quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A nada santa alma freudiana


*Por Mario Eduardo Costa Pereira
Da Revista Cult

Uma constatação salta aos olhos de qualquer observador de boa fé: para o espirito técnico-cienti_ co e pragmático dos tempos de hoje, a noção de “alma” goza de péssima reputação. Vista com desconfiança por suas conotações teológico- religiosas, por sua cumplicidade histórica com a metafísica platônico-cartesiana e, portanto, com o dualismo mente-corpo, ou ainda por seu ar de romantismo extemporâneo, a alma decididamente já conheceu dias melhores.

Entretanto, somos igualmente forçados a reconhecer que ela permanece viva e vigorosa na linguagem quotidiana através sua raiz grega de Psyquê, seja em nossas referências intuitivas ao campo mental, seja no uso técnico que evoca um suposto objeto “psíquico”, como na nomeação de disciplinas científicas que justamente se ocupam do mundo anímico: a psiquiatria, a psicologia, a psicopatologia, a psicofarmacologia, etc. A lista é longa, mas não se pode esquecer que até mesmo Freud decidiu chamar a disciplina pela qual se imortalizou de “psicanálise”. Mas o que poderia significar, em última instância, uma análise da… alma? Estaríamos, com esse termo, diante de resíduos platônicos ou românticos depositados na raiz mesma do pensamento freudiano?

Em um momento precoce de sua obra, mais precisamente em 1890, Freud redige um artigo dedicado a especificar sua concepção de “tratamento psíquico” [Psychische (seelische) Behandlung], ou seja, de um tratamento “anímico”. Ele o inicia assim: “Psychê é uma palavra grega e sua tradução alemã é alma [Seele]”. Em outros termos, ao incorporar a seu vocabulário técnico a Psychê dos antigos – de maneira direta ou pela via do Seele alemão – Freud assume implicitamente as conotações dessa tradição: como princípio de vida, de inteligibilidade e de afetividade. Contudo, a essa referência à tradição grega, o criador da psicanálise acrescenta uma precisão decisiva: a expressão “tratamento psíquico” não busca tanto enfatizar o objeto sobre o qual ele supostamente se aplica, “a alma”, mas o meio pelo qual se exerce, ou seja, um meio próprio à alma: a palavra. Uma cura pela palavra, um tratamento pela conversa, uma talking cure, são todas definições que explicitam a especificidade da clínica freudiana, a qual busca ter acesso à alma do homem que sofre dando-lhe a palavra, da maneira mais espontânea possível, deixando-lhe dizer tudo o que lhe vem à mente. Para Freud, a “alma” e a palavra encontram-se intrinsicamente articuladas.

Em um livro que marcou época, Freud e a Alma Humana (1982), o controvertido psicanalista austríaco-americano Bruno Bettelheim criticara duramente a tradução inglesa das obras completas do autor da Psicopatologia da Vida Quotidiana, considerando que a escolha do termo inglês mind para expressar o Seele freudiano (como é explicitamente o caso da tradução escolhida para a frase do artigo de 1890, acima mencionada) introduzia um racionalismo e um cientificismo ausentes no texto original: “Freud jamais fraquejou em sua convicção de que era importante pensar em termos da alma quando se procura compreender o seu sistema, pois nenhum outro conceito poderia refletir de forma tão clara o que ele pretendia dizer; e não pode haver dúvida nenhuma que ele se referia à alma e não à mente, quando escrevia seelisch” (p. 89).

De maneira mais serena, o Dicionário Comentado do Alemão de Freud, de Luiz Hanns (1996), lembra que, de fato, aescolha de Seele ao invés do termo grego Psychê dava ao discurso freudiano uma conotação mais coloquial e menos técnica. Contudo, a tradução de Seele por “alma” no português introduz uma conotação místico-religiosa que não existe naquela palavra completamente laica em alemão. A “alma” freudiana não corresponde à anima latina, sobretudo enquanto princípio metafísico vital.

De fato, em Freud trata-se de uma “alma” muito particular que em nenhum caso se confunde com uma substância, ainda que imaterial, como proporia uma concepção cartesiana. Ao contrário, sua completa virtualidade é explicitamente evocada através dos múltiplos esforços freudianos para figurar um “aparelho da alma”, um “aparelho psíquico”, ou ainda, um “seelischer Apparat”. O modelo mais evidente é o famoso “esquema ótico” apresentado no capitulo 7 da Interpretação dos Sonhos (1900), no qual o aparelho psíquico é representado como um sistema de lentes de um telescópio, colocadas em sequência, que seriam atravessadas por um facho luminoso segundo uma ordenação espacial e temporal determinada. As lentes seriam metáforas das diferentes camadas de organização dos traços de memória, constituídas segundo gramáticas e conteúdos mnêmicos próprios aos diferentes períodos da vida, ou seja, das diferentes modalidades temporais de relação do sujeito com o Outro. O fenômeno “anímico”seria, assim, a composição virtual desse feixe de luz, cambiante a cada instante de sua travessia desses diferentes lugares psíquicos, os quais, em última instância, são estruturas de memória e linguagem.

Assim formulada, tal concepção parece em profunda contradição com o caráter livre e aéreo que uma visão mais romântica poderia propor à alma humana. Seria esta, então, apenas o resultado passivo e ilusório das determinações inconscientemente impostas pela história e pela linguagem a um sujeito, nas suas relações com o Outro? O “sopro” pelo qual os antigos se referiam à alma não passaria de uma miragem ocultando a completa sobredeterminação do “sujeito”, reduzido assim a uma condição de absoluto assujeitamento? Nessa perspectiva, a “interpretação dos sonhos” constituiria a explicitação das regras pelas quais a aparente liberdade da alma estaria, na verdade, inteiramente submetida às regras de uma cadeia associativa, funcionando segundo uma lógica fria e automática que escapa inteiramente ao próprio sujeito. Sob essa perspectiva, a metáfora do “aparelho” aludiria fundamentalmente ao aprisionamento da alma em suas determinações simbólicas.

Contudo, o que a Traumdeutung freudiana demonstra é justamente que o sujeito não é totalmente dedutível do encadeamento lógico-simbólico no qual se inscreve e do qual retira sua condição mesma de existir enquanto ser de linguagem. Mesmo o sonho melhor interpretado, diz Freud, evidencia que a fonte de suas associações está ancorada no “Não-Reconhecido” (das Unerkannten), ponto em que as palavras são incapazes de traduzir integralmente o desejo que o move. Constituída por sua inscrição fundadora nas malhas da linguagem e da memória, a alma freudiana não se deixa reduzir sem resto a categorias da lógica e da representação. Ao contrário, ela se define justamente pelo resto que insiste em tentar se exprimir, em se fazer reconhecer e se realizar, ainda que de modo sempre incompleto e surpreendente.

É exatamente por isso que Freud criou um método clinico que ao mesmo tempo é um método de pesquisa, e não um princípio de dedução antecipada. É preciso dar a palavra ao sujeito, para que, sob transferência, ele próprio possa se surpreender ao se escutar dizer algo de totalmente inesperado, mas profundamente revelador de si próprio.

Além disso, é preciso lembrar que a “alma freudiana” não é nada santa. Aquilo que circula no “aparelho anímico” é fundamentalmente libido, princípio erótico que, em sua tendência mais elementar, busca a satisfação pelas vias mais curtas possíveis, sem levar em conta qualquer consideração de ordem moral, prática e nem mesmo de sobrevivência. Trata-se de pura vontade de gozo, que, diante da impossibilidade da realização plena, deve poder investir eroticamente sua própria falta e incompletude. Nesse mesmo movimento, é o desejo que emerge como motor erótico da alma, confrontada à castração de sua própria incompletude.

Por fim, pode-se dizer que a alma freudiana, sem se confundir com o inconsciente coletivo de Jung, não é solipsismo absoluto, pois está em continuidade com a tradição humana e com a alma grupal expressa no laço social. Para Freud, a experiência de realidade não tem nada a ver com se perceber as coisas tais como elas efetivamente são, mas sim com concebê-las e recortá-las segundo coordenadas simbólicas compartilhadas com o restante do grupo humano. O Complexo de Édipo, com suas raízes ancestrais e com sua jurisdição generalizada, constitui o fundamento da ordenação simbólica do mundo, garantindo uma comunidade mínima de instalação no humano pela via da linguagem.

Caprichosamente, contudo, a palavra é sempre impotente para responder a nossos questionamentos mais fundamentais sobre nós mesmos e para garantir uma comunicação sem resto, uma cópula perfeita, com o outro. Marcada pelo laço humano da linguagem, ainda assim a alma freudiana está condenada a um nível intransponível de solidão.

No ato de enunciação sob transferência, um homem, ao buscar dizer sua verdade, pode se surpreender, por um átimo, enquanto sujeito. Descoberta sempre fugaz, que se atualiza apenas nesse lampejo do ser, pois a alma que assim se expressa, tal como o vento, é perpetuamente móvel. Mas enquanto acontecimento, se descobre existir. Singularmente, é claro, ainda que inseparável da alma do mundo.

* Professor de Psicologia na Université de Provence e na Unicamp

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