quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A democracia que não veio


Por Vladimir Safatle
Do Observatório da Imprensa

Normalmente, aqueles que mais têm a palavra “democracia” na boca são os que, no fundo, menos acreditam nela. Eles se portam como defensores dos valores democráticos apenas para conservar desesperadamente as imperfeições que a versão atual da democracia é incapaz de superar. Na verdade, quando repetem que “a democracia é o pior sistema, mas o único possível”, é porque amam suas distorções. Pois a única posição realmente fiel ao conteúdo de verdade da democracia consistiria em dizer: a democracia não está realizada, ela é uma ideia por vir.

Isto não significa que a realização imperfeita de uma ideia seja completamente falsa. A democracia por vir não é a negação simples, a recusa absoluta da democracia que temos atualmente. Mas ela é a mudança qualitativa de seus dispositivos e construção de novas dinâmicas de poder.

Podemos mesmo dar três razões que nos permitem compreender por que esta democracia por vir ainda não veio. Uma delas é a confusão deliberada entre o jurídico e o político. A verdadeira democracia admite situações de dissociação entre o ordenamento jurídico e exigências de justiça que alimentam as lutas políticas. Esta dimensão extrajurídica própria à democracia nos lembra que há uma violência eminentemente política que sempre apareceu sob a forma do direito de resistência e do reconhecimento do caráter provisório das estruturas normativas do direito. A estabilidade institucional da democracia não significa a perenidade absoluta do ordenamento jurídico atual. Ela significa que a instabilidade da violência política, uma violência que não é a simples eliminação simbólica do outro, será reconhecida no interior mesmo das instituições sociais.

O segundo ponto é o medo atávico da participação popular direta. As estruturas representativas da democracia parlamentar foram criadas para suprir a impossibilidade material da presença física da população no processo de deliberação legislativa cotidiana. Hoje, com o desenvolvimento tecnológico e com o advento das sociedades de alta conectividade, foram dadas as condições materiais para o início de uma verdadeira democracia digital. Vários processos deliberativos podem passar para a esfera da deliberação plebiscitária.

O terceiro ponto diz respeito à relação de reconhecimento entre Estado e cidadão. Não é possível pensar o campo da política sem o Estado. É ele que permite a ampliação de escala de processos gerados na esfera local. É ele que permite a implementação institucional da universalidade. No entanto, vivemos em uma época de esgotamento do Estadonação com suas exigências de conformação identitária e sua capacidade de gerir processos econômicos em sua fronteira. Este fim do Estado-nação pode dar lugar a dois fenômenos: o retorno paranoico a identidades profundamente ameaçadas ou o abandono da identidade como operador político central. Isto significa não a anulação deliberada de toda e qualquer demada identitária, mas a construção de um espaço político de absoluta indiferença às identidades; de uma política da diferença à implementação política de zonas de indiferença. Isto implica um estado capaz de socializar sujeitos em seu ponto de indeterminação. Ou seja, a função do estado não pode ser a determinação completa dos sujeitos através da gestão de processos disciplinares e de controle. Sua função é a gestão da indeterminação. Isto pode se dar, por exemplo, através da eliminação de aparatos jurídicos ligados à perpetuação de hábitos e costumes.

Por fim, não é possível pensar problemas ligados à democracia sem pensar os riscos advindos da consolidação de grandes conglomerados globais de mídia. Eles têm tendência a monopolizar discussões sobre liberdade de expressão sem nunca discutir as redes de interesses econômico-financeiros que permeiam tais conglomerados e direcionam sua expressão. Da mesma forma, eles tendem a não discutir como setores da opinião são, muitas vezes, marginalizados.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A Poesia de Paulo Freire

                                          Carteira de trabalho do professor Sérgio Haddad com o registro do colégio Santa Cruz


Por Sérgio Hadad
Da Revista Ilustríssima

Anos 1960, casa de André Franco Montoro: como aluno do ensino médio do colégio Santa Cruz, fui convidado para uma reunião sobre Paulo Freire coordenada pelo professor Flávio Di Giorgi. Falamos sobre educação libertadora, analfabetismo, diálogo como método pedagógico, relação horizontal entre professor e aluno e conscientização. Ainda não tinha a dimensão da importância daquelas ideias para a minha vida. Mesmo assim, senti um encantamento.

Final dos anos 60, anos de chumbo: retorno ao mesmo colégio como professor e, mais tarde, como coordenador de um curso popular noturno para trabalhadores jovens e adultos. O curso se apresentou como uma oportunidade para vivenciar o que havia escutado anos atrás, agora em um cenário político de autoritarismo e ausência de diálogo.

Com uma equipe de professores, pudemos comprovar a força do pensamento de Paulo Freire. Eram ideias simples: dialogar sobre os problemas do cotidiano a partir do conhecimento que cada um trazia; ir atrás das raízes destes problemas; construir alternativas para superá-los; e buscar soluções individuais e coletivas de curto prazo e as de longo prazo.

Tudo isso chamávamos de conscientização, o que significava descolonizar o pensamento, enxergar a realidade com clareza, superar os problemas a partir da análise sobre suas causas, dialogar para buscar soluções e agir para mudar a realidade de acordo com os interesses do coletivo.

Como resultado, nossos alunos contavam que haviam perdido o medo de falar para defender suas ideias, que aprenderam a argumentar com seus patrões, que não aceitavam mais piadas racistas ou de quem os diminuía por sua condição social, que não permitiam a violência dos seus namorados e maridos, que não precisavam mais bater nos seus filhos para educá-los e que começavam a se organizar de maneira coletiva.

Aquele pequeno universo escolar de aprender e ensinar para atuar sobre o cotidiano conviveu com o grande universo da sociedade brasileira de aprender e ensinar para agir nos movimentos contra a carestia, pela anistia daqueles que foram obrigados a partir por pensar diferente dos que estavam no poder, nas grandes manifestações por eleições diretas.

Anos depois, voltei a me encontrar com Paulo Freire, agora como colegas professores na PUC-SP. Comentando a importância de descolonizar o pensamento, contou-me histórias que se passaram com ele, mestre do pensar crítico.

Paulo morou em Genebra durante seu exílio político. Procurava ser o mais genuíno nordestino nos seus hábitos para resistir ao modo de vida daquela cidade de primeiro mundo. Mesmo assim, nos primeiros dias, impressionado com a limpeza da cidade, comentou, rindo, que se pegou com medo de sujar o corrimão de uma das pontes, de tanto que ele brilhava.

Mas o mais incrível, continuou, foi que durante os anos em que trabalhou no Conselho Mundial de Igrejas, saía sempre no mesmo horário, tomava o ônibus que passava no ponto em frente da entrada do edifício religiosamente na mesma hora, descia quatro paradas à frente, tomava outro ônibus dois minutos depois e, finalmente, chegava em casa, sempre no mesmo horário. Um dia o primeiro ônibus se atrasou, ele perdeu o segundo e chegou 10 minutos atrasado em casa.

"O pior, Sérgio, é que eu fiquei indignado! Foi aí que eu pensei que já estava na hora de voltar ao Brasil".

Hoje, como educadores e educadoras, andamos enredados com ideias sobre ranqueamento de escolas e alunos, avaliações de todos os tipos, nacionalização de modelos internacionais, padronização dos conteúdos, sistemas apostilados, tecnologias pedagógicas, ensino à distância, tablets, multimídias, lousas eletrônicas etc. Que falta nos faz a poesia de Paulo Freire que nos ensinou a sonhar que é possível aprender com a própria vida!

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O mito da preexistência da alma em Platão

A obra Separation in the Evening, de Paul Klee


Da Revista Cult
Por Roberto Bolzani Filho, professor de Filosofia da USP

Entre os numerosos conceitos elaborados ou esboçados por Platão em seus diálogos, um dos que mais marcaram a reflexão filosófica posterior foi, certamente, o de alma. Em diálogos fundamentais como Fédon, República e Fedro, o filósofo, afastando-se da mais remota tradição homérica e acolhendo algumas ideias filosóficas e religiosas mais recentes, propôs uma visão sobre o homem na qual a noção de alma desempenha papel central e está intimamente associada às principais características e aspectos de seu pensamento, voltado para a elaboração de uma ampla e consistente explicação sobre a realidade (ontologia), uma forma de conduta individual (ética) ou na cidade (política), além de uma compreensão do divino  (teologia). Em todas essas facetas de sua filosofia, razoavelmente distintas, mas sempre solidárias, Platão desenvolve uma análise da natureza humana que afirma forte distinção entre a alma, como sede da identidade, do pensamento e da deliberação, e o corpo, como seu invólucro, frequentemente a pôr-se como obstáculo ao pleno exercício de suas capacidades.

Essa distinção ganha seus fundamentos metafísicos na célebre doutrina das Formas. Segundo a doutrina, desenvolvida nos diálogos mencionados e em alguns outros, existem realidades invisíveis e inacessíveis aos sentidos, apreensíveis apenas pelo pensamento. Ora, o pensamento é atividade da alma, e esta, para poder conhecer plenamente tais realidades, deve alcançar um estado de completa independência das limitações impostas pelas sensações, as quais estão intimamente relacionadas a desejos e paixões resultantes de necessidades corporais, como fome, sede e sexo.

Por isso, a alma só alcança esse pleno conhecimento da suprema realidade suprassensível, quando está livre das amarras corporais – depois da morte, que, a bem dizer, consiste nessa libertação. Estamos, portanto, perante a tese de que a alma sobrevive à morte, que é, afinal, apenas a corrupção e desaparecimento do corpo. Com a morte, a alma conhece as Formas e nelas se reconhece, em alguma medida, porque a alma tem afinidade e parentesco com elas, e por isso pode conhecê-las. O corpo, ao contrário, é como os outros seres sensíveis, que estão em constante mudança e passam por processos de geração e corrupção. As Formas, por sua vez, são sempre idênticas, imutáveis e eternas. A alma aspira ao mesmo estado de identidade e imutabilidade, sendo também, como elas, imortal.

A imortalidade da alma, uma das teses mais características e influentes do platonismo, envolve, assim, toda uma visão da realidade, uma metafísica que privilegia o conhecimento do que é puramente inteligível e desvaloriza os eventos relacionados à vida corporal e sensível.

O conceito de Forma, um dos mais polêmicos do pensamento platônico, está no centro dessa visão da realidade: se os meus sentidos me informam, por exemplo, que determinados objetos vistos, ouvidos, tocados etc., são grandes ou pequenos, isso só é possível porque existem realmente – e não apenas em meu intelecto, como objeto de pensamento – as Formas do Grande e do Pequeno, das quais esses objetos participam e que são as causas de sua  geração. Ora, um objeto “grande”, em determinada relação, pode também ser “pequeno” em outra, mas as Formas do Grande e do Pequeno não sofrem dessa limitação: elas são,  respectivamente, o “Ser Grande” e o “Ser Pequeno”, a Grandeza e a Pequenez, e são, cada uma, exclusivamente grande e pequena. O conhecimento do suprassensível consiste, assim, na posse de verdades necessárias e eternas.

Existem também realidades como as Formas do Bem, do Justo e do Belo, além de vários outros valores éticos e políticos. Isso fundamenta toda uma teoria da ação moral, segundo a qual é possível, e mesmo necessário, agir com justiça, porque esta é real, tornando possível e necessária a existência de atos justos. Com isso, propõe-se um modo de conduta pelo qual viver de modo justo não é apenas cumprir um dever que nos é imposto, é seguir o caminho que conduz nossa alma à realidade que lhe cabe, como alma, conhecer, é adquirir uma condição moral adequada para esse conhecimento e, ao possui-lo, invariavelmente exercitá-lo. Para ter conhecimento das Formas, a alma deve controlar o corpo e viver uma vida, na medida do possível, voltada para valores como justiça e virtude, porque isso tem parte com sua própria natureza, caracterizada pela unidade, imutabilidade e harmonia típicas das Formas.

No mesmo sentido, unidade e harmonia da alma consistem num estado de equilíbrio entre suas partes, no qual a parte racional, naturalmente dotada da capacidade de comandar, controla, com o auxílio da parte impetuosa, dotada de coragem, uma terceira parte, a dos desejos, que, se mal dirigida, pode levar ao predomínio das paixões. A alma é como uma carruagem, conduzida por um cocheiro que comanda dois cavalos, um, dócil e bom, outro, indócil e mau.

Consequentemente, uma cidade justa nada mais é do que uma alma justa, agora em maiores proporções: também nela, a parte racional deve governar as outras duas partes, para que se preserve sua unidade e harmonia. Para construir essa doutrina, aqui grosseiramente esboçada, Platão se serve, em vários momentos desses diálogos, de procedimentos argumentativos rigorosos, com pretensões demonstrativas, desenvolvidos por Sócrates, a personagem sempre principal, e seus interlocutores.

Contudo, tratando-se de assuntos tão afastados de nossa experiência sensorial e que, em nossa limitada condição de almas sujeitas a corpos, são de difícil compreensão, como a imortalidade da alma ou realidades suprassensíveis, Platão recorre a um expediente importante: expressar-se também por meio de mitos ou narrativas típicas da tradição poética – outra maneira, mais familiar ao leitor, para abordar temas de assimilação tão complexa.

Em Górgias, Fédon e no último livro de República, narrativas míticas nos descrevem o que ocorre após a morte: as almas chegam ao Hades, região subterrânea, levando consigo as marcas de suas vidas, de suas naturezas e escolhas. Almas excessivamente presas aos desejos corporais sofrem com esse percurso, desnorteadas. O contrário ocorre com almas que viveram com moderação e temperança.

Um tribunal as julga e determina punições ou recompensas, conforme tenham vivido justa ou injustamente, de modo a torná-las melhores. É-lhes concedido, então, o direito a escolher uma nova vida, escolha de sua inteira responsabilidade. Naturalmente, serão guiadas pelos interesses e preferências morais que adquiriram em vidas anteriores. Almas ambiciosas escolherão vidas de riqueza e honra, porque não sabem fazer de outro modo, mas almas justas e boas preferirão a simplicidade. Terão, assim, cada uma a seu modo, as condições para seu aperfeiçoamento, mesmo que seja com sofrimento e dor. Almas plenamente justas são recompensadas com a felicidade nas Ilhas dos Bem-Aventurados.

No diálogo Timeu, Platão se volta para uma questão de que pouco tratou nesses diálogos: a origem do mundo. O discurso que explica a geração do mundo e do homem, porque se refere a uma realidade sensível que inevitavelmente sofre mudanças, só pode ser uma narrativa ou mito verossímil, nunca absolutamente verdadeiro. Afirma-se a existência de um Demiurgo que molda os seres corporais tomando as Formas eternas como modelos. A criação do mundo só é possível se nele existir uma alma dotada de pensamento, que o torne um ser vivo e possibilite que nele existam outros seres vivos dotados de alma e pensamento. A Alma do Mundo é princípio de vida e de inteligibilidade, por obra do Demiurgo, que a fez de modo a poder governar seu corpo, o mundo sensível. Há, por isso, uma simetria entre ela e as almas dos homens.

Assim como o mundo não seria o que é sem a atuação nele de sua alma, assim também deve ser para nós. Por isso, o comando do corpo pela alma proporciona uma vida justa; o contrário, uma vida injusta. A presença de uma causa divina, demiúrgica, permite à alma humana, ao viver com virtude e conhecer os modelos que essa causa imitou, tornar-se feliz.

Tudo isso pelo princípio de que é bom e belo que assim seja. Eis, para o filósofo, a explicação mais racional que se pode dar para os eventos naturais, o mundo e nós mesmos. Proporção e harmonia são expressões do bem e do belo, e foi assim que o Demiurgo moldou a realidade do mundo, olhando para as Formas. O homem deve agir em conformidade com isso, de modo que sua alma preserve essa proporção, cuidando do corpo e de si mesma.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O guardador de livros de Pessoa

Da Revista Bravo
 
“Ele é como aquele personagem do Humberto Eco. É capaz de andar de olhos fechados na biblioteca e não se perder. Domina como ninguém o espólio.” A frase de Antonio Cardiello sobre Jerónimo Pizarro define bastante bem a posição alcançada pelo pesquisador colombiano no universo da pesquisa sobre Fernando Pessoa. Em 2003, quando começou a estudar os milhares de folhas deixados pelo poeta, Pizarro ficou tão encantado que praticamente morava na Biblioteca Nacional de Lisboa. Os muitos anos debruçados sobre os papéis na tarefa quase detetivesca de compreender sinais gráficos, montar quebra-cabeças que faziam de folhas soltas um conjunto, procurar relações entre documentos, fez do jovem pesquisador um dos maiores conhecedores na atualidade da obra de Pessoa. Organizado e metódico, conseguiu reunir um grupo de investigadores e revolucionar os estudos acadêmicos sobre o autor. Além disso, com o apoio de uma editora, levou ao grande público esses achados.
Agora, de volta à Colômbia para comandar uma cátedra que leva o nome do poeta, o acadêmico tem por objetivo disseminar a cultura portuguesa e tornar cada vez mais conhecido, também em castelhano, o nome de Fernando Pessoa.

Leia a entrevista com Jerónimo Pizarro.
 
Qual o critério que vocês têm para publicar Fernando Pessoa. Todos os papéis deixados por ele são considerados “publicáveis”? Como funciona a seleção?
Jerónimo Pizarro: Consideramos que essa seleção [entre publicável e não publicável] deve ser aplicada daqui a 40, 50 anos, não agora, quando ainda desconhecemos a maior parte desse material. Admito critérios mais rígidos, ontológicos, no futuro. Quando tivermos uma visão do conjunto, fará muito sentido começar a limitar. Mas fazê-lo de maneira subjetiva, individual, é muito difícil. Até porque o que pode ser interessante para mim pode não ser para outra pessoa. E se fizéssemos assim, atingiríamos um público mais restrito, faríamos um trabalho menos completo. E acabaríamos por dar muita seriedade aos nossos juízos. Acho que temos que suspender os nossos juízos para que outras pessoas, mais tarde, com uma visão diferente das nossas, possam construir uma obra mais seleta.
 
Você tem a impressão de que Pessoa sabia que um dia grupos de investigadores como vocês se debruçariam sobre o espólio e publicariam esse material?
JP: Acho que o Pessoa sabia que a posteridade estava a sua espera, mesmo com algumas frustrações de não reconhecimento em vida. Sabia que estava a deixar alguma coisa quase armada, que são as arcas, para a posteridade. Sabia que sua vida dependia do que fosse a sua existência futura, ainda que não soubesse qual seria ela. Imaginava que sua obra, e o que tinha deixado arquivado durante anos, ia continuar a construir essa figura que ele próprio tinha construído em vida.
 
Ele deixou pistas para facilitar a vida de quem viria fazer esse trabalho?
JP: Praticamente não. Algumas pistas, mas mínimas. Acho que parte da brincadeira era deixar esse labirinto, não era deixar uma coisa já preparada. Então seria muito fácil, se tivesse deixado um mapa, instruções, seria só armar o que estava. Seria menos vanguardista, menos do seu tempo. O que muitos modernistas fizeram, tipo [James] Joyce e Pessoa, foi deixar uma coisa complexa para mais tarde porque, se as pessoas se perderem no caminho e ficarem cativadas por algo misterioso – e há muito mistério nessas arcas –, ficam presas durante muito mais tempo. Se as arcas tivessem instruções, acho que teríamos nos desinteressado muito tempo atrás.
 
É coincidência que tantos estrangeiros estejam estudando e publicando Pessoa?
JP: Acho que o que está a acontecer com grande parte da cultura e literatura portuguesa, e não só agora, se calhar há muitos séculos, é que ela atrai pessoas de todo o mundo. Lembro-me de umas palavras de Antero de Quental [escritor e poeta português do século 19] a afirmar que alguns autores portugueses estavam a ser estudados por pessoas vindas de fora. Pessoa, neste momento, é um dos motivos que estão a atrair mais interessados na cultura portuguesa.
 
O cálculo de vocês é de que cerca de 10 mil folhas deixadas por Pessoa, mais ou menos 30% do espólio, ainda não foram publicadas. É possível prever quanto mais de trabalho e quantos anos ainda serão necessários para conhecermos tudo?
JP: Sei que posso ter 40 anos mais de trabalho e não vou concluir, e podia ter 80 ou 120, e não iria concluir. E nem sequer posso muito bem imaginar como seria a conclusão. Penso em um caso com Dante Alighieri, que continuamos a pensar a Divina Comédia a escrever sobre ela. Não é só a questão de editar Fernando Pessoa, que vai continuar a ser editado durante séculos. A questão é que não há uma única maneira de editar pessoa. O Livro do Desassossego é paradigmático nesse ponto. Da mesma maneira, podemos continuar a armar muitos livros mais.
 
Como funciona o trabalho entre esse grupo chefiado por você? Trabalham sempre em equipe, trabalham só...
JP: Há uma parte que terá que ser sempre solitária, de transcrever certos manuscritos, percorrer os papéis, ler certos livros. Mas depois há uma parte coletiva, de discutir certas leituras, de discutir textos e livros que estão a ser preparados. E é uma dimensão coletiva que está em crescimento, e a única maneira que acho que faz sentido existir uma “equipe” para editar Pessoa.
 
Ouvi você dizer que se pesquisa pouco no espólio, que não se vai à fonte primária. Por quê?
JP: É um defeito das universidades. Estão muito acostumadas com a uma visão do texto como uma entidade abstrata, uma análise do texto que esquece os condicionamentos materiais. A internet e a digitalização dos arquivos vão tornar mais simples uma consciência necessária da existência material dos textos. Temos que regressar aos textos, e não só ler o que já lemos, mas perceber que os textos costumam ser um percurso, que não é uma coisa imediata. Estamos a trabalhar com um produto final e esquecer a história que está por trás, e para mim são tão importantes o texto em si e a sua análise quanto a história do texto. É muito mais complexo, interessante, e acho que pode ser uma das maneiras para sairmos da crise das humanidades.