-Lobos! Viva Clarice Lispector! Viva Antônio Carlos Jobim!” Do compositor Tom Jobim, em 1968

“Às vezes, estou procurando criar alguma coisa e durmo pensando nisso, acordo pensando nisso – e nada. Em geral, eu canso e desisto. No outro dia, a coisa estoura e qualquer pessoa pensaria que era gratuita, nascida naquele momento. Mas essa explosão vem do trabalho anterior inconsciente e aparentemente negativo.” Do cantor Chico Buarque, em 1968

“Você prefere inclusive ser uma grande escritora. Mas eu renunciei há muito tempo a essa vaidade. Quero comer, beber, fazer amor e morrer. Não me considero responsável pela literatura.” Do cronista José Carlos de Oliveira, em 1968

“Você, Clarice, é uma pessoa com uma dramática vocação de integridade e de totalidade. Você busca, apaixonadamente, o seu self – centro nuclear de confluência e de irradiação de força – e essa tarefa a consome e faz sofrer.” Do psicanalista Hélio Pellegrino, em 1977

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